A qualquer amante de livros com certeza que já passou pela cabeça a ideia de um dia morrerá sem poder ler todos os livros que desejara em vida. Pela sua extensão ou complexidade, certos títulos são verdadeiras maratonas que só os mais bem preparados conseguem completar. Contudo, essa dificuldade em ler os grandes tomos não deve ser vista como uma impossibilidade de conhecer o pensamento dos seus autores e até as ideias base que suportam esses calhamaços. David Foster Wallace é o exemplo paradigmático para esta nossa assunção.
Com uma carreira diversa, dedicada às letras mas marcada por diversos formatos de escrita, o escritor norte-americano era não só um exímio romancista como um verdadeiro pensador sobre a contemporaneidade. A maioria das suas ideias condensou-as nos livros que chegam até ao escaparates das livrarias, como o clássico gigantesco A Piada Infinita, mas não só. Tendo morrido em 2008, Foster Wallace foi discretamente um membro com participações constantes na comunicação social e entrevistado em profundidade por diversas vezes, pelo que daí tanto resultam brilhantes textos sobre ténis como pequenos vídeos no Youtube onde podemos contactar com o seu pensamento complexo e fascinante.
Isto não significa, de todo, que ler os livros não seja a melhor forma de entrar no mundo de DFW, mas a sua complexidade é de tal ordem que qualquer preparação pode até ajudar a desvendá-los e a ter uma experiência de leitura mais proveitosa.
Uma das primeiras dicas para começar a mergulhar no universo de Foster Wallace já aqui mencionámos. Chama-se This is Water e é um discurso dado por FW em Kenyon College, uma universidade privada de Artes Liberais a 21 de Maio de 2005. Mas a lista de referências para mergulhar no seu mundo continua por aí a fora. Em textos de sua autoria e de tamanho reduzido podemos ainda destacar, no seu portfólio jornalístico, o perfil do candidato à presidência dos Estados Unidos da América, John McCain ou o artigo sobre o 9/11 para a Revista Rolling Stone, “Roger Federer enquanto experiência religiosa” para o New York Times ou a reflexão sobre os efeitos da televisão em E unibus pluram: television and U.S. fiction. (podes encontrar outros artigos e ensaios online aqui.)
Já se quisermos externalizar o foco e conhecer DFW da perspectiva do Outro, o caminho a seguir são as entrevistas. No Youtube é possível encontrar várias conversas, entre elas uma com um canal alemão onde David Foster Wallace critica sem pruridos o modo de vida americano ou uma na América onde o escritor lê uma das mais brilhantes passagens do seu livro a Piada Infinita sobre os Alcoólicos Anónimos de Boston. É entre o seu discurso fluído mas com um substracto de inquietação que nunca disfarça que Foster Wallace vai deixando sair algumas das reflexões mais geniais sobre os nosso tempos. Ao longo da vida sempre assumiu uma relação difícil com a sua própria mente que expressa nas várias entrevistas e quando lhe dão a hipótese de reflectir sobre o estado das coisas — mais do que escrever sobre a vida, a impressão sobre Foster Wallace é que ele diluía todas as barreiras, vivendo a escrita de uma forma intensa. Como se transformasse a capacidade de observação indispensável a um romancista para questionar tudo, todos e a sua forma de estar e progredir.
“Ninguém fala da relação entre a forma como vivemos ou conduzimos e as coisas que estão a acontecer” e era esse espaço que David propunha ocupar, com uma enorme versatilidade de interesses aliada a um espírito crítico aguçado, o escritor estabelecia pontes onde ninguém via conexões e ilustrava a realidade de uma forma ímpar, assumindo o risco de, como disse por mais do que uma vez, parecer um chato com aquelas conversas. É que David Foster Wallace tinha sempre uma visão própria e sistémica do progresso que outros viam de forma superficial e acrítica. Numa das suas entrevistas, expressou a sua visão sobre a internet de forma que exemplifica a sua linha de raciocínio, sempre preocupado com a solidão.
“Se continuarmos a ter uma nação de gente sentada em frente a um ecrã, a interagir com imagens em vez de estarem umas com as outras, a sentirem-se sozinhas enquanto recebem e procuram mais imagens, vamos ter o mesmo problema básico. E quanto melhores ficarem as imagens mais tentador será interagir com elas.”
O problema de Foster Wallace não parecia resumir-se a uma crítica a terceiros, tal como no filme sobre o escritor se procura revelar, a sua luta contra a solidão da contemporaneidade era algo extremamente pessoal, a sua crítica ao lado fetichista do entretenimento televisivo era um disfarce do seu medo de por ele ser seduzido. The End of The Tour de James Ponsoldt é o filme que sintetiza e retrata esta ideia. Com as efabulações naturais de um filme de ficção inspirado em histórias verídicas, testemunha as lutas de Foster Wallace durante a tour de apresentação do seu livro. Nele percebemos a irreverência social de Foster Wallace bem como a sua relação conturbada com a sua mente, a sua tendência para os vícios e o caos pessoal. Embora seja bom ver com um certo distanciamento, como recomenda este artigo de um dos amigos de DFW.
Em conclusão, conhecer Foster Wallace sem nunca acabar os seus livros não tem mal nenhum – temos de começar por algum lado e não há que ter de receio em começar pelo mais fácil – mas é sempre um pretexto para que cresça em nós a vontade de voltar a pegar no A Piada Infinita. O livro de 1400 páginas é uma espécie de teste em si mesmo, uma prova de resistência e de força de vontade, quase como um complexo puzzle em que o único requisito é a capacidade de quietude e concentração ao longo das horas de leitura. Cada pedaço de sabedoria e cada contacto com a obra de Wallace é uma ajuda a perceber a sua voz e mais um incentivo para mergulhar na água deste escritor que partiu cedo demais.