Quando a premissa de um filme é construída sobre um quase-ininterrupto diálogo, há quem possa ficar desmotivado. Mais eis que, no meio da descrença, surge uma exceção: “The Two Popes”, o filme que reinventa a arte do diálogo. A obra do cineasta brasileiro Fernando Meirelles, recém-nomeada a três óscares, é uma masterclass notável de escrita e de interpretação, um dos maiores trunfos da gigante Netflix e também um dos exercícios de cinema mais revigorantes de 2019. Formas à parte, o filme é um verdadeiro vencedor no conteúdo, com mensagens que seguram o espectador até à última cena, e que o acompanham depois desta terminar.
É provável, certamente, que o filme agrade a níveis diferentes, diferentes pessoas, com vivências espirituais particulares. É certo, porém, que não deixará ninguém desinteressado: da produção de Meirelles ecoam mensagens totalmente universais e indissociáveis da natureza humana, como o confronto entre ideais opostos, a volatilidade dos papéis de poder ou a necessidade de expiação e, até, de perdão. Esta história encerra, em si, uma dicotomia peculiar: duas esferas, uma externa e outra interna, que desdobram o filme em possibilidades múltiplas de questionamento e inquietação.
Numa abordagem superficial, podemos afirmar que estamos perante um revisitar, mais ou menos ficcional, de um dos acontecimentos mais curiosos da história secular da Igreja Católica: a transição de poderes do Sumo Pontífice Bento XVI, após a sua abdicação, para aquele que se viria a tornar o seu sucessor, Papa Francisco, em 2013. Mais, até, é possível constatar que esta “transferência de comandos” é utilizada como uma plataforma para indagar acerca da relevância do catolicismo na atualidade. Independentemente da religião, credo ou fé do espectador é ainda inegável, nos dias de hoje, o peso que as instituições geridas pelo bispo de Roma possuem, em diferentes sistemas sociais.
Apesar dos escandalosos atentados humanos e crimes financeiros, e os seus encobrimentos, falamos de uma Religião com dois mil milhões de fiéis. Seguidores, fervorosos, que vão aguentando, estoicamente, contra as agruras que mancham os agentes a que são devotos, para que estas não corroam a própria fé. Sabemos que os erros que degradam a Igreja Católica são tão extensíveis quanto a falência da própria natureza humana. E a pergunta que se pode colocar, a todos esses seguidores, é até que ponto é que o plano espiritual permanece imaculado, após o embate com este carrossel de atrocidades, que tem descarrilado a uma velocidade cada vez maior.
Mas não é só de questões provocantemente filosóficas que o enredo é feito, no seu desenrolar ritmado. Se todos os atos são, no mínimo, políticos, as diretrizes que a própria Igreja sempre desenhou não são exceção. O Papa Bento XVI e o Bispo argentino Jose Maria Bergoglio encabeçam dois movimentos políticos que se têm digladiado ao longo dos séculos, dentro e fora do Vaticano. Bento XVI, dotado de uma inteligência fora do normal, não estava pronto a abdicar do papado sem, primeiro, confrontar as convicções do sucessor. O choque dá-se entre o conservadorismo acérrimo, a fria exaltação do status quo, que endeusa o próprio papado como forma de o dignificar, e o progressismo que pretende quebrar normas e costumes estabelecidos, numa tentativa de se atualizar com o mundo. Para Bergoglio a Igreja é um agente que deve servir as sociedades que prestam adoração: e a única maneira de encontrar os fiéis é indo ao encontro deles. E não o seu contrário.
E se, à primeira vista, é de política que este candidato ao óscar de melhor argumento adaptado parece ser feito, um olhar atento encontrará um conteúdo bem mais enriquecido. Independentemente dos cargos e deveres somos todos, em última instância, humanos. Independentemente das vivências de cada um, já todos sentimos orgulho, desilusão, medo ou arrependimento. E é esta universalidade de experiências coletivas que torna o filme um produto tão empático e impactante. Afinal, o duelo de convicções entre estes aparentes opositores políticos não passa de uma confissão partilhada: dos desgostos e pecados, de erros do passado. Uma confissão que que leva, pelo arrependimento convicto, a uma evolução (o desejo de aperfeiçoamento destes líderes, a par da Instituição que querem revitalizar).
É certo que o guião de Anthony McCarten não evita levantar, ainda que levianamente, sobre o Papa Emérito, o desconfortável véu dos possíveis(s) silenciamentos de casos de pedofilia e desvios de fundos do banco do Vaticano. Todavia, propõe-se, fundamentalmente, a focar no que dignifica a já referida inteligência de Joseph Ratzinger: o auto-reconhecimento de que o caminho traçado para a sua igreja agigantou um fosso entre a fé e os fiéis. De que, afinal, a visão reformista do bispo de Bueno Aires poderá reerguer o catolicismo. E do lado dos arrependimentos do Papa Francisco, o enredo recai, também, equilibradamente, sobre a sua necessidade de se penitenciar pela conivência com o regime ditatorial que operou na Argentina entre 1976 e 1983. Bento XVI procura perdão pela abdicação, Francisco procura-o na execução do cargo que lhe é confiado.
No final, após percebermos que o debate ideológico era, afinal, uma procura sincera de arrependimento e absolvição, resta-nos a cena das pizzas. A refeição partilhada é um exemplo vivo do carisma incontornável dos atores que dão vida a estes personagens, Jonathan Pryce e Anthony Hopkins. Mas demonstra, fundamentalmente, um retrato fresco de dois homens simplesmente imperfeitos, que duvidam e erram, sem nunca desistirem de se tentar emendar: procurando, em última instância, dar resposta e sentido à fé.
No final, qualquer um de nós poderia estar naquele local, a partilhar a mesma refeição, a confrontar-se com as mesmas questões. E é nessa partilha que o cinema acontece.
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