Desde domingo que o assunto que tem dominado a agenda mediática tem sido o Luanda Leaks. Um conjunto de mais de 715 mil documentos, totalizando 356 GB de ficheiros, chegaram à mão de um consórcio de investigação jornalística que prontamente os analisou. Dessa análise, resultaram peças centrais publicadas no site do consórcio e uma série de outras reportagens feitas um pouco por toda a imprensa internacional. Em Portugal foi o Expresso (e por inerência a SIC) o primeiro a noticiar a investigação por fazer parte deste grupo, mas todos os outros media seguiram a linha das investigações, republicando o mais relevante.
No meio desta senda de revelações, Miguel Poiares Maduro, antigo elemento do governo de Passos Coelho e ex-membro da FIFA, fez um tweet que gerou diversas reacções e que nos importa aqui. Questionava Poiares Maduro porque uns leaks eram mais analisados e outros não, aludindo, muito provavelmente, ao caso do Football Leaks que, em Portugal, se individualizou na figura de Rui Pinto.
Pergunta desconfortável: qual a razão para certos leaks poderem ser livremente usados e outros não? Alguém me explica qual o critério por detrás do diferente tratamento que diferentes leaks têm em Portugal?
— Miguel Poiares Maduro (@MaduroPoiares) January 20, 2020
A pergunta é pertinente e suscitou diversas respostas ao tweet e diversas chamadas de imprensa. Sobretudo porque foi, na sexta-feira passada, que se ficou a conhecer os crimes por que Rui Pinto responderá em Tribunal, bem como que a juíza responsável pela frase de instrução do processo desconsiderou o arguido da figura de denunciante – alegando que não lhe reconhece boa fé. Este argumento tem sido amplamente ecoado, mas a sua análise objectiva é francamente difícil. Desde logo, porque é difícil perceber o que configura ou não boa fé, e depois, porque nenhum de nós sabe ou pode provar com exactidão as motivações concretas por de trás das revelações feitas por Rui Pinto.
Um ponto que tem sido levantado tem a ver com a intrusão dos sistemas informáticos. Mas, neste caso, voltemos a comparar o caso com o Luanda Leaks e perguntemo-nos se alguém sabe como estes documentos – e esta quantidade de documentos – foi obtida. A resposta é muito simplesmente não; quem divulga não sabe (nem quer saber) a fonte das informações, uma vez que reconhece na figura do jornalista o mediador suficiente para a filtragem de informação. Mas porque não é assim com Rui Pinto?
Apesar de a investigação do Football Leaks ter igualmente começado por um trabalho jornalístico, também ele feito por um consórcio de investigação – neste caso o EIC Network, integrado por orgãos de referência como o Der Spiegel, The Black Sea ou L’Espresso –, a verdade é que o caso em Portugal chegou, como acima referimos, individualizado na figura de Rui Pinto. Esta pessoalização fez, desde logo, com que se ignorassem os trabalhos jornalísticos já publicados nos meios que acima referimos e muitos deles pelo Expresso, antes de se descobrir a figura do denunciante (exemplos 1, 2, 3).
Desde que o denunciante ganhou uma identidade individual, as suas motivações passaram a ser reduzidas a uma questão clubística e a importância da sua denúncia foi altamente menorizada – embora atinja os três grandes portugueses e dezenas de clubes estrangeiros. Foi também a partir desse momento que o interesse público da sua denúncia passou a contar menos do que a sua boa ou má fé. Deixou de se discutir as alegações e passou a discutir-se o denunciante – numa espécie de cartoonização da vida real em que por força da sistematização da narrativa o personagem tem de ser um herói ou um vilão.
Nesta comparação entre casos, é curioso notarmos que um dos responsáveis pela associação que divulgou os leaks do Luanda Leaks – a Platform to Protect Whistleblowers in Africa, organização sediada em Paris – é William Bourdon, um dos homens que apareceu por Rui Pinto no princípio do desenrolar da trama Football Leaks. É preciso também não esquecer que a riqueza de um estado de direito democrático se relaciona muito com a complexidade do sistema jurídico, onde nem tudo precisa de ser preto e branco, onde até o condenado pelo crime mais vil pode ter uma palavra a dizer sobre outra situação.
À luz desta comparação, torna-se, portanto, mais do que evidente que, em vez de discutirmos tanto a acusação de Rui Pinto – que está em curso na justiça num processo mais ou menos célere mas em andamento –, devíamos questionar-nos sobre o interesse público das suas alegações; porque é que estas deixaram de ter eco logo que se soube quem ele era e que muito mais poderia haver a saber sobre instituições e empresas do nosso país.