Escolher os melhores da década é uma actividade ingrata. Quem decide o que é melhor? Que critérios fazem de uma obra melhor que outra? A popularidade na crítica? Entre o público? E como lidar com as limitações da memória humana? Sim, com o facto de mais facilmente nos lembrarmos daquilo que ouvimos ontem do que do filme que há oito ou nove anos nos marcou?
As perguntas eram tantas que o Shifter decidiu não escolher o melhor da década. Procurámos antes seleccionar aquilo que, criado na década que agora acaba, vale a pena ser revisitado na próxima. Queremos que entres nos novos anos 20 com uma lista de bons discos, livros, filmes, docs e séries que merecem ser vistos e revistos e que achamos que continuarão a representar muito para o mundo nas décadas que se seguirão.
To Pimp A Butterfly – Kendrick Lamar
Por Bernardo Pereira
Kendrick Lamar dispensa qualquer tipo de apresentações, provou o que tinha para mostrar em Good Kid, M.A.A.D City e em 2015 solidificou o legado que dá força e certeza de que é indiscutivelmente um dos melhores rappers da nova década. O rapper de Compton e ‘big boss’ da editora TDE deu uma volta de 360º e em To Pimp A Butterfly adotou um caminho experimental com a inclusão de jazz, funk e soul nas melodias que acabam por ser bastante raw e nos beats que acompanham a história do movimento ‘black lives matter’, desta vez numa direção mais afastada da ideia de chegar às tendências e sim uma influência mais old-school que nos faz voltar ao hip-hop dos anos 90.
Ao ouvirmos o álbum percebemos a dor e angústia com que Lamar profere os versos e rimas, o desenvolvimento do apartheid americano é motivo de destaque em todo o álbum, falando de supremacia e culpabilidade da raça branca e violência entre membros da raça negra, esta estrutura já era algo que podíamos ver como expectável quando “The Blacker The Berry” saiu, um single que puxa pela crítica mais severa e ríspida sobre a raça, onde o papel desempenhado é tão pesado e implacável quanto a mensagem que Lamar passa não só nesta música como nas outras. A destacar ainda temos as músicas “These Walls”, “How Much A Dollar Cost”, “Alright” e “King Kunta” momentos altos num disco que ‘roça’ o arquétipo da perfeição, tanto na produção como no elenco de excelência que compõe este disco, Thundercat, Flying Lotus, Snoop Dogg, Dr. Dre, Bilal e até um membro dos Isley Brothers são alguns dos intervenientes de peso.
To Pimp a Butterfly é delineado de forma abismal até no nome, uma metáfora que representa uma lagarta numa borboleta que implora por autoconhecimento, transcedência e a liberdade de voar o mais alto possível, sem qualquer impedimento no meio, é o verdadeiro grito de revolta e de esperança de que o movimento que defende e consagra a raça negra possa ter um virar da página, algo que Kendrick representa muito bem ao ir até ao menor detalhe e consagrar uma mensagem impactante aliada a uma produção ‘flawless’.
Lo-Fi Moda – Ermo
Por Bernardo Pereira
Ao segundo álbum de estúdio de António Costa e Bernardo Barbosa, confirma-se que a dupla não conhece barreiras para a criatividade artística e sonora que acabam por demonstrar e Lo-Fi Moda é o culminar disso tudo. A dupla bracarense já tinha dado uns ‘passinhos’ na pop eletrónica e neste segundo álbum a complexidade e perplexidade do que estamos a ouvir faz-nos acreditar que o talento é inegável e transcende o que se faz a nível nacional.
Os Ermo tanto representam algo bom e inexplicável, como algo “estranho” e difícil para todo o ouvido que anda por aí, quando Vem Por Aqui surgiu em 2014 o interesse pela dupla começou a ser criado, num álbum refrescante, cheio de produção electrónica, predominância do amor e sentimentos à flor da pele e uma transcendência inimaginável que deu seguimento a este segundo álbum. Lo-Fi Moda é uma evolução e um distanciamento de banalidades e sociedades egocêntricas. Ao entrarmos neste álbum entramos também numa verdadeira viagem energética pela contemporaneidade tecnológica que habita no mortal comum, o carecimento de mergulhar no mundo tecnológico e nunca mais sair dele, e a acompanhar este tema temos uma sonoridade viciante e impressionante, numa electrónica que apela pelo estético e por um conjunto de sintetizadores e drums, em brincadeiras robóticas e uma atenção redobrada a todos os detalhes e pormenores que muitas das vezes só são perceptíveis após várias escutas. António Costa arregaça as mangas e puxa pela voz potente, psicadélica e por vezes misteriosa que em certos momentos é calma e relaxante e noutros escala a níveis explosivos e astronómico, a destacar músicas como “Vem Nadar Ao Mar Que Enterra”, “Púrpura Pálido” e “Raicevic.als”, num álbum bastante incomum e promissor, revelando que podemos esperar ainda mais e melhor da dupla de Braga.
Santa Rita Lifestyle – Conjunto Corona
Por Bernardo Pereira
“Dedicado a toda a gente que gosta de ir às bombas de combustível tomar café às 2 da manhã. De Honda Civic. Formato “Fisico” sobre forma de raspadinha “super pé de meia & Chinelo”.” é a nota que o grupo da mítica cidade do Porto deixou em 2018 no álbum Santa Rita Lifestyle, um álbum que tem muito que se lhe diga e interliga-se de todas as formas possíveis, a começar pela capa incrível e que faz alusão ao clássico Honda Civic, ‘carocho’ de serviço que conduz a louca e alucinante viagem que fazemos ao consumir este disco, passando pela rotunda de Santa Rita em Ermesinde, os interlúdios tirados das rádios nortenhas, a retrospectiva da religião como sendo o que mais representa Portugal e na junção destes pontos há um cuidado para nunca perder a pronúncia.
O humor aqui tem duas vertentes, numa delas o nosso anti-herói Corona deambula como vadio pelas ruas do Porto e enfrenta problemas verídicos da cidade das Antas, na outra vertente entra no mundo do tunning com o seu Honda Civic e, como é mencionado na nota, acelera prego a fundo às bombas de gasolina para o cafézinho às duas da matina e com um “paiva” na boca.
Santa Rita Lifestyle consegue ter tudo aquilo que se espera num álbum de tamanho calibre, a produção do enigmático e talentoso David Bruno (db), com o já habitual diggin’ de samples e Logos com as suas rimas versáteis e intransponíveis, num disco que tem a capacidade de detalhar e retratar de forma única e original uma homenagem ao Porto, ao compor todos estes elementos é seguro afirmar que Santa Rita Lifestyle vai continuar a ressoar nas nossas cabeças e que se vai manter como o vinho do Porto, quanto mais velho, melhor.
Unplugueto – Allen Halloween
Por João Gabriel Ribeiro
Escrever este texto depois de saber que Allen Halloween acabou a sua carreira como rapper, como já tinha sugerido numa entrevista à produtora cinematográfica Som e Fúria, para se dedicar à profecia da fé tem ainda mais peso. Não só os seus discos como a sua persona são um marco na música nacional, e um daqueles momentos que o mainstream vai demorar décadas e décadas a reconhecer. Allen Halloween vem do gueto mas canta sobre o mundo como muito poucos, misturando a cultura das ruas com a fé em cristo, a misantropia dos discriminados com o amor pelo próximo da religião de uma forma absolutamente única.
Não é um artista fácil ou que pegue à primeira audição como não são os grandes génios da música. As suas letras, ultimamente editadas em formato livro de poesia, são um autêntico estudo antropológico que conta a história do lado de quem a sofre na pele. A redenção do crime, as necessidades que levam até esse caminho, a perversão das relações humanas entre pessoas da várias classes sociais são um tratado sobre marginalidade, no melhor sentido da palavra. Não são um incentivo ao crime, ou uma ostentação do consumo de drogas, são um incentivo à compreensão e um exercício brutalmente transparente e honesto. Tal como os seus ídolos como Zeca Afonso, de quem se revelara fiel seguidor nos últimos tempos, Allen Halloween fez música de real intervenção, provavelmente no tempo em que é mais difícil compreendê-la pela opacidade do que nos prende. Unplugueto é o último exemplar disso mesmo, desta vez revisitando as músicas de um modo mais despido de adereços, aproximando-se da estética do homem e da guitarra que querem mudar o mundo – como um revolucionário, como um profeta.
Sereia Louca – Capicua
Por João Gabriel Ribeiro
Ana Matos Fernandes nasceu no Porto e cedo começou a espalhar o seu nome pelas paredes em forma de graffiti. Entretanto estudou sociologia em Lisboa e começou um doutoramento em Barcelona mas foi mesmo no rap que pôs em prática todo o estudo académico, operando uma pequena grande revolução social. Sereia Louca, o seu segundo LP, confirmou a tendência de aceitação de uma voz feminina e do norte no universo do rap e valeu-lhe uma aclamação nacional que poucos rappers conheceram até hoje. Pela toada da sua escrita e pela sua abordagem, chamemos-lhe mais feminista, alcançou novos públicos, correu o país a tocar nos mais diversos palcos e desmistificou por completo a ideia que se ia solidificando de que o rap era uma cena só de homens.
No disco Sereia Louca, que conta com uma série de participações, Capicua brinda-nos com uma visão muito lúcida do mundo que a rodeia e, inteligentemente, recupera em versão acústica algumas das faixas mais icónicas dos registos anteriores. Entre tudo isto ainda lança o clássico multi-geracional “Vayorken” que vítima do seu próprio sucesso acabou por ofuscar a mestria de temas como “Sereia Louca”, “Lupa” ou das repescagens “Medo do Medo” ou “Casa de Campo”, temas onde a artista revela de forma exemplar o seu tom de voz único.
Assume Form – James Blake
Por João Gabriel Ribeiro
O mais difícil foi escolher qual dos discos lançados por James Blake nestes últimos 10 anos trazer para esta lista. Em boa verdade, quase todos encaixava aqui e a opção acabou por ser uma nota sobre a forma progressiva com que James Blake enfrentou os seus fantasmas sem tirar o peso das suas músicas. Se nos registos anteriores a toada era azul e depressiva, Assume Form, tal como o nome indica é o abandonar dos sentimentos descaracterizadores da depressão e da ansiedade com que Blake se confrontou e a assunção de todas as linhas que o caracterizam.
Musicalmente é provavelmente o disco mais completo do músico, recheado de influências e de colaborações, o que o torna, sem dúvida alguma, aquele que mais facilmente agrada a qualquer ouvinte. Assume Form é a transição perfeita do miúdo do underground londrino para o músico do mundo e apesar de alguns metros à frente daquilo que nos apresentara até aqui, revela, sobretudo na atitude, um artista com vontade de fazer mais, de continuar a inovar e com menos necessidade de criar entre loops repetitivos e quase hipnóticos o seu cantinho.
…Like Clockwork – Queens of the Stone Age
Por Pedro Caldeira
…Like Clockwork é o sexto álbum de estúdio da banda Queens of the Stone Age e foi lançado no dia 3 de junho de 2013. O álbum nasceu depois do vocalista, Josh Homme, ter passado pela experiência traumática de ter sido reanimado enquanto estava a ser operado ao joelho. Por este motivo, o álbum apresenta-se como uma instância um tanto mais melancólica e introspectiva do que os projetos anteriores da banda, que acabavam por ser mais barulhentos e menos profundos.
Para mim, este é o melhor álbum da banda porque as letras das várias faixas que o compõem estão extremamente refinadas e os instrumentais são todos muito únicos, sendo uma nova visão sobre o género do Stoner Rock.
Os três pontos mais altos do álbum são “The Vampyre of Time And Memory”, uma balada acerca de um amor complicado; “Smooth Sailing”, onde o narcisismo toma conta do vocalista, sobre a forma de uma música extremamente catchy e vibrante; e, por fim, “I Appear Missing”, que consegue consolidar todas as temáticas do álbum e apresentar o testemunho em primeiro mão do que o vocalista passou enquanto estava a ser operado.
The Life of Pablo – Kanye West
Por Pedro Caldeira
O sétimo álbum de Kanye West foi lançado no dia 14 de Fevereiro de 2014, mas até Junho sofreu bastantes alterações, em termos da estrutura de algumas das faixas e da própria tracklist. Por muito estranho que isto possa parecer, foi uma maneira de West fazer com que os seus ouvintes continuassem a ouvir o álbum como se fosse novo, mesmo tendo passado 4 meses.
Não é de todo o melhor álbum do reportório de West, no entanto, marcou-me imenso devido à questão que referi anteriormente e devido à sónica do próprio álbum, que quase que faz um showcase das aptidões do artista, abrangendo uma grande variedade de estilos.
As três melhores faixas na minha opinião são “Father Stretch My Hands Pt.1” onde West demonstra mais uma vez a sua química com Kid Cudi e a sua habilidade incrível para manipular samples de gospel, “FML”, onde o artista usa um beat extremamente despojado e reflete um pouco sobre a relação com a sua esposa, alterando o significado da expressão americana (Fuck My Life) para “For My Lady” e “Saint Pablo”, que curiosamente foi a última faixa a ser adicionada.
SATURATION Trilogy – BROCKHAMPTON
Por Pedro Caldeira
Construir um álbum coeso é algo difícil, mas fazer três é de mestre. No entanto em 2017, a auto-intitulada melhor boy band no mundo desde os One Direction, colocou a fasquia bastante alta quando lançou três projetos extremamente coesos e originais no espaço de tempo de apenas 6 meses. Foi um feito astronómico que com certeza continuará a ser mencionado daqui a muitos anos.
Os 3 projetos estão incrivelmente bem feitos e, ao contrário do que seria de esperar, bastante diferentes entre si. É muito fácil pegar numa faixa de um dos três projectos e tentar adivinhar a qual pertence porque cada um tem uma personalidade muito própria, seja nas barras de cada membro, seja nos instrumentais. Acredito que a razão principal pela qual a trilogia teve este sucesso, se deve ao facto de todos os membros colocarem o seu “heart and soul” nas músicas que criam: todos eles têm algo a acrescentar e todos eles querem “dar tudo” a quem está a ouvi-los. Entretanto o grupo lançou mais dois projectos, mas a SATURATION Trilogy continua a conter os álbuns mais ambiciosos e as faixas mais marcantes a nível sónico.
Plastic Beach – Gorillaz
Por Edgar Almeida
Certa vez, Noel Gallagher catalogou o som dos Gorillaz como música para crianças e o próprio Damon Albarn assentiu que a sonoridade que procurava não andava longe disso, pois interessava-lhe a inexistência de ideias pré-concebidas da infância.
Em Plastic Beach essa ideia é levada ao extremo, ouvindo-se uma panóplia de géneros de faixa para faixa, com participações especiais de artistas tão diversos como Lou Reed, Bobby Womack, Mos Def e Little Dragon, entre outros. Um álbum conceptual lançado mesmo no início da década cujo tema central, a poluição principalmente o plástico presente nos oceanos, é no seu ocaso ainda tão pertinente ainda para mais estando a sociedade mais consciencializada para o problema.
Os Gorillaz desde então produziram mais dois bons trabalhos, mas este álbum continua a ser o seu trabalho mais ambicioso e coeso até à data, marcando um ponto de viragem na maturidade do projecto.
Capitão Fausto Têm os Dias Contados – Capitão Fausto
Por Edgar Almeida
Os Capitão Fausto terminam esta década a gerar quase tanta admiração como desprezo, e até um pouco de embirração, em parte pelos anticorpos que criaram a tanta exposição que tiveram nestes últimos anos. E grande parte do seu sucesso é explicado por este disco que reúne um conjunto de canções pop, numa ruptura com o estilo pop rock psicadélico com ênfase nos instrumentais que vinham a apresentar desde o início da banda, com uma sonoridade polida que apesar de por vezes deixar transparecer demasiado as suas inspirações (Beatles, Brian Wilson, Robbie Williams até), pela sua simplicidade descarada acabou por se tornar marca própria da banda.
Esta nova sonoridade é elevada a um ponto mais alto pelas letras relaxadas e pueris que remetem para uma adolescência tardia que não tarda em findar, o que para uma geração que viu as suas expectativas adiadas vivendo num limbo existencial quanto à posição que ocupa na sociedade soou ao álbum certo no momento certo, criando um vínculo com a banda que a tornou uma das grandes vencedoras da década.
You Won’t Get What You Want – Daughters
Por Duarte Cabral
Pelo meio da vaga hardcore que assolou a cultura underground americana na década passada, os Daughters emergiram como sendo um dos seus projectos musicais mais notórios. Liderados pelo vocalista Alexis S.F. Marshall, a banda atingiu a infâmia através dum som (ou barulho) preenchido por guitarradas excruciantes, batidas desorganizadas, e berros desalmados e inumanos, elementos que tiveram o seu apogeu no terceiro álbum da banda, o auto-intitulado Daughters, lançado em 2010, que coincidiu também com o desmembramento da banda.
Porém, após oito anos de reavaliação interna e de fermentação criativa, a banda acabou por lançar um dos mais tremendos álbuns da década. You Won’t Get What You Want continua a encapsular todo o ethos da banda, mas descarta uma boa parte do seu anterior caos desmedido em favor grooves decadentes e repetitivos, paisagem sónica complementada por letras que tanto têm de belo como de agoniante, entregues em pratos vocais por um Marshall que assume agora uma postura perfeitamente (des)equilibrada entre o animalesco e o desesperadamente humano.
Honestamente, não acho que haja mais intenso e viciante negrume auditivo que uma pessoa pode ouvir nos tempos que correm.
Teens of Denial – Car Seat Headrest
Por Duarte Cabral
Há poucos músicos que conseguem verdadeiramente encapsular a condição do jovem moderno no seu trabalho: todos dilemas, as atribulações, o êxtase, a pretensão ignorante, o existencialismo (ocasionalmente exagerado)… Will Toledo consegue-o, e consegue-o melhor que ninguém.
Com Teens of Denial, o décimo álbum dos Car Seat Headrest (primeira encarnação do projecto em formato de banda completa), Toledo traça-nos a linha fina e intimidante que separa a adolescência da vida adulta, recorrendo a constantes dinamismos instrumentais, que tanto têm de explosivo como de carinhoso, com certas músicas a assumirem uma estrutura que só pode ser descrita como de “indie rock progressivo”, com músicas que explodem bem para lá da marca dos 6 minutos, e que se recusam a assumir estruturas de verso-refrão-verso-refrão, partindo em tangentes sónicas que tanto têm de surpreendente como de cativante.
Haverá gente a argumentar que a versão reestruturada e re-gravada de Twin Fantasy, sexto álbum do projeto, lançada em 2018, é a obra-prima da banda. Mas é um trabalho que, sem o pilar/degrau que é Teens of Denial, provavelmente nunca iria atingir o patamar em que se encontra.
A Seat At The Table – Solange
Por Bernardo Pereira
Foi em 2016 que a irmã mais nova de Beyoncé nos brindou com o álbum A Seat At The Table, o terceiro disco da cantora, escritora e produtora norte-americana. 2016 marcou o fim da inconsistência de projetos já lançados por Solange, algo que começou com uma sonoridade mais pop e com potencial de passar na rádio e transitou em 2012 para o R&B e neo-soul com o lançamento da EP True, ano que marcou e definiu aquele que seria o estilo mais ambicioso e consistente de Solange. A Seat At The Table marca o crescimento da mesma, um significado histórico na mensagem que pretendeu passar e a alternância em momentos mais calmos e funky.
Com participações de Lil Wayne, Sampha, BJ The Chicago Kid, Q-Tip e outros, este álbum o poder de uma voz num movimento contra o racismo e a supremacia envolvente na América, Solange dá o testemunho da sua experiência pessoal como mulher negra e a cultura que viveu e ainda hoje vive, num convite informal para os ouvintes puxarem de uma cadeira e sentir e ouvir a dor e a cura daquilo que tem para contar. F.U.B.U, Mad, Don’t Touch My Hair e interlúdios onde os próprios pais falam mostram a profundidade dos seus “encontros” com o racismo e acaba por passar uma mensagem que é intemporal e mais urgente do que nunca nos tempos que correm, inclusive o timing de lançamento aponta para isso porque marcou a altura que Obama chegou ao fim do mandato e muitos tiveram de contar com o seguimento das falsas esperanças que marcaram e marcam os 8 anos seguintes. Uma abordagem ousada mas sobretudo moderna numa luta contra o sistema, o racismo e a brutalidade policial que há muito é sentido pela comunidade negra e significa uma esperança na mudança de pensamentos e percepções, algo que ainda tem um longo caminho a percorrer mas que é possível e sonhado por muitos.
Com uma produção intransponível, forte presença de elementos Neo-Soul, Jazz e R&B e uma reflexão profundamente pessoal sobre raça e identidade sem qualquer desculpa política, A Seat At The Table é muito mais do que “conquistar o lugar na mesa”, é o distanciamento da necessidade de ter um e a força de vontade para construir o próprio lugar de merecimento.
Random Access Memories – Daft Punk
Por Bernardo Pereira
Os reis do House francês lançaram em 2013 aquele que foi considerado por muitos o melhor álbum da carreira da dupla composta por Thomas Bangalter e Guy-Manuel de-Homem Christo, criando um buzz que começou à volta da primeira música lançada e que antecipava o álbum, “Get Lucky”. A música conta com as vocals de Pharrell Williams e foi hit de sucesso nas rádios, playlists e ‘internetes’ desta vida, mas a fórmula para conceber autênticos ‘bangers’ já estava presente na produção artística da banda e também nas nossas memórias de infância, quem não se lembra de crescer a ouvir “Around The World”, “One More Time” ou “Harder,Better,Faster,Stronger”?
Random Access Memories encontra influências tanto nos seus álbuns anteriores que sempre tiveram a prevalência do EDM como sons e produções dos anos 70 e inícios dos anos 80, com aquele elemento surpresa a que os Daft Punk já nos habituaram. RAM é uma mistura de disco, prog-pop, soft-rock e pop-pop que é produzido e afinado ao detalhe, onde a dupla procurou ter a melhor qualidade e não poupou no orçamento, gastando mais de um milhão de dólares que foi desde a escolha do local onde gravar, os coros e orquestras a incluir, um quase evitar do uso de samples e um elenco de luxo com nomes como o já mencionado Pharrell Williams, Nile Rodgers, Julian Casablancas, Panda Bear e o ‘pai’ do disco Giorgio Moroder.
Decerto que os singles mais intemporais continuam a ser “Get Lucky” e “Lose Yourself To Dance” mas RAM como um todo mantém o estatuto de álbum ambicioso, que traz consigo uma homenagem ao passado e soa indiscutivelmente ao presente e ao futuro, num verdadeiro “sacrifício” da banda ao abandonar um pouco o house e techno e no pico da sua carreira e chegada ao panorama comercial adoptarem uma abordagem mais arriscada através da inclusão de uma panóplia de géneros e uma narrativa incrível do inicio ao fim.
channelORANGE – Frank Ocean
Por Daniel Hoesen
Embora os headlines na altura do seu lançamento se tenham interessado mais na sua sexualidade (e na do Tyler que também começava a incomodar as cliques mais conservadoras do hip-hop), este álbum veio para abalar as placas teutónicas do mundo da música. Aos 25, o Frank conseguiu algo super curado, hiper-estilizado, subliminarmente produzido e de uma espiritualidade interiorizada (Bad Religion) e decadente (Super Rich Kids mata-me). O Frank afirmou-se como um singer-songwriter mestrado e natural. As faixas fazem todas sentido, o alinhamento bate todo, tem aquele R&B com sabor açucarado e aquela cinematografia surreal de Los Angeles. Aliás, acho que a melhor palavra para descrever o seu talento e relevância, é na verdade uma palavra italiana – sprezzatura – significante de talento natural e sem esforço, honesto e desprendido de pretensa, casual mas real.
Paralelo ao lançamento do disco, saiu também a sua carta aberta no Tumblr, que ainda hoje faz sentido – leiam aqui. Incisiva, pessoal, honesta e internet-cultured, não foram precisas flash interviews, press releases ou merdas dessas, bastou sim um simples screenshot de um editor de texto, só isso, só ele, só para quem precisava de saber, só para os seus. Um quasi-manifesto geracional que nos fala de identidade, de pertença, de gratidão, de quietude, de ‘estranhas formas de vida’ e que nos diz que é ALRITE ser-se assim, ser-se nós, ser quem somos e quem queremos ser.
A nível pessoal, este acabou por ser um dos álbuns que mais expandiu a minha paleta musical, soltei-me das amarras do underground (que até então era o único sinónimo de real e ‘como deve ser’ na comunidade hip-hop) e abri uma playlist para esta onda – SOFTcore – que acabou por ditar muita da música que consumi nos anos que se seguiram (como Blood Orange, Sampha, Solange entre outros). Acho também que o tal sismo musical que channelORANGE criou acabou por redefinir a cultura mainstream, arranjou espaço no meio da fast music e do pop barato para ‘música boa’, genreless, sentida e com sumo (como diz o STK).
‘Trabalho & Conhaque’ ou ‘A Vida Não Presta & Ninguém Merece a Tua Confiança’ – Nerve
Por Daniel Hoesen
Em termos estéticos, foi ao que já nos tinha habituado, aquele rap metaleiro, aquele indie trash do hip hop tuga, aquele som ‘morto-vivo’ com selo do Notwan, do próprio Nerve e outros, mas se o Eu Não das Palavras Troco a Ordem em 2008, nos fez construir fantasias (Lápis de Cera) e nos deu super poderes alucinados ao som do borbulhar do bongo cough com o T&C/AVNP&NMATC entramos em modo paranóia, temos fumo a mais na cabeça e as persianas fechadas há meses, estamos sem luz e sem vontade. É uma realização niilista e depreciativa de que colamos o pistão e precisamos de uma resolução, de um pontapé no cu.
Acabava eu o meu mestrado, e o Sacana Nervoso não me motivou de maneira alguma a entrar no mercado de trabalho, mas mentalizou-me que é esse o jogo – e ele tal como eu e muitos de vocês, ele um gajo que vive na/da ‘indústria criativa’, mostra-nos a nossa hipocrisia, fala-nos na verdade da mentira, da vontade de morrer quando se trabalha para os problemas a que nos opomos – yup, a vida não presta! Romantiza aquela vontade alarmante de estar sozinho (Monstro Social), de ser criativo para nós próprios, de fazer sentido dos nossos demónios e fantasmas, vilificando ao mesmo tempo a formatação e monotonia das rotinas, das responsabilidades – é tipo um check-in na prisão do capitalismo, dos contratos e empréstimos, das contas da luz, da política laboral, argh e outras merdas dessas.
Inconfundivelmente, de um autorismo ditatorial e uma verticalidade estética absurda em tudo o que toca, é tudo Nerve – as letras, os instrumentais, o artwork (como já acontecia em ENPTO) – é a imagem daquele hustle autofagista. Enquanto, há rappers que quando entram em modo ego-trip apontam ao Olimpo (e levam-te com eles, pensem workout motivacional), o Nerve não – ele cria uma espécie de Fight Club mental que se significa na megalomania falhada, no que não fizemos e na insegurança. Tudo com direcção Kubrick.
Mas anyway… são todas aquelas referências ao mundano, ao fantástico, ao intergaláctico, ao sublime, ao objecto e ao sujeito, à arte moderna (Se eu fizesse o pino, a arte ressuscitava; E um urinol voltava a ser um urinol) que fazem deste um álbum (que embora não viva numa playlist ou se oiça regularmente) que fará sentido daqui a 10, 20 ou 30 anos. Um gajo nos seus 26 anos em 2048, enquanto Data Analyst não sei do quê, provavelmente de GMO shit para a Sonae, no seu apartamento T0, pago a recibos verdes, vai sentir isto.
Hopelessness – Anohni
Por João Gabriel Ribeiro
Hopelessness foi ou disco de estreia de Anohni (fka Antohny Hegarty) e o única da artista britânica até agora. Apesar de não ser um disco que se recorde muitas vezes é um testemunho brutalmente honesto musicado de uma forma particularmente apelativa. Misturando um lado pop com alguma electrónica, Anohni canta com uma voz magistral sobre temas com um pesar profundo na sociedade actual, transportando o disco para outra dimensão no panorama contemporâneo.
Hopelessness não é um simples disco de música de electropop como surge categorizado por aí, mas antes um protesto brutal e honesto contra a paranóia pós 11 de Setembro, oscilante entre a ironia sagaz de faixas como Drone Bomb Me ou a frontalidade política do tema Obama. O disco, lançado em 2016, fala sobre temas que estavam em voga na altura mas, de certa forma, antecipa aqueles que são os debates em cima da mesa para os próximos anos: desde a vigilância à crise ambiental, passando pela falta de confiança na classe política e pelo conflito entre gerado pelo sistema vigente entre a responsabilidade colectiva e individual.
Cupid Deluxe – Blood Orange
Por João Gabriel Ribeiro
A obra de Devonté Hynes aka Blood Orange é de uma qualidade tão constante que se torna difícil decidir qual dos seus discos merecia ser escolhido para uma lista deste género. Cupid Deluxe é o seu segundo longa-duração, depois de Coastal Grooves, mas pode dizer-se que é o primeiro grande momento de afirmação do músico. Apesar de soar a pop ligeira, Cupid Deluxe é um álbum de camadas que se vão revelando e dando a conhecer o grande músico que nos anos seguintes viria noutros registos a revelar todas as facetas que o tornam tão completo – quer na produção de outros artistas quer, ultimamente, na composição clássica para a banda sonora de um filme. Este registo sonoro parece transportado no tempo ou maravilhosamente conservado desde os longínquos anos 1980 mas as letras que o compõe mostram uma intencionalidade do processo – como se a estética servisse para facilitar o exercício de colocar os temas em perspectiva – tal como um realizador procura colocar uma história noutro tempo para acentuar as nuances que lhe interessam mais.
Cupid Deluxe é um disco de Blood Orange mas onde a sua presença não é sufocante ou, digamos, proprietária. O aparecimento de Caroline Polachek logo no tema de abertura, de Despot em “Clipped On” ou de Skepta em “High Street” revelam a visão ampla de Blood Orange, como se mais do que um músico quisesse ser um encenador da sua longa metragem sonora.
El Mal Querer – Rosalía
Por Rita Pinto
Não é o primeiro da artista, mas foi o disco que a deixou nas bocas do mundo e a fez cruzar fronteiras linguísticas. Com El Mal Querer, Rosalía globalizou o flamenco, questionando o que significa ser jovem e espanhola, num país – como tantos outros – dividido entre a identidade regional e encantado com a canção da sereia da globalização. A sua música fala a linguagem a do flamenco tradicional com o sotaque moderno do R&B e do hip-hop e umas pitadas de electrónica, que não só a colocam no espectro vasto da pop, como fazem de si uma das mais frescas e visionárias – e tão necessárias – vozes do género na actualidade.
El Mal Querer fala da história de uma mulher que se vai libertando da prisão em que vive por causa dos ciúmes do marido, mas mais do que de emancipação, fala do poder feminino. À medida que avançam, as canções mostram como a mulher se solta do homem controlador e controla ela a sua própria vida: “a ningún hombre consiento que dicte mi sentencia”. O feminismo do seu trabalho, aliado à latinização da cena musical actual, terão certamente contribuído para o sucesso que começou com este álbum mas parece não ter fim próximo. E mesmo que esse êxito continue e outros trabalhos surjam, El Mal Querer vai sempre valer a pena revisitar, pela diferença e audácia de reinventar uma tradição.
IGOR – Tyler, The Creator
Por Rita Pinto
Discutimos entre nós que álbum do rapper de Los Angeles escolher para esta lista, se Igor, se Flower Boy. Mas se é para escolher discos que merecem ser ouvidos no futuro, faz sentido pensar naquilo que o último álbum de Tyler The Creator representa para a sua carreira. IGOR é aquele passo natural no seu ciclo evolutivo, o produto que parece ter nascido depois de tiradas todas as lições possíveis dos seus trabalhos anteriores para as aplicar nesta sua missiva confessional.
“Não oiçam isto à espera de um álbum de rap”, avisou-nos na véspera do seu lançamento, e o que temos é uma espécie de obra prima orgulhosamente produzida, escrita e organizada por um músico que se descolou do seu género original para se elevar a autor. Em IGOR, Tyler deixa de ser só mais um rapper e estabelece-se como um artista maior. Farta-se de cantar sem se preocupar se soa imaculado, se as músicas têm a estrutura tradicional de uma canção ou se mistura géneros nos quais nunca pegou antes. Sem se preocupar com nada, na verdade. O álbum faz absoluto sentido como um todo. É aconchegante apesar de também ser muitas vezes agressivo. Chega a ser mesmo bonito – Tyler escreve sobre tentar perceber o amor. Tem 12 faixas muito próprias mas 100% interligadas. Tudo porque ouvir IGOR é como assistir a um espírito conflituoso a fazer as pazes consigo mesmo, a um perfeccionista a dar forma às suas ideias mais radicais, em paz. Além de tudo isto, tem letras e melodias que vão ficar-te na cabeça como um vício. Soa indubitavelmente bem, e há-de soar melhor ainda na praia. Destaque para “Earfquake”, “New Magic Wand”, “I Think” e “Igor’s Theme”. E “What’s Good” e “Running Out Of Time”. Todas, basicamente.
KSX2016 – Keso
Por João Gabriel Ribeiro
Vários factores podem levar um disco a figurar nesta lista – a qualidade, a marca do tempo bem impressa ou, por outro lado, a sua relevânia à luz das discussões contemporâneas. KSX2016 verifica todas elas. O disco que trouxe Keso de volta aos radares depois uma paragem de cinco anos, é um registo quase diaristico desses seus anos de pausa, síntese das frustrações, dúvidas e certezas que a vida lhe fora ensinando. Lançado depois de O Revólver Entre as Flores (2012), que pela qualidade e inovação bem podia destronar este que escolhemos, KSX2016 é um registo menos subtil e mais carregado de intenção – ou de várias intenções que se interligam na sua pessoa e se têm revelado nos últimos anos, por exemplo com a criação do recente Natal do Marginal.
KSX2016 foi inteiramente produzido num mpc, uma estreia para o rapper que quis assim criar algo que o pusesse sozinho fronte ao mundo. É dessa posição e embuído de um espírito muito próprio da cidade do Porto, que Keso faz questão de sublinhar, que nos fala sobre temas tão caros como a gentrificação, a precariedade, ou os caminhos aparentemente fáceis para o sucesso. Mas não o faz sozinho, para o disco convida vários rappers da sua zona, nem todos no activo, e de diversos quadrantes, que ajudam a pintar uma tela heterógenea e, se quisermos, inclusiva – como se Keso por momentos fosse curador da sua própria música e nos mostrasse no enquadramento certo as barras de um rapper underground que de outra forma provavelmente não descobririamos.
KSX2016 é um registo culto, informado e, de certa forma, decidido mas num registo próprio que não procura sobrepor-se aos demais. Um disco que procura as várias fronteiras do rap – temática e estilistica – e não se limita à estrutura clássica deste, de que muitas vezes se apropria dela para ao seu jeito subversivo acrescentar mais qualquer coisa. Um disco frontal num mundo onde ‘ser honesto é um defeito sério’.