Definir o que é ou não arte é uma pergunta na categoria do irrespondível; se quisermos, podemos mesmo colocar esta indagação no mesmo saco que outras, como sobre quais são os limites do humor ou (mais metafísica ainda) qual o sentido da vida. Estas três questões, para além de não terem à vista uma resposta possível, têm outra particularidade em comum: são a matéria para o enriquecimento das áreas sobre as quais reflectem.
Tal como o humor vive a transgredir limites – seja na forma como por vezes no conteúdo, alvejando alguns intocáveis – ou como o sentido da vida é algo que cada um inventa ou assimila para se sentir melhor com a sua passagem na Terra, definir o que é a arte, especialmente a que nos é contemporânea, é um jogo interactivo entre artistas e os seus circuitos de validação. No fundo, estas questões são a pedra de toque para tomarmos consciência da subjectividade (ou das múltiplas subjectividades) inerentes à experiência humana e, talvez por isso, nos custem tanto a aceitar.
Vejamos algumas nuances em jeito de reflexão sobre este fenómeno, deixando de parte os gostos pessoais de cada um.
“Qualquer um fazia isso”
O primeiro caminho que podemos explorar é o da desvalorização do artista, a do “qualquer um fazia isso”, um pensamento comum mas altamente falacioso e que se constrói com base numa hiper-valorização do que é a execução técnica e numa desvalorização tácita de todas as nuances que compõem uma situação deste género no mundo moderno. Se quisermos uma analogia simples de percebermos, compare-se esta peça com aquele golo fácil à boca da baliza que o ponta de lança que custou milhões falhou escandalosamente.
Casos como este são semelhantes mas com maior subjectividade – o artista, Marcel Maurizio Cattelan, tal como o jogador, vale pelo seu contexto mas nem é bem essa a questão; foquemo-nos antes na sua capacidade de decisão, uma espécie de expressão radical do seu livre arbítrio enquanto artista. Se é certo que Cattelan só prendeu uma banana à parede com um bocado de fita adesiva, ainda é mais certo que podia ter feito, como já fez anteriormente, obras valiosas (ou compreensíveis) do ponto de vista técnico ou mais óbvias do ponto de vista simbólico.
Em ambos os casos, talvez Cattelan – embora provavelmente isso pouco lhe interesse – tivesse gerado um feedback mais consensual mas não abria a porta a uma discussão que pode ser tão rica.
120 mil euros, absurdo?
Aproveitemos a deixa para falar não sobre o valor mas sobre o preço da peça e mais uma vez trazer à equação o contexto do artista. Se 120 mil euros parece absurdo por esta peça, vale a pena lembrar que outras de peças de Cattelan já atingiram valores verdadeiramente estratosféricos. A escultura de Hitler ajoelhado foi arrematada por cerca de 17 milhões de euros, a avestruz com a cabeça enfiada no chão por quase dois milhões e, entre as obras acima do milhão, conta-se mais uma mão cheia.
Neste contexto, é mais fácil perceber o valor que esta peça pode ter não por si mas pelo corpo de trabalho em que se insere e se isso pode continuar a parecer absurdo, comparemos, por exemplo, com a nota escrita à mão por Einstein com apenas três linhas que foi recentemente leiloada por 1,5 milhões de euros. Isto tudo para dizer que, ao contrário da nossa pulsão para ridicularizar esta peça e, quase, culpabilizá-la por custar o que custou, a banana com a fita adesiva intitulada “Comediante” é mais um reflexo do que uma presença.
Como o Urinol de Duchamp ou as latas de Sopa Campbell de Wharol, pelo seu carácter em contra-senso, a obra reflecte mais o estado das coisas do que propõe o que quer que seja. De resto, foi este o argumento que levou os compradores a pagar por ela – sabiam que ia gerar emoções e provocar debate, tornando-se num objecto icónico no mundo da arte. Icónico, cá está, não no sentido contemplativo mas sobretudo significativo.
A banana presa com fita adesiva pode ser um trabalho simples – é irrefutável – mas o debate que gerou ao entrar no circuito de validação artístico e posteriormente no debate público, conferiu-lhe um valor muitíssimo superior. Tal como com Duchamp ou Wharol, não se resolveu a questão sobre o que é ou não arte mas estabeleceram-se algumas pistas do que a arte significava em determinado momento, não se espere que a banana de Cattelan seja um axioma sobre que é a arte contemporânea, mas vejamos o papel que ela tem no mundo actual. Falar de expectativas leva-nos para outro ponto do texto.
Expectativas
A ideia de que uma obra que vale X deve ter Y características é uma ideia que foge à essência do que deve ser a arte; num devaneio livre, arriscamos associá-la à invasão quase pornográfica das imagens nos nosso dias, numa intermediação por algoritmos que nos habitua cada vez mais ao consensual e previsível. Ninguém estranharia se outro quadro qualquer fosse vendido por este preço que, aliás, é consideravelmente modesto para o panorama artístico — nem seria notícia. Por outro lado, provavelmente também não se estranharia se fosse Banksy ou outro artista a quem cedemos o estereótipo da subversão a ter esta ideia.
A ideia base desde raciocínio é que estamos mais dispostos a aceitar aquilo que esperamos, como é normal, mas o fazemos numa lógica subvertida pela necessidade de consensos e por um espaço público ocupado por personagens estereotipadas, o que se quisermos revela a necessidade de resgatarmos o espaço individual para a reflexão.
Reflexão e scroll
Se é verdade que muita gente comentou sobre a ironia da banana, quantas dessas pessoas terão pensado no que essa peça quis dizer, como pensaram por exemplo perante a a sala azul de Fargo, Blue de James Turrel no CCB, perante os cubos metálicos de Donald Judd ou a fotografia de uma folha de papel em Paper Drop de Wolfgang Tillmans. A proximidade do objecto ao nosso quotidiano, a tendência para o comentário e a dissolução do espaço individual de reflexão fazem com que no espaço público online, onde todos nós contactámos com a peça, o populismo dos argumentos simples se sobreponha a qualquer reflexão construtiva que se possa propor (como esta).
Esta ideia pode até ser confirmada se pensarmos na forma como em pouco tempo e sem que o seu significado fosse amplamente debatido, a sua estética foi instantaneamente assimilada por marcas e instituições com o único objectivo de gerar interacções nas redes sociais. Esta assimilação é simbólica da forma como o espaço público se organiza e se auto-sabota, convertendo algo que é difícil de perceber ou que simplesmente não é consensual mas é polémico, num device com objectivos dispersos — se quisermos, num meme. Então se a peça era básica, porque é aquele que post da marca de preservativos é genial? Ou a publicação da instituição de segurança pública?
Tudo isto é um jogo de expectativas, uma sala de espelhos, onde esperamos no sossego das nossas contas, num movimento cíclico do nosso scroll, que nos dêem apenas e só aquilo que queremos e esperamos, enquanto achamos que somos donos e senhores de um espírito crítico infalível que nos reduzirá a isso mesmo: movimentos cíclicos em espaços confortáveis, onde nunca descobriremos o que é a arte, onde nos rimos de coisas que têm pouco de humor e onde diluiremos qualquer sentido para a vida.