Na primeira cena da nova série da Netflix, Unnatural Selection, o brilho verde, quase alienígena, das bactérias bioluminescentes reflecte na cara de David Ishee, enquanto segura uma placa de Petri sobre uma luz LED. Tudo isto num barracão pequeno e escuro, perdido algures no Mississipi, onde Ishee passa noites e fins-de-semana numa espécie de trabalho de corta-e-cola com genes gelatinosos e esperma dos cães que cria há vários anos.
Ishee, que trabalha numa usina a tempo inteiro e cria cães em paralelo, é um biohacker que está a tentar criar cachorros que brilhem no escuro, para provar que consegue alterar os genes dos animais e daí evoluir para edições genéticas que lhe convenham. “Sempre achei que obter e manipular ADN custasse milhões de dólares, e que fosse preciso um laboratório enorme, uma equipa de cientistas investigadores e tudo mais”, diz. “Mas ficariam surpreendidos com o que se pode encontrar no YouTube hoje em dia.”
A nova série do Netflix expõe isso mesmo, o mundo da tecnologia de edição genética CRISPR, uma das maiores descobertas científicas de sempre, com potencial para mudar o mundo, mas que mesmo assim parece passar ainda meio despercebida nos dias que correm. Esses dias podem estar mais perto do fim com a estreia de Unnatural Selection e dos seus quatro episódios, que, a um ritmo tão alucinante quanto interessante, nos apresenta uma comunidade de biohackers (uma espécie de hackers da ciência) norte-americanos que tem estado a desafiar as regras da experimentação científica como a conhecemos e a praticar ciência em casa, literalmente.
Importa esclarecer o que é o CRISPR. De forma simples, podemos dizer que se trata de uma tecnologia que pode ser usada para editar genes. A técnica pioneira pode ser usada para substituir partes de uma sequência genética ou apagar outras – por outras palavras, e numa hipótese mais objectiva – é um processo que permite identificar e eliminar (ou substituir) parte da informação contida no ADN de um ser, inibindo a expressão de determinada característica ou potenciando outra. “Cortar” o gene da Esclerose Multipla em humanos, tornar os mosquitos resistentes à Malária ou desactivar células cancerígenas, ou criar tomates picantes são alguns dos usos em estudo e que foram dando fama à descoberta.
Já havia outras formas de editar os genes de algumas plantas e animais antes de o método CRISPR ter sido apresentado publicamente em 2012, mas levavam anos e custavam centenas de milhares de dólares. O CRISPR tornou tudo mais barato e fácil. Num futuro não muito distante, muitas das plantas e animais em quintas, jardins ou casas perto de nós, poderem ter sido alteradas com CRISPR. Aliás, já existem em circulação alimentos CRISPRados. No Shifter falámos-te dos tomates picantes, por exemplo, que no início deste ano foram notícia. Um grupo de cientistas brasileiros e irlandeses propõe alterar o ADN dos tomates para activar os normalmente desactivados capsaicinóides, um composto com inúmeros benefícios para a saúde humana, que existe nos pimentos. Em 2017, falámos-te do primeiro embrião geneticamente modificado nos Estados Unidos e, um ano mais tarde, das experiências da China, que, desde 2015 que recorre ao CRISPR para editar genes humanos para o tratamento de doenças como cancro.
Nos três casos acima mencionados o problema era o mesmo: a ética. É que a ciência não parou, ao longo do tempo, as técnicas de modificação genética têm vindo a ser aperfeiçoadas, tornando-se mais rápidas, baratas e seguras mas a discussão sobre o que é ou não moralmente correcto continua acesa, principalmente dado o potencial transformativo do CRISPR na área da medicina.
Mas, e se a alteração genética de um fruto ou planta acabar por criar um novo produto, ou aperfeiçoar um antigo, para determinado objectivo comercial, permitindo, quem sabe, a empresas como a agro-química Monsanto registar patentes para determinadas modificações de genes que só elas poderão operacionalizar? E se a modificação dos genes dos nossos filhos para prevenção de doenças evoluir para o aparecimento de designers de bebés e acabarmos por interferir com a nossa linhagem genética, é fácil perceber a complexidade do assunto, certo?
O caso chinês que te apresentámos foi considerado prematuro e anti-ético, mas ainda hoje se discute o quanto esse avanço tecnológico pode vir a beneficiar as crianças no futuro.
Filmada entre 2016 e 2018, Unnatural Selection narra as ambições e lutas de cientistas, médicos, pacientes, conservacionistas e biohackers, enquanto desafiam a evolução natural do mundo e tentam tirar esse controlo à natureza. Todos eles navegam em profundos dilemas éticos, muitas vezes presos a ideias tradicionais, num mundo que tornou possível reescrever o código genético de qualquer organismo, incluindo seres humanos. “O nosso principal objectivo é criar uma discussão em torno destas tecnologias”, diz Joe Egender, um dos co-criadores da série, com Leeor Kaufman. “As pessoas podem ficar entusiasmadas. Ou podem ficar assustadas. Mas pelo menos isso vai significar que estão a conversar sobre o assunto, aprendendo e entendendo o que está por vir. “
De aldeias devastadas pela malária no Burkina Faso, a clínicas de fertilidade na Ucrânia, Unnatural Selection leva os espectadores a mergulhar numa revolução estranhamente adormecida. Com um balanço equilibrado entre as opiniões de ambos os lados da moeda, a série viaja entre momentos emocionantes e faz-nos questionar os nossos próprios princípios e crenças, explicando muito bem a componente científica da questão, mesmo para quem pouco percebe do assunto. Há muito espetáculo, mas também há doses refrescantes de realidade e dúvida.
Para responder às várias questões que te podem surgir após veres a série, consulta aqui uma série da Wired sobre CRISPR e a batalha entre biohackers e laboratórios.
You must be logged in to post a comment.