Foi fugaz a presença de Ibsen House de Simon Stone e do Internationaal Theater Amsterdam em Lisboa, no palco Almeida Garret do teatro Dona Maria II. Mas aqueles que tiveram a oportunidade de espreitar pelas suas paredes de vidro, que permitiam observar a intimidade da família Kerkman até onde a curiosidade permitisse não desviar o olhar, tiveram o privilégio de assistir a um espetáculo de rara qualidade. Um constante desafio a explorar recantos mais angustiantes do ser humano, naquele jeito que dá a sensação que só os nórdicos conseguem fazer — apesar da peça ser escrita e encenada por um australiano numa companhia holandesa, é inspirada numa série de peças menos conhecidas do dramaturgo norueguês Henrik Ibsen, tal como o nome sugere.
A casa a que se refere o título era efectivamente um edifício, em tamanho real, um cenário de 12 toneladas transportado em 4 camiões TIR desde a Holanda, montado numa plataforma giratória em cima do palco da sala maior do Teatro Nacional. Ao girar ia revelando todos os recantos à medida que a trama decorria em constantes saltos temporais, recurso magistral para nos dar a conhecer a sua história. A Casa não é apenas o local onde tudo se passa, mas a personagem principal da narrativa, ser inanimado que se transforma ao longo de 52 anos traduzidos em 3h35 de peça, e que tem um efeito notável no comportamento e desenvolvimento dos personagens de carne e osso.
Em Ibsen House acompanhamos a vida de 4 gerações da família Kerkman na sua casa de férias. Esta casa construída pela empresa da família é a salvação de uma firma decadente, transportando-a para os novos tempos e dando-lhe um renome que dará a um dos irmãos da família, sócio e arquitecto principal, a aura de génio e o título de patriarca de família. A estrutura temporal não linear da peça e a quantidade de personagens faz com que seja difícil escolher personagens principais, mas será sem dúvida este irmão, Cees Kerkman, o centro dos acontecimentos. São os seus actos e a reacções que despoletam que nos surpreendem cada vez mais, à medida que vamos espreitando para dentro da casa.
António Lobo Antunes diz que o espetáculo da cobardia é horrível e fisicamente feio, pois despoja o ser humano de toda a dignidade. Em Ibsen House esse espetáculo está sempre presente como uma doença. É a cobardia que tudo envolve e abafa acabando por conduzir os acontecimentos até a um culminar trágico. Pela incapacidade que os membros da família têm em desafiar o inimigo interno que os tiraniza com o seu poder, que os manipula e abusa física e psicologicamente, não sendo capazes de arriscar a sua vida aparentemente perfeita para se rebelar e expor os seus segredos mais vergonhosos fazendo o que acham moralmente correcto, acabam por se tornar cúmplices dos seus actos hediondos que com uma ironia cruel acabarão por destruir completamente as suas vidas e o seu legado, deixando o espectador num misto de ódio visceral e pena pelo destino destes seres que caem de podres corroídos pelo desespero a um ponto de serem incapazes de autocomiseração.
A doença demonstra-se quando todos escolhem ignorar os múltiplos gritos de ajuda, escolhendo cultivar uma censura que impõe um silêncio ensurdecedor tornando os vários personagens em personificações do cenário onde tudo se passa, carcaças transparentes incapazes de evitar o escrutínio tentando isolar-se o mais possível para esconder os seus pecados. Esse pacto de silêncio insuportável leva às diversas fugas para a frente e para os lados, que são retratadas pelos que não conseguem mais lidar com o peso da inação, muitas vezes acompanhadas por comportamentos destruidores na sua procura de um conforto e remédio para a culpa que nunca os larga, apesar de serem eles próprios vítimas do crime original. Por muito que tentem afastar-se acabam sempre por tornar à casa, atraídos por tudo aquilo que ficou por dizer e que mantém impunes todos os actos que os aterrorizam sem cessar, em tentativas vãs de busca pela redenção.
Será difícil esquecer tão cedo a experiência que foi espreitar os horrores escondidos na Ibsen House, a casa que girava como um inofensivo carrossel, mas que alicerçada numa cova funda de silêncios culpados nos atirou para uma viagem de montanha-russa tão petrificante que nos sufocou os gritos antes de se materializarem.
Texto de Edgar Almeida