Talvez Zuckerberg ainda não tenha ouvido falar em Platão e na famosa alegoria da caverna. No escuro, agrilhoados, vivem aqueles que acreditam que as sombras são o mundo real, não sabendo – e não podendo saber – de um mundo lá fora cujos reflexos vão vendo na parede.
Mark Zuckerberg acredita que o Facebook não deve fazer fact-checking a anúncios políticos. Diz que não compete à sua plataforma verificar a credibilidade dos mesmos. “Numa democracia as pessoas é que devem decidir o que é credível, não as empresas tecnológicas”, sugeriu durante um discurso na Universidade de Georgetown, aludindo ao princípio da liberdade de expressão – e esquecendo, aparentemente, todas as polémicas que marcaram a história recente da sua plataforma em matéria de interferência eleitoral.
Como pode alguém decidir o que é credível quando recebe propaganda política baseada no seu perfil, nas suas amizades e nos seus gostos? Tem realmente as ferramentas para o fazer? Podemos achar que isto não é um problema, com tudo o que se sabe sobre viéses cognitivos (ver, por exemplo, viés de confirmação), efeitos da bolha e as consequências do micro-targeting (capacidade de dirigir publicações a alvos escolhidos detalhadamente, graças a dezenas de características pessoais, e de dirigir publicações diferentes a públicos diferentes, alterando a mensagem consoante a resposta prevista)? Zuckerberg parece ignorar todo este poder nocivo das complexas tecnologias de publicidade que criou e, mais do que isso, fá-lo com um argumento demagógico, jogando a cartada da censura e da liberdade de expressão.
Elizabeth Warren is now running FB ads with a false statement about Mark Zuckerberg and FB endorsing Trump for president, to draw attention to FB's controversial policy allowing politicians to make false statements in ads. https://t.co/hulwrb3cc3 pic.twitter.com/6zsPwXESKR
— Julia Carrie Wong (@juliacarriew) October 11, 2019
Não, não é uma questão de “censura”. Até porque o Facebook já remove conteúdos da sua plataforma, e não há queixas quanto a muitos deles. Impedir a propagação de discurso de ódio, de pornografia infantil, de vídeos de suicídios ou de massacres não é um problema. Em sociedade, existem regras para o que se pode dizer, e para as consequências de dizê-lo. O Facebook até pode argumentar que não é ele a “dizer”, mas certamente não é neutro quanto às consequências daquilo que é dito. Publicar um post no Facebook não é o mesmo que gritar na praça central, por muito grande que seja a multidão a assistir. Especialmente se, para além de publicar esse post, este puder ser promovido com largas somas de dinheiro e a sua audiência puder ser determinada, como antes referido, ao mais ínfimo detalhe.
O Facebook quer ditar regras para a liberdade de expressão, e quer fazê-lo de forma global, ignorando as histórias e os contextos das várias sociedades, em prol de uma rede social que aos poucos se vai tornando, pura e simplesmente, numa das maiores e mais lucrativas plataformas de publicidade do mundo. De repente, a soberania que os Estados tanto prezam deixa de incluir controlo sobre as regras de liberdade de expressão. Isto às vezes pode dar jeito, mas nem por isso o justifica – citemos o povo quando fala nas excepções que confirmam as regras.
O poder de plataformas globais poderia ser interessante para garantir a circulação de informações indesejadas por Estados opressivos, mas essa possibilidade não deveria ser carta verde para a desregulação completa. E a informação que temos mostra que é mais fácil esses estados usarem as redes para oprimir do que os cidadãos para se libertar. A sociedade alemã tem, por razões históricas, sensibilidades diferentes quanto à liberdade de expressão relativamente aos EUA. E o Facebook não tem a legitimidade de o alterar.
Vivemos num mundo onde a informação está disponível, mas onde somos guiados para a informação por aqueles que detêm os canais onde ela é apresentada e onde os utilizadores mais navegam. Google, Facebook (que detém Instagram e WhatsApp), Amazon e outros decidem tacitamente o que lemos, o que compramos, ou que sites usamos para “verificar” se determinada informação é credível. São eles que o fazem para quase todo o mundo, ignorando voluntariamente quaisquer sensibilidades culturais.
Em analogia, poderíamos comparar estas ferramentas a um placard de cortiça à entrada da escola, onde quem afixa os panfletos tem inteira responsabilidade sobre eles. Mas o determinante destas plataformas é a forma como reorganizam determinados panfletos e amplificam o seu alcance, aumentando a letra de uns e escondendo outros ao canto.
Por ironia do destino, o live-stream do discurso de Zuckerberg no Facebook mostrou sobretudo comentários positivos, apesar de também terem sido feitos comentários negativos. A explicação dada pela rede social foi que, quando os eventos recebem demasiados comentários, há um algoritmo desta rede social que vai mostrando apenas os mais relevantes consoante umas ponderações que, é claro, não são públicas. Liberdade de expressão, não era? Mas sujeita a um filtro invisível de relevância definido por critérios que nunca vamos conhecer.
Who the fuck gave Mark Zuckerberg the control of free spe
— Peter Sunde Kolmisoppi (@brokep) October 18, 2019
Zuckerberg faz dinheiro à custa da exploração das nossas emoções e da nossa estrutura de cognição. Faz dinheiro ao garantir que quem tem dinheiro encontra na sua plataforma o canal perfeito para fazer chegar uma mensagem, seja ela qual for, à audiência que estrategicamente definiu. E fá-lo independentemente de estar em causa a venda de bugiganga ou a viabilidade de uma democracia. Lamentável.
(Nota: texto escrito em colaboração com João Gabriel Ribeiro.)
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