Com a pentração da internet e o acesso à rede cada vez mais facilitado, e promovido pelos aparelhos que usamos no nosso dia-a-dia, os sites que a compõe vão ganhando uma importância relativa cada vez maior na vida das pessoas. Um desses exemplos é a Wikipédia, a enciclopédia digital que começou como um movimento alternativo convidando os internautas a indexar informação colaborativamente, e que hoje se posiciona como uma das mais consultadas fontes de informação do mundo – tornando-se alvo de disputas políticas.
Com uma distribuição global e tradução para as línguas mais faladas do mundo, a Wikipédia tornou-se num importante centro de informação, onde ainda se podem encontrar muitos factos correctos, mas tornou-se também num campo de batalha, especialmente de perspectivas sobre eventos históricos ou outros elementos com relevância política. Se esta questão sempre foi uma realidade a ter em conta graças ao carácter social e colaborativo da plataforma, uma investigação do programa dedicado à internet da BBC mostra que a disputa pode ser mais séria do que até aqui se considerava.
Em causa, estão as diferentes visões do mundo e da história defendidas pelos grandes blocos, neste caso, sobretudo, China e Estados Unidos e que aparecem expressas na Wikipédia. De um lado, estão visões alinhadas com os EUA — e grande parte delas com consenso internacional — que os chineses dizem ser baseadas em preconceitos para com o regime chinês e, do outro, estão as visões propostas pela China e alinhadas com a visão do respectivo regime sobre o decorrer da História. No centro, está a plataforma aberta à edição onde internautas – voluntários ou não – competem para que a sua narrativa da História seja a que mais perdura, especialmente nas línguas que mais interessam aos blocos políticos.
Os exemplos mais recentes e mencionados no artigo da BBC são o de Taiwan e o de Hong Kong, cujas referências divergem altamente entre as versões inglesa e chinesa (mandarim) da enciclopédia. No primeiro caso, o de Taiwan, a alteração é ligeira e pode até passar despercebida aos mais desatentos – se numa versão o nação aparecia como sendo um estado da República da China, na outra aparecia como uma província integrante da Republica Popular da China (que vulgarmente conhecemos apenas por China). Já no caso de Hong Kong, o padrão detectado é diferente e não se foca numa alteração específica mas antes no ritmo com que estas são feitas. Segundo a investigação da BBC a página referente aos protestos dos últimos tempos teve num só dia 65 edições.
Outros exemplos são frequentes e, de algum modo, previsíveis. Referências, por exemplo, ao histórico momento na Praça Tiananmen já, em momentos anteriores, desagradaram à narrativa chinesa e na Wikipédia não é diferente (ver por exemplo, este artigo do Quartz de 2014). Já este ano, antes do dia do aniversário deste acontecimento, a 4 de Junho, a Wikipédia tinha sido bloqueada em territŕoio chinês. Agora surge a denúncia para o facto de na versão chinesa destas páginas em vez de vermos a leitura ocidental sobre os acontecimentos, vemos a versão chinesa dos mesmos, levantando importantes questões.
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Contar a História online
Se, por um lado, se aponta o dedo aos chineses por promoverem determinada versão da história mais consentânea com os seus objectivos políticos, por outro, é essa a acusação que os chineses direcionam ao ocidente — acusando-os de incompreensão. Um paper intitulado Opportunities And Challenges Of China’s Foreign Communication in the Wikipedia, publicado numa revista de ciências sociais, corrobora esta ideia. Neste trabalho, citado no artigo da BBC; os investigadores denunciam que a Wikipédia se baseia em muitos preconceitos sobre o regime chinês por assentar em trabalho de medias internacionais, sinalizando a oportunidade dos próprios cidadãos chineses para alterarem esta face da história, contribuindo para uma melhor imagem da China além-fronteiras.
A mesma ideia foi preconizada por um oficial do Partido Comunista Chinês. Se outrora o regime chinês se focava em limitar o que sabiam os seus locais, agora esse esforço tende a ser global.
Resumindo, este caso é paradigmático sobre os novos desafios, a nível global, que os novos meios de informação oferecem. Outrora, este tipo de disputa pela verdade poderia dar-se simplesmente através da circulação de diferentes registos escritos (livros, panfletos, etc); hoje em dia, a luta é feita em terreno aberto, podendo causar mais danos colaterais. Ouvido pela BBC, Jamie Lin, uma das responsáveis pela Wikipedia Taiwan, sublinha este ponto, revelando que alguns editores da Wikipédia daquele país viram informações pessoais suas reveladas depois de alterarem informações na gigante enciclopédia.
No caso da Wikipédia se a onda de alterações chinesas é inteiramente coordenada ou não, é difícil perceber; e se esse suposta coordenação é política e determinada pelo Estado, ou simplesmente resultado de anos de doutrinação, é outra questão ainda mais profundas e de ainda mais difícil resposta. Certo é que, mesmo perante a globalização das plataformas de informação e o conhecimento produzido de uma forma aberta e cooperativa, as diferentes leituras sobre acontecimentos históricos permanecem dando aso a espécie de conflito permanente à vista de todos mas sem que ninguém se aperceba.
Algumas das alterações podem ter origem política e ser coordenadas pelos Estados, outras podem simplesmente surgir por sugestão de editores.
Neste tipo de questões é importante não esquecermos todas as situações análogas que decorrem noutros meios para melhor contextualizar. A própria história de Portugal é alvo de ampla discussão na forma como é disseminada até nos manuais escolares sobretudo no que concerne ao período colonial, capítulo onde prevalece uma linguagem eufémica. A relevância chinesa prende-se sobretudo com o poderio desta nação, a sua capacidade de coordenação para disseminação de narrativas ou silenciamento de ideias divergentes e com a importância desta história em suporte da luta ideológica — se tal se pode chamar — entre China e Estados Unidos da América.
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