Partilhar quartos com estranhos: o último recurso nas grandes cidades?

Partilhar quartos com estranhos: o último recurso nas grandes cidades?

4 Outubro, 2019 /

Índice do Artigo:

A subida das rendas não dá sinais de grande abrandamento. Dividir um quarto com vários estranhos já é, em muitos casos, a única opção para quem procura casa em cidades como Lisboa e Porto.

Bem antes de emigrar, as queixas sobre as rendas astronómicas já há muito que faziam parte de conversas entre amigos e desabafos nas redes sociais. Lá fora, no último ano, algumas vezes me chegaram pelo feed pedidos de socorro de quem havia recebido a temida chamada do senhorio. Mas, foi apenas no regresso a uma Lisboa mais estrangeira e encarecida, que me apercebi da verdadeira situação. O grande choque, para mim, nem foi encontrar espaços a preços exorbitantes, mas sim quartos partilhados (por 2 a 9 pessoas) tão ou mais caros do que quartos privados.

Foi a chegada de um familiar do Brasil, estudante universitário, que me levou às páginas de quartos para arrendar e plataformas de alojamento. Como milhares de alunos portugueses e internacionais, o Gabriel queria viver perto da universidade ou num lugar com bom acesso a transportes públicos. É então nessas zonas que os preços mais disparam. Por exemplo, Arroios, um dos bairros mais procurados por estudantes por ser o mais barato, registou uma subida de 6,8% nas rendas em relação ao ano passado. Deste lado do Atlântico, o Gabriel rapidamente começou a perceber que os avisos sobre a escassez de preços acessíveis não eram exagero.

O anúncio de um quarto a 250 euros, a 15 minutos a pé do metro, chamou a atenção. Nada mau, contudo não se podia agendar visita. “Eu vivo na margem Sul. Não posso parar a minha vida para todos que querem ver o quarto. Ou quer ou não quer”, disse o senhorio. Outro anúncio parecia um verdadeiro achado: Arroios, 200 euros mensais, contas incluídas. Li melhor o título “cama em quarto partilhado” e percebi pelas fotografias que o espaço tinha dois beliches. Mais uns minutos a pesquisar e encontrei mais três anúncios para a mesma casa.

Pedi ao Gabriel que ligasse à senhoria, uma vez que a oferta era apenas para homens. “É um apartamento com dois banheiros completos, coisa que hoje a gente não acha aqui”, explicou a mulher. “Em cada quarto são quatro rapazes, mas cada quarto tem a sua geladeira.” Nos dois apartamentos que aluga, em Arroios e na Alameda, os quartos têm beliches e armários, uma cozinha, mas nenhuma área de convívio. Numa das fotografias do anúncio, vê-se uma mochila da Uber Eats. É um dormitório para trabalhadores, um espaço por onde já passou e passam muitos deles. “Eu já ‘tou craque nisso, eu tenho um monte de menino que passou por mim”, gaba-se a mulher ao dar dicas sobre que autocarros apanhar na zona.

Dividir quarto pode ser a opção mais barata

Os quartos para estudantes em Lisboa e no Porto estão, respetivamente, 7,6% e 5,6% mais caros do que no mesmo período do ano anterior. Segundo um relatório da Uniplaces, uma plataforma de arrendamento universitário, custam, em média, 399,56 euros na capital e 299,16 por mês na Invicta. No resto do país também se verifica um aumento considerável para os estudantes.

Apesar de não existirem dados deste ano sobre o preço médio geral de arrendamento (ou seja, para toda a população), pode-se usar como referência os valores de 2018 apurados por um estudo da plataforma Idealista. Os 323 mensais colocavam Lisboa no primeiro lugar da tabela, seguida do Porto com 261 e Setúbal a registar 244 euros. Um ano depois, tendo em conta que o aumento das rendas em 2019 alcançou os 1,15%, esperam-se valores ainda mais difíceis de suportar.

De acordo com esta tendência, encontrei em Carnaxide, na periferia de Lisboa, uma oferta de quarto “em casa de família para pessoa sossegada”. Quanto? 650 euros. Como tem cama de casal, será para duas pessoas? “Para casal não, é para senhora”, explicou-me a dona da casa. É um exemplo extremo, contudo não é um caso raro. E, com a escassez de espaços a custar menos de metade do salário mínimo nacional, dividir um quarto com um ou mais estranhos passa a ser uma questão de último recurso.

Numa pesquisa em plataformas online de arrendamento, o mais barato que encontrei foram quartos triplos a 180 euros com despesas incluídas, no Campo Pequeno. Um quarto de quatro pessoas é anunciado a 195, mas com contas e limpeza o preço sobe para 225 mensais. Noutro anúncio, quartos para duas pessoas custam um pouco mais, 250 euros por cama. “Pode passar aqui no escritório e eu mostro as fotografias do que temos”, disse a responsável, dando a entender que gere um autêntico negócio. “Umas pessoas ainda vão sair, só tenho a partir de 1 de outubro.”

O crescimento exponencial de imigrantes em Portugal trouxe uma nova oportunidade de negócio para muitos portugueses e também estrangeiros. Se o boom do turismo popularizou o Airbnb por cá, a imigração tornou comum alugar quartos ou casas inteiras a longo prazo e nem sempre com todas as condições, importa referir. É uma fonte de rendimento extra, quer para necessitados, quer para gente com olho para o negócio.

No Facebook, encontram-se vários anúncios de vagas em quartos. Em Odivelas, num T2 apenas para mulheres, um quarto triplo tem duas camas vagas. “240 com tudo incluso”, escreve a responsável por mensagem privada. Ignora-me quando lhe digo que não estou interessada no quarto mas sim em fazer algumas perguntas para um artigo. A publicação dela gera discussão. Uma imigrante acusa-a de explorar os conterrâneos, enquanto um português defende o direito de arrendar pelo preço que se desejar.

Por um preço mais acessível, Adnam, um paquistanês há seis meses em Lisboa, ocupa uma de cinco camas pelo valor de 140 euros, mas sem contas incluídas. Contou-me que os colegas de quarto são todos trabalhadores. Um outro contacto de Facebook mostrou-me que também há famílias de imigrantes a viver em quartos. Para completar o valor da renda, Silmara, uma brasileira há dois anos em Portugal, tem alugado o segundo quarto do T2 onde vive com o marido, em Queluz, concelho de Sintra. Cobra 250 euros pelo quarto, não por cabeça, o que atraiu, um par de vezes, famílias de três.

O mercado dos estudantes estrangeiros

O início do ano letivo é mais um dos momentos que contribui para uma subida considerável dos preços dos quartos.

O número reduzido de residências públicas e privadas — sem falar dos preços destas — leva a maioria dos universitários à procura de vagas em casas partilhadas. Para agravar o problema da oferta, o turismo continua a roubar muitos quartos que antes eram alugados maioritariamente por estudantes.

Segundo dados da consultora imobiliária JLL, divulgados em abril, existiam 372 800 estudantes universitários no país, sendo que 57,6% dos alunos (nacionais e internacionais) precisavam de arrendar casa ou quarto. Este ano, na 1ª fase do concurso nacional ficaram colocados 44 500 estudantes, o que representa um aumento de 1,2% em relação a 2018. Apesar de ainda não haver dados concretos, espera-se que o número de alunos estrangeiros tenha seguido a tendência de subida. No ano passado, já eram quase 50 mil, ou seja, 13% da população universitária do país. O resultado é uma oferta que não consegue, de todo, dar conta da procura.

Esta conjuntura tem atraído os grandes investidores estrangeiros para o negócio das residências universitárias, bastante explorado fora de Portugal e que poderá vir a valer mais de 500 milhões de euros. Os projetos de luxo dos investidores privados Temprano Capital Partners e Milestone, com residências já inauguradas em Lisboa e no Porto, são talvez os mais conhecidos no momento.

Contudo, já existem outros investimentos bem mais discretos a caçar estudantes estrangeiros. Através de pesquisas em plataformas de arrendamento, percebe-se que estes alojamentos menores são, no fundo, hósteis para permanência mais prolongada. Oferecem quartos partilhados e individuais, cozinha, áreas de convívio, uma decoração atrativa, limpeza diária, etc. Têm de ser arrendados no mínimo por 30 dias mês e a maioria exige caução de um mês.

Os preços destas pequenas residências de estudantes? Bem, encontram-se quartos com dois e três beliches desde 250 a 375 euros, quase todos com despesas incluídas e limpeza. Destes partilhados, o mais caro que vi foi um alojamento que cobra 450 euros por uma cama num dos três beliches de três andares. No total, o quarto claustrofóbico tem capacidade para 9 pessoas, mas, pelo menos, lá oferecem pequeno-almoço todos os dias.

Nas residências-hostel mais caras também é possível alugar quartos duplos e privados a 650 e 750 euros. São valores não muito diferentes de, por exemplo, um estúdio da luxuosa Collegiate Marquês de Pombal, que, por 862,33 euros mensais, disponibiliza 15 m² para um único estudante; sem contar que, neste caso, é possível pagar o ano de alojamento em 10 prestações e ter acesso a regalias como ginásio, piscina aquecida e sala de cinema. Quando comparados com os quartos de 750 euros em apartamentos com casas de banho e cozinha a serem partilhadas por, garantidamente, mais de 10 pessoas, os valores não parecem tão descabidos.

A procura não vai dar tréguas

Não é nenhuma novidade o facto de existir uma falta abismal de camas para universitários em Portugal. Em fins de agosto e durante setembro, o tema retorna sempre aos destaques da comunicação social. Contudo, neste ano (de eleições), passou-se à ação com o Plano Nacional para o Alojamento no Ensino Superior, que promete disponibilizar 11 500 camas dentro de quatro anos, e 30 mil na próxima década.

No entanto, o problema também é vivido por todos os outros, jovens e cada vez mais velhos, que não têm casa comprada. Como lição retirada da crise financeira, apertaram-se os critérios de concessão de crédito à habitação, o que leva mais pessoas a arrendar e, consequentemente, à subida dos preços. A juntar-se a estes elementos, há ainda o facto de Portugal se ter tornado um chamariz para estrangeiros, alguns deles com maior poder de compra. Quer sejam investidores, turistas, estudantes ou imigrantes permanentes, todos contribuem para o aumento da procura no setor imobiliário, especialmente nas grandes cidades.

A questão da imigração permanente é, para qualquer um de nós, uma das mais visíveis e audíveis nas ruas. Um relatório do SEF sobre 2018 comprova isso, revelando que não se registava um aumento tão significativo na imigração desde 2002. No ano passado, os italianos (45,9%), franceses (29,1%) e brasileiros (23,4%) foram os grupos que mais cresceram. O relatório também destacou que os cidadãos do Bangladesh (+165,1%), Nepal (+141,2%) e da Índia (+127,3%) estão entre os que mais adquiriram autorização de residência no país.

Uma parte dos imigrantes que se fixa nos grandes centros urbanos, mas sem condições para pagar rendas altas, acaba por ter de recorrer a soluções como os quartos partilhados. Outra parte destes imigrantes, vindos de países mais ricos, tem condições de suportar os preços elevados das outras propostas e assim se atinge o pernicioso equilíbrio que ano após ano faz subir rendas e diminuir condições de habitabilidade. Se a tendência de subida continuar, cada vez mais pessoas terão de viver nestas condições, ajudando a alimentar o círculo vicioso.

Já há cerca de dois anos, mudava-se para um apartamento em frente ao meu prédio um exemplo desta imigração urbana mais precária. Por uma das janelas sem cortinas, avistam-se dois beliches num dos quartos. A probabilidade de a sala ter sido transformada em divisão para dormir era grande. De manhã, à tarde ou à noite – suponho que nos começos e fins de turno – via um grupo de 10 ou mais homens, aparentemente oriundos do Sudeste Asiático, a caminho e de regresso do restaurante chinês perto de casa. Hoje, noutro prédio, não sei se exatamente os mesmos, eles ainda vivem e trabalham juntos, partilhando quarto.

Hoje, também são os imigrantes precários que mais “aceitarão” patrões exploradores e viver em condições de sobrelotação. Também são muitos universitários obrigados a escolher entre pagar propinas e comer ou dormir num quarto só seu. Tendo tudo isto em conta e o facto de Lisboa ser a 6ª cidade do mundo com maior esforço salarial para pagar a renda, quantos lisboetas, quantos portugueses estarão a ser atirados para estes beliches?

Texto de Mikhaela Anjos

Autor:
4 Outubro, 2019

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