Ciclovias em cima de passeios e que não vão dar a lado nenhum tornaram-se, a partir de 2014, parte da paisagem lisboeta. Fizeram-se ciclovias por fazer. Porque era moda, sem grande pensamento e preocupação com a mobilidade urbana. A bicicleta era, sobretudo, um objecto de lazer, não de mobilidade. Agora existe, pelo menos em Lisboa, um plano: reduzir o número de automóveis na cidade, melhorando a oferta de transportes públicos e estimulando formas de mobilidade ditas suaves, que são mais amigas do meio ambiente (uma pessoa de bicicleta emite 21 g de CO2/km enquanto que um carro chega aos 271 g de CO2/km) e que podem ser mais eficientes em determinados trajectos. No final do dia, os objectivos passam por diminuir o congestionamento de Lisboa, equilibrar a utilização do espaço público e tornar a cidade menos poluída e, assim, mais respirável.
Fomos conhecer um dos arquitectos que está a tornar Lisboa mais ciclável. Miguel Barroso trabalha no estúdio de arquitectura urbana Urbactiv que, por sua vez, trabalha com a Câmara Municipal. “Somos mais uma palavra no meio de tantas outras”, explica Miguel Barroso, enquanto percorremos algumas das intervenções mais recentes no Planalto Central – que engloba as freguesias das Avenidas Novas, Areeiro e Alvalade. Enquanto especialista em mobilidade ciclável, a Urbactiv ajuda a definir a rede de mais de 200 km que a autarquia prevê concluir até 2021, a avaliar os projectos de arquitectura que outras entidades desenvolvem e a definir os parâmetros dos concursos públicos lançados para cada projecto. “Deixámos de estar tanto no papel de projectistas e mais no lado de consultores.”
A Urbactiv esteve envolvida no desenho e implementação da rede ciclável nas Avenidas Guerra Junqueiro e de Paris, e de um outro na Rua Edison, uma artéria adjacente à Avenida de Roma. Neste momento, são três troços isolados de uma rede que está a ser pensada. A Praça de Londres e a Avenida Manuel da Maia, que desagua nessa praça, entraram em obras para a instalação de uma ciclovia que ligará, por fim, alguns pontos desconexos. “E, de repente, estas coisas que estão todas soltas passam a fazer sentido. Passamos a ter uma rede, e é isso que pretende na cidade”, diz Miguel. ”Sempre que se faz uma nova ligação que estabelece a ponte entre dois locais antes soltos e onde há potencial de existirem deslocações, as bicicletas vão aumentando e aumentando”, considera o arquitecto.
“Para a bicicleta se tornar realmente uma alternativa, há necessidade de estabelecer essa rede.” A preocupação é criar uma rede coerente e legível, confortável e segura, desenhada tendo em mente uma universalidade capaz de contemplar um maior número de utilizadores de bicicleta. “O principal foco da Urbactiv – a nossa especialidade – é a bicicleta, mas sempre com um olhar para os peões. Sempre que intervimos para introduzir a bicicleta, tentamos melhorar a acessibilidade pedonal.”
Transformar uma cidade que, no século passado, se rendeu à indústria automóvel e entregou uma grande fatia do seu espaço às quatro rodas numa cidade mais ciclável e pedonal não é um trabalho fácil… mas alguém tem de o fazer. É uma tarefa que implica gerir egos e expectativas, dentro da Câmara, junto dos decisores, da equipa técnica, e fora dela, escutando a vontade da população. Por vezes, isso pode implicar mexer mas não mexer muito, ou seja, pode passar por tirar algum estacionamento mas “compensar” noutro lado, ou pode levar a alterações ao projecto inicial, que idealmente seria o melhor para determinada zona.
“Não podemos ver isto só pelo nosso lado”, nem “achar que somos os donos da razão”. “Apenas damos mais uma opinião”, refere Miguel. “A cidade é uma coisa dinâmica, onde há imensas opiniões e projectos.” O arquitecto entende que há uma diferença importante entre a cidade ideal e a cidade possível, e “a cidade possível é o resultado de todos os constrangimentos, forças e interesses”.
Não só é preciso conjugar vontades políticas da Câmara com as das Juntas, os objectivos eleitorais de cada agente, mas também os interesses estéticos – e, neste campo, “nem sempre o espaço público com uma determinada qualidade visual e de vivência é compatível com uma infra-estrutura que, se calhar seria a mais visível e mais segura”.
Por outro lado, há vários regulamentos que são precisos cumprir e que foram condensados num ‘Manual de Espaço Público’, desenvolvido pelo município; por exemplo, sabe-se que uma rua com uma largura mais estreita evita o estacionamento em segunda fila e obriga os automóveis a reduzir a velocidade, mas é preciso garantir o acesso aos veículos de emergência. E “quando temos que cumprir vários regulamentos e o espaço da rua não permite que se cumpram todos, alguma coisa tem de ficar por fazer. Então, tenta-se criar o equilíbrio da situação que menos transtorno possa causar. Algumas vezes saem as bicicletas prejudicadas, outras os automóveis, outras os peões. O ideal seria que ninguém saísse.”
“É muito delicado mexer no espaço público, mexe com muitas coisas”; e passa sobretudo por “pesar os prós e os contras”. “Não há uma cabeça iluminada no meio da Câmara e depois a ideia desce por ali abaixo. Isto é tudo um processo de muita discussão interna entre uma quantidade de actores, tanto internos como externos à Câmara.”
Muitas vezes vontade política para integrar rede ciclável numa determinada artéria ou introduzir uma certa tipologia, por exemplo, uma ciclovia unidirecional em vez de uma bidireccional, ou a intersecção perfeita entre peões e ciclistas, até existe… “Mas há o corpo técnico da Câmara, que não são só especialistas em mobilidade ciclável e que são especialistas em gestão de tráfego, por exemplo.” Foi o que aconteceu, por exemplo, na ligação da Guerra Junqueiro da Alameda, onde o projecto inicial previa um atravessamento de bicicletas que permitiria alcançar em segurança a estação da GIRA no outro lado.
Optou-se por não fazer essa parte porque se achou que suprimir uma faixa de rodagem iria criar problemas ao nível do trânsito automóvel. Hoje, aquele troço é local de paragem constante em segunda fila. “Mais cedo ou mais tarde, acho que vai ser resolvido, porque, mais cedo ou mais tarde, vamos ter rede ciclável na Almirante de Reis”, comenta. “Tendo trabalhado próximo com a Câmara, percebemos que existe boa vontade na maior parte dos técnicos com quem trabalhamos para fazer o melhor para as pessoas.”
O automóvel em Lisboa é ainda o rei das deslocações, representando cerca de 60% do seu total. A percentagem de quem anda de bicicleta não supera os 1%, o que pode levar à questão: para quê investir em infra-estruturas para esse meio de transporte? A ideia – comprovada – é que quando se cria espaço e condições as bicicletas aparecem; foi o que aconteceu na Avenida da República, hoje uma das artérias cicláveis que desde a renovação de 2017 se tornou um ex-libris da cidade. Para Miguel Barroso, a Avenida da República foi “uma afirmação de que a decisão política de a implementar teve retorno”.
“Havia na altura [o projecto começou em 2015] ainda um desconhecimento muito grande em relação à bicicleta. Algumas pessoas achavam que havia potencial mas não tinham a certeza, outras achavam que não existia sequer esse potencial.” Certo é que “hoje já há certas horas em que vemos que a ciclovia [da Avenida da República] saturada”, mas “ainda passou relativamente pouco tempo desde a execução da obra para se poder voltar a falar em intervir”.
Miguel sente que existem cada vez mais pessoas da Câmara ‘onboard’, entendendo que Lisboa pode ser uma cidade ciclável. “Quando vamos para uma reunião, ja não ficam surpreendidas com aquilo que nos pedimos. Muitas vezes são elas já a trazer soluções com base nas premissas que definimos há muito tempo”, comenta. “Agora sempre que alguém intervém numa rua, esse projecto já tem de passar sempre pela ‘equipa da rede ciclável’, que é cada vez maior e que avalia se há necessidade ou não de fazer intervenção a nível ciclável nessa rua.”
Nem sempre o caminho tem de passar por criar ciclovias, isto é, por segregar o trânsito de bicicletas do restante trânsito; pode passar por criar medidas de acalmia de tráfego, que passem por reduzir o volume de circulação de automóveis numa dada artéria e ou por obrigar a redução de velocidades, no ideal para os 30 km/h. Para a equipa de Miguel, transformar Lisboa numa cidade ciclável não precisa de ser sempre por grandes obras. Pode envolver uma intervenção ‘low-cost’, isto é, com recurso a pinturas no chão, a pinos de plástico a segregar vias, estacionamento automóvel a servir de barreira mais física e a lancis de passeio que melhoram a segurança pedonal. Com estas opções de baixo custo, pode ser dado espaço à bicicleta rapidamente e ao mesmo tempo melhorar a vida de bairro.
Foi o que aconteceu, por exemplo, na Avenida de Paris. Aquela artéria está agora dividia ao meio, deixando de ser possível usá-la para ir da Praça de Londres ao Areeiro; quem ali vive, defende, passou a ter mais sossego e menos poluição. Só de bicicleta é possível atravessar aquela artéria de uma ponta à outra, entre uma via partilhada com o trânsito automóvel e outra em contra-fluxo, que está devidamente diferenciada da estrada por uma fila de estacionamento e por pinos de plástico. A própria avenida foi estreitada, obrigando os automóveis a respeitar a velocidade máxima de 30 km/h. “Se estivéssemos aqui antes como estamos agora, e nem é uma hora de ponta, estariam carros sempre a passar. Agora é uma rua do ‘lá vai um’, como se costuma dizer. Deixou de ser uma artéria de atravessamento, que é o que acontece em muitos bairros em Lisboa.”
Solução semelhante – com pinos a segregar uma via – foi implementada na Avenida Guerra Junqueiro, a primeira obra naquela zona e que intrigou os moradores pela remoção de estacionamento. “Reclamam mais aqueles que ficam sem o estacionamento do que aqueles que ficam sem o passeio. Não quer dizer que sejam mais a reclamar por uma coisa ou por outra, deveria talvez haver maneira de fazer auscultação publica. Ouvir não só aqueles que reclamam mas também aqueles que não reclamam, para os políticos ouvirem mais a maioria silenciosa”, entende o especialista.
“Para a da Praça de Londres estava prevista uma destas intervenções low cost, mas dada a importância e a monumentalidade da praça optou-se por refazer o projecto para algo mais definitivo, com melhor qualidade de espaço público.” O projecto da Praça de Londres está orçamentado em 14 mil euros, número que, quando comparado, por exemplo, com quanto custou a repavimentação da Avenida do Brasil em 2015 – cerca de 350 mil euros –, mostra que mesmo a implementação de uma infra-estrutura ciclável mais desenvolvida pode ser um investimento relativamente barato. Para a Avenida de Roma, uma importante artéria da futura rede, também está prevista uma solução destas mais sofisticadas.
Miguel Barroso tem noção de que criar melhores condições em Lisboa para a bicicleta é um processo demorado e entende as ciclovias desconexas que hoje existem em vários pontos da cidade como “dores de crescimento”. “Só o processo de lançar um concurso público… É preciso preparar o programa preliminar, chegar a consenso técnico e político para esse programa, lançar o concurso para o projecto, depois do projecto feito avaliá-lo e para verificar se ficou de acordo com o que se queria, depois ainda é preciso lançar o concurso para a execução da obra, e só então é que a obra acontece.” Mas Miguel é optimista e olha para a realização da Velo-city em 2021 em Lisboa como um sinal de que o investimento da autarquia em infra-estrutura ciclável vai acelerar, até porque “foi um compromisso que a cidade assumiu com a organização do Velo-city e há um contrato firmado que compromete o município a fazer”.
“As pessoas têm uma relação com o automóvel muito cultural. O direito de propriedade é algo muito prevalente na nossa sociedade. E o automóvel confere essa percepção de propriedade. Foram décadas a promover a ideia de que quem tem automóvel a tê-lo na rua de borla.” Da mesma forma que quando se criam infra-estruturas cicláveis as bicicletas aparecem, anos antes aconteceu o mesmo em relação a infra-estrutura rodoviária, quando as largas avenidas e vias rápidas que atravessam a cidade e o estacionamento abundante foram o chamariz perfeito para as pessoas passarem a andar de carro e a ter carro. Miguel assume-se como um entusiasta da bicicleta, um daqueles que também passou pela fase de achar que ia conseguir mudar mentalidades discutindo e ripostando em caixas de comentário online.
Mas mudar mentalidades é uma questão de tempo. É uma tarefa que passa também por ir quebrando mitos, como as das colinas numa cidade com várias zonas planas, onde mais de 60% das ruas têm baixos declives e onde as bicicletas eléctricas dão uma ajuda no que não é plano. “A pergunta que é óptima de dar a qualquer comerciante: se preferia ter uma loja na Rua Augusta ou na Rua do Ouro? As pessoas que vão a pé têm muito mais probabilidade de entrar numa loja que uma pessoa que vai de carro.” E os resultados positivos obtidos em Madrid, com o centro da cidade praticamente vedado ao trânsito automóvel, que o digam.
“Estamos permanentemente a competir com os milhões que a indústria automóvel gasta em publicidade que te vende um sonho. Não a vemos fazer anúncios contra o peão ou a bicicleta, muitas vezes até aparece de uma maneira paternalista a dizer que são a favor”, entende. A industria automóvel é o sector que mais gasta em publicidade. “Vende-te um sonho de posse, de status, de liberdade, que te entra no subconsciente. E nós aqui estamos constantemente a combater esse sonho irreal.”
A Urbactiv é um estúdio de arquitectura dedicado a modos sustentáveis de mobilidade, e não é a única entidade da área a colaborar com a Câmara. O serviço prestado pela Urbactiv à Câmara é essencialmente de consultoria; o contrato foi celebrado em 2017 no valor de 74 mil euros, e o trabalho de Miguel e da sua equipa tem consistido em ajudar a desenhar e a implementar a rede ciclável no chamado Planalto Central de Lisboa. Outros dois contratos (aqui e aqui), pelo menos, foram assinados nos últimos meses entre outras empresas e a autarquia lisboeta também para o desenvolvimento do plano ciclável em diferentes partes da cidade.
A rede de mais de 200 km que a Câmara prevê concluir até 2021 é público e deverá ser crucial para melhorar a circulação de bicicletas e de trotinetas na cidade, em conjugação com iniciativas como o sistema GIRA ou com operadores privados como a Lime ou a JUMP (da Uber). “Estamos a tentar ter uma rede que faça uma cobertura bastante eficaz das necessidades das pessoas” e que “crie condições para que as pessoas quando não se sentem seguras não se refugiem no passeio”, diz Miguel Barroso. “Estamos sempre a ajustar”, pois é preciso planear também com o que está previsto para determinada zona, sejam novos loteamentos a aumentar pressão, sejam estações de GIRA.
Aos poucos e poucos, troços desconexos vão ser ligados e a rede vai tornar-se uma verdadeira rede. Há mais bicicletas a circular em Lisboa e tal terá mudado a forma de pensar dos mais cépticos, que existiam mesmo dentro da Câmara.
(Este artigo contou com a colaboração do Frederico Raposo.)
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