“Há algo poético em descobrir fotografias que nunca foram vistas”: a poesia do projecto Sombras de Alguém

“Há algo poético em descobrir fotografias que nunca foram vistas”: a poesia do projecto Sombras de Alguém

6 Julho, 2019 /

Índice do Artigo:

As histórias recuperadas de fotografias e rolos perdidos.

Em Julho de 2013, num dia como vários, Filipe Bonito publicou uma série de fotografias que tinha encontrado na Feira da Ladra, em Lisboa, no seu blog Sombras de Alguém. À primeira vista pareciam ser fotos como as outras que vinha a publicar desde Janeiro, quando criou o projecto: fotografias perdidas, cheias de histórias por decifrar. Eram fotografias de uns concertos, num palco meio rudimentar” que mostravam “duas senhoras e duas crianças e o seu percurso” até ao que parecia ser um festival. “Foram publicadas e estiveram algum tempo sem ser identificadas até que alguém conseguiu perceber que se tratava da primeira edição do Festival Vilar de Mouros”, conta-nos. A descoberta foi publicada na revista Sábado, o que levou a que uma das crianças da altura, actualmente adulto, se reconhecesse. “Entrou em contacto connosco e enviámos-lhe todas as fotografias.”

São histórias como esta que fazem com que o arquitecto continue um projecto que apareceu por acaso. Até ao momento, Filipe e a mulher já publicaram mais de 5300 fotografias . Há seis anos que todos os dias publicam no site, página de Facebook, Instagram e Twitter entre dois a quatro registos, sem grande fio condutor, sequência, organização ou tema. As fotografias são propositadamente publicadas de forma aleatória, pois é uma forma de darmos a quem nos segue a possibilidade da descoberta e para que possa também descobrir e estabelecer relações com quem vai aparecendo. Desta forma faz todo o sentido a presença nas redes sociais, pois a interacção é enorme.”

Cortesia de Sombras de Alguém

 

Cortesia de Sombras de Alguém

Sombras de Alguém nasceu do seu gosto pela fotografia e de uma Lubitel ucraniana, a primeira câmara que comprou. “Trazia um rolo no seu interior, que estava no fim e isso queria dizer que, muito provavelmente, estaria exposto.” Filipe revelou-o e conta que, no meio de muito ruído, “conseguiam-se ver 3 fotogramas, fotografias que nunca tinham sido vistas, imperceptíveis mas cheias de estórias em aberto.” O entusiasmo da descoberta fê-lo começar a procurar negativos perdidos em mercados e feiras.

“Há algo poético em descobrir fotografias que nunca foram vistas, sombras aprisionadas em película esquecida dentro duma máquina ou perdidas nas mãos de alguém, por isso mesmo este projecto é apenas constituído por películas, rolos por revelar, ou negativos/diapositivos já revelados, ou seja, o suporte que origina a fotografia propriamente dita.”

E se no início Sombras de Alguém era apenas um sítio onde Filipe publicava as fotografias que encontrava, quase como um registo histórico não oficial de fotografias amadoras, o sentido mudou quando começou a haver feedback, quando as pessoas começaram a imaginar o que estaria por detrás de cada momento fotografado, quando começaram a identificar lugares, acontecimentos e situações. As fotografias são publicadas sem qualquer legenda ou informação, portanto a descoberta está sempre do lado de quem vê. As fotografias não existem sozinhas, fazem parte duma sequência, cada fotograma precede e antecede um outro, cada rolo conta uma história, cada conjunto de rolos contam muitas histórias entre si, muitas vezes vemos fotografias de uma família ao longo de décadas, ou reencontramos fotografias de pessoas que já tínhamos encontrado antes.”

O verdadeiro ponto de viragem, conta, foi quando começaram a haver reconhecimentos, quando começaram a aparecer pessoas que se encontravam a si próprias ou a familiares e amigos. Até Filipe já encontrou pessoas conhecidas em rolos revelados. “O objectivo não é devolver as fotografias aos seus donos, mas quando há reconhecimentos, esta é uma das razões do projecto existir.”

“O mais importante são os reconhecimentos, que felizmente já tivemos inúmeros, posso referir uma senhora que reconheceu a mãe em criança numa fotografia com 60 anos.”

Cortesia de Sombras de Alguém
Cortesia de Sombras de Alguém

O seu público é maioritariamente português, bem como os rolos que recupera, mas já revelou muitas memórias de viagens pela Europa, África e Ásia. Todo o trabalho de recolha, organização, digitalização e publicação é feito por Filipe e pela mulher, que usam rolos e negativos encontrados em feiras, enviados por amigos que têm lojas de venda de material fotográfico ou doados ao projecto por fãs. É essa uma das formas que apoiar o projecto.

“Já tivemos inúmeras doações desde caixas de negativos encontradas num sótão durante obras de uma casa nova, ou simplesmente encontrados na rua, caixas de rolos de familiares falecidos, rolos recuperados do lixo, etc.” 

Quem quiser fazer este tipo de doações, pode encontrar em contacto com o projecto e Filipe assegura o envio. Oos elevados custos associados levaram à criação de uma conta de apoio “imprescindível para a continuação” do Sombras de Alguém, que é maioritariamente suportado pelo casal, o que já tornou a situação incomportável em vários momentos. “Este projecto é, e será sempre, um projecto didáctico e cultural sem fins lucrativos. No entanto tem diversos gastos associados, nomeadamente compra de rolos/negativos, revelações, químicos, manutenção do site, etc. Não queremos poluir o site com anúncios e também não temos patrocinadores. Quem quiser apoiar, pode fazê-lo directamente a partir de uma conta Paypal ou tornando-se patrono pelo Patreon actualmente temos poucos patronos, mas a sua ajuda é imprescindível para a continuação do projecto.”

Ao fim de seis anos de projecto e feedback mais que positivo, Filipe gostava que os próximos passos levassem o Sombras de Alguém do espaço online ao físico. “Este projecto cresce à medida que for possível crescer”, contou-nos, referindo que quaisquer planos de futuro estão altamente condicionados pelo investimento e apoio monetário mas diz que “uma exposição e a publicação de um livro” são objectivos que gostava de concretizar. A curto prazo, Filipe está a organizar a criação de galerias organizadas e curadas por pessoas de diferentes áreas. A sua ideia é que cada curador escolhesse um conjunto de fotografias que seriam por ele organizadas de forma a construir uma narrativa, uma galeria temática com uma história.

Cortesia de Sombras de Alguém

Quem será o galã lisboeta a fumar contra uma parede branca? Ou o militar em cima do burro? Os “cavalheiros banhistas”, o menino de vermelho ou o casal abraçado a sorrir, já a cores? Será que os protagonistas vão continuar a reconhecer-se nas fotos? A verdade é que olhando para todas estas fotografias, parece que a qualquer momento vamos encontrar caras conhecidas. Parecem as fotografias que víamos emolduradas em casa dos avós, ou naqueles álbuns antigos nos quais pegamos menos vezes que as que devíamos.

A todos nós, que temos imaginação a correr como sangue e não conseguimos evitar inventar as estórias dos fotografados, Filipe apela que não percamos o seu Sombras de Alguém de vista: “a melhor forma de participar é seguir e interagir nas redes sociais, tanto através de partilha das fotografias publicadas, ou divulgação do projecto, como pela indicação de locais, situações, histórias.” Se fizermos a nossa parte, Filipe continuará a alimentar a nossa sede por histórias bonitas e faz-de-conta, enquanto houver negativos e rolos por revelar.

Podes seguir aqui a página de Facebook do projecto, a de Instagram e a conta no Twitter. Segue este link para o ajudares a crescer.

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Autor:
6 Julho, 2019

A Rita Pinto é Editora-Chefe do Shifter. Estudou Jornalismo, Comunicação, Televisão e Cinema e está no Shifter desde o primeiro dia - passou pela SIC, pela Austrália, mas nunca se foi embora de verdade. Ajuda a pôr os pontos nos is e escreve sobre o mundo, sobretudo cultura e política.

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