Não é de todo habitual que um media, como o Shifter, se debruce sobre um artigo de opinião publicado noutra publicação ao ponto de fazer dele tema. Para que isso aconteça é preciso que esse artigo seja especialmente fundamentado ou, por outro lado, tocante. Este de que hoje falamos é um misto dos dois. Escrito pelo fotojornalista português, João Pina, para a revista do Grupo Globo, a Época, “A história da foto rara do traficante mais procurado do Rio” é uma lição abrangente e ampla — que tanto pode servir ao cidadão comum como ao jornalista experiente.
João Pina escreve para a Época por ocasião da morte de um dos traficantes mais procurados do Brasil, morto no dia 27 de Junho pela Polícia Militar do Rio de Janeiro numa daquelas operações que filmes como Tropa de Elite ou Cidade de Deus nos mostraram. Fernandinho Guarabu, o traficante a que nos referimos, era uma figura bem conhecida no Brasil e muitas vezes comparado com Pablo Escobar pela sua preponderância nos esquemas de tráfego e no famoso Morro do Dendê; contudo, poucos tiveram qualquer contacto consigo e quase ninguém sabia da sua localização. Pina era uma dessas pessoas, com acesso a parte da intimidade de Fernandinho e no artigo de opinião, tal como no seu trabalho, revela a necessidade de olharmos para o lado da história que permanece na sombra.
João Pina conhecera Fernandinho a propósito de um extenso trabalho fotográfico realizado em 2009 para a revista New Yorker. Através do contacto de um padre evangélico natural da favela, Pina fora conquistando confiança até merecer entrar na intimidade do temido traficante, conforme revela no artigo na revista Época. Quando o vira pela primeira vez, percebe-se que Pina conhecera uma pessoa diferente daquela que antecipara — Guarabu era conhecido como o Escobar brasileiro mas mantinha um estilo de vida nos antípodas da opulência; vivia numa casa pequena, encafuada, como a descreve, com uma bicicleta ergonómica e pouco mais. Mas o momento alto da história surgiria 10 anos mais tarde.
Fora há poucos dias, quando Pina soube da morte de Fernandinho, que se precipitou a opinião que agora publica. Ao procurar mais informações sobre o desaparecimento do ‘traficante solto mais antigo e mais procurado do Rio de Janeiro’, o fotojornalista deparou-se com o uso abusivo da fotografia que tinha conseguido depois de um trabalho demorado de aproximação à história e é a partir daí que estabelece a sua crítica social.
João Pina indaga-se no artigo como é que as mesmas pessoas que usam a sua fotografia sem pedir qualquer autorização são as mesmas que correm a chamar bandido a qualquer um que seja morto pela polícia, sem que, como ele fez, conheçam todos os lados da história das suas vidas. Relacionando duas áreas aparentemente distintas – os direitos de autor e os direitos humanos –, Pina estabelece uma comparação sublime entre a pressa que cada vez mais as pessoas em geral e os jornalistas em particular têm para escrever e se posicionar numa história com a falta de noção que cada uma dessas pessoas tem sobre a vida daqueles que julga.
Para o fotógrafo, é essa superficialidade que sem a mesma relação com as duas partes se torna parcial que cria o clima para eleger populistas e prepara o terreno para o despreito pelos direitos humanos; relatando, por outro lado, como a sua opinião se moldou ao conhecer Fernandinho, um homem que descreve como sagaz, inteligente, curioso e importante na vida daqueles que habitavam no Morro do Dendê – o seu estatuto fazia dele uma espécie de juiz. É nesse ponto que a crítica se vira mais para o papel do jornalismo e nos dá uma lição importante: mais do que informar no sentido quantitativo do termo, Pina lembra-nos que o jornalismo serve para criar pontes e fomentar o civismo, dando contexto em histórias de desigualdade, revelando o humano por trás do símbolo.
De resto, como diz, foi esse o seu trabalho ao longo dos anos nas favelas do Rio onde ao fotografar cenas de violência viu a humanidade dos que as protagonizavam.
“[P]ude ver e ouvir o medo, a angústia e o choro de centenas de pessoas, entre elas traficantes, policiais, familiares e cidadãos comuns que todos os dias são vítimas da violência na ‘cidade maravilhosa’.“
Porque como diz a sabedoria popular, os poemas do Fernando Pessoa ou qualquer história de vida bem contada: nós, individualmente, somos o resultado da soma das circunstâncias e do nosso querer. E como diz o João Pina:
“Caso as circunstâncias e oportunidades para pobres, negros e favelados fossem diferentes, alguém como o Fernando poderia ter capacidade de chegar a ser prefeito do Rio de Janeiro.”
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