Enquanto a Bitcoin atinge valores miseráveis relativamente ao recorde de quase 18 000 euros em finais de 2017, do outro lado do espectro, os Estados e indústrias apresentam a tecnologia blockchain como a mais avançada folha de Excel que a burocratização já viu. No entanto há quem se lance em direcções mestiças. É o caso da Faircoin, uma criptomoeda governada pelos princípios da revolução integral, do modelo colaborativo peer-to-peer (P2P), da ética hacker, da desobediência económica, do cooperativismo aberto e da Democracia sem Estado.
A Faircoin é a moeda da Faircoop, um movimento cooperativo global iniciado em 2014. Os seus membros mais activos vêm de Espanha, Itália e Grécia. Não é coincidência, diz Ana Shametaj, do núcleo local de Milão, que estes sejam os países mais afectados pela crise financeira europeia, e acrescenta que a Faircoin é “uma reivindicação da abstracção da finança mas de acordo com uma ética nos nossos termos”. Actualmente existem cerca de 30 núcleos locais activos em países como México, Argentina, Suíça, Bélgica, França, Sérvia, Guatemala, Brasil ou Gâmbia, que têm como principal objectivo dinamizar uma economia local circular em Faircoin. Por este motivo, a Faircoin comporta-se em parte como outras moedas locais com a diferença de, neste caso, haver interoperabilidade entre diferentes economias circulares autónomas, uma vez que a moeda é a mesma.
Enric Duran é o visionário e fundador da Faircoop, também conhecido como “Robin Hood dos bancos”. Em 2008, depois de solicitar empréstimos no valor de meio milhão de euros – 59 bancos, 68 créditos – anunciou publicamente que não iria pagar a sua dívida e distribuiu todo o dinheiro pela Rede de Decrescimento Catalã. Desde 2013 que é procurado em Espanha e que circula nómada pelo resto do globo, contactando com as diferentes iniciativas que contribuem para o ecossistema da Faircoop. Foi precisamente em 2013 que Duran começou a descobrir as criptomoedas e que viu nelas o potencial para “construir uma economia solidária alternativa”.
A Faircoin
A Faircoin não foi criada de raiz pela sua actual comunidade de utilizadores. Pelo contrário, Duran encontrou a Faircoin “abandonada” pelo seu criador original, fruto de um pump-and-dump scheme. Este é um jogo comum no mercado das criptomoedas (assim como no da bolsa): o jogador cria uma criptomoeda de baixo preço, acumulando uma boa quantidade logo à partida. Convence outros investidores a comprá-la, o que contribui automaticamente para a sua valorização. Quando o preço está alto o suficiente para garantir uma boa margem de lucro, o jogador vende todas as suas moedas, amealha o lucro e deixa para trás uma moeda desvalorizada.
Em 2014, Duran comprou a maior parte das Faircoins a baixo preço e reciclou-as para servir uma nova economia global (uma parte delas continuam “à solta” no mercado especulativo). Tal como a Bitcoin e outras criptomoedas, a Faircoin funcionava a partir de um algoritmo competitivo com um alto consumo energético associado à circulação da moeda. Com a ajuda de programadores – ou, como alguns preferem ser chamados, “activistas que fazem código” – a Faircoin foi re-programada para uma moeda cooperativa. O sistema de circulação da moeda (ou seja, a validação criptográfica de transacções) assenta na cooperação entre vários computadores e requer um fraco poder de processamento – qualquer computador portátil está à altura da tarefa, ao contrário do que acontece, por exemplo, com a Bitcoin, cujas transacções exigem armazéns em potência de processamento, chegando a consumir a mesma energia de alguns pequenos países (já existem, no entanto, Bitcoin farms a funcionar a partir de energias renováveis). Enquanto que na Bitcoin a validação de transacções é feita anonimamente pelos actores que mais recursos computacionais reúnem, na Faircoin a mesma tarefa é assegurada por membros seleccionados consensualmente em assembleia, através de critérios de confiança e de estabilidade no acesso à internet e à electricidade.
Sem paralelo por enquanto no mundo das criptomoedas, o preço da Faircoin também é estabelecido em assembleia pelos seus membros (actualmente equivalente a 1,20 euros). Isto garante que os envolvidos nas economias circulares não sofram a desvalorização da moeda entre o momento da compra ou venda de produtos e o momento da conversão para euros. Finalmente, a liquidez criada pela venda de Faircoins gera capacidade de auto-financiamento: cada núcleo local beneficia de um apoio para o seu arranque e cerca de 30 membros, a nível global, são pagos pelo seu trabalho.
O ecossistema
Foi inicialmente através de membros da Cooperativa Integral Catalã que a Faircoop ganhou maior expressão. Hoje existem, só em Espanha, oito núcleos locais (por região), multiplicando-se em dezenas de sub-núcleos (por cidades ou vilas). Também em Espanha, o município de Arbúcies nas montanhas catalãs começou em 2018 a aceitar Faircoin para pequenos serviços. Mais uma vez, não é por acaso que este casamento cripto-autárquico, também sem paralelo, acontece na Catalunha e Jaume Salmeron, vice-presidente do município e entusiasta do cooperativismo, realça, em relação a esta experiência, a importância de procurar formas de “resistir a embargos económicos de Madrid”.
Um traço importante na Faircoop é o seu foco na criação de infraestrutura – se não para uma economia radicalmente nova, pelo menos para um plano de transição – e, nesse sentido, a criptomeda é aqui apenas o elemento mais hype. Para aumentar a aceitação da Faircoin, foi criada uma carteira digital onde podem coexistir Faircoins, euros, Bitcoins, ethers e dólares, e foi criado um cartão físico que acede a essa carteira através do leitor NFC de um smartphone. Em alguns anos, criou-se um complexo de ferramentas legais que passam por uma cooperativa no Liechenstein, uma cooperativa europeia, contas bancárias na Suíça e em bancos éticos em Espanha e Itália, para além das inúmeras colaborações com outras organizações e colectivos. Entre outras coisas, é a partir destes recursos legais que a Faircoop oferece serviços bancários (Bank of the Commons) e serviços legais para facturação de rendimentos (Freedom Coop). Ainda em processo de discussão estão outras iniciativas que pretendem montar infraestruturas de gestão comum de energia eléctrica, de alojamento ou de «segurança social» para os seus trabalhadores.
Do carácter local da Faircoop é difícil traçar um retrato. Cada núcleo local tem a sua dimensão e foco particular, num conjunto heterogéneo de experiências. Alguns núcleos locais surgem associados a projectos colectivos ou espaços autónomos já existentes, que passam a aceitar Faircoins nos seus bares e cantinas e a dinamizar a compra e venda de produtos em escalas variáveis. Este é o caso da MACAO, em Milão, que organiza um pequeno mercado semanal de produtores locais onde se pode usar Faircoin ou Commoncoin – a sua própria moeda interna (1). Alguns núcleos lançam as suas próprias iniciativas, como foi o caso do núcleo de Salónica, que ajudou a erguer em 2016 um call-center cooperativo mantido por migrantes refugiados e dedicado a informar outros migrantes recém-chegados sobre mobilidade e permanência na Grécia, nas suas línguas maternas e a partir de quem já passou pelo mesmo processo. Através de contactos com o Curdistão foram improvisadas rotas para a venda de produtos curdos na Europa. E num campo de refugiados em Bashur (Curdistão iraquiano), explica Duran, estão a reunir-se fundos “através de uma campanha solidária” para lançar “uma cooperativa para a produção de galinhas”. Em Berna, na Suíça, é possível alugar bicicletas eléctricas com Faircoin, e em Oaxaca, no México, é possível pagar com Faircoin uma experiência de turismo de “convivência e aprendizagem”.
Modelo assembleário
A descentralização permite relativa autonomia no trabalho desenvolvido por cada núcleo ou por equipas dedicadas a áreas de trabalho global – como a equipa de programadores, da tradução de conteúdos ou da comunicação. A isto junta-se um modelo assembleário, onde se articula o trabalho desenvolvido separadamente e onde todas as decisões se tomam por consenso. Se algumas assembleias envolvem um grupo pequeno com proximidade geográfica – como a assembleia de um núcleo local – outras podem envolver centenas de pessoas independentemente da sua localização – como a assembleia geral da Faircoop. Para isso é usado o Telegram, um chatroom encriptado onde existem mais de 120 grupos relacionados com a Faircoop, dedicados a discussões conforme a área de trabalho, os temas de interesse ou o idioma predominante. Em contraste com o que a maior parte das criptomoedas propõe – facilitar a confiança entre utilizadores anónimos cujas interacções se resumem a transacções financeiras – a Faircoop governa uma criptomoeda, e demais projectos, através de um modelo de governação horizontal e baseado em laços de confiança convencional, ainda que muitas vezes virtualmente. De uma forma que remete vagamenta para o confederalismo democrático de Rojava e para a sua organização por conselhos, diferentes grupos tomam decisões por consenso, que vão sendo depois apresentadas nas assembleias de maior escala.
Se, por um lado, o modelo assembleário baseado em consenso é parte estruturante de uma histórica resistência à “representatividade”, a escala possível da sua aplicação não dispensa reflexões – e a experiência da Faircoop permite algumas. Em primeiro lugar, o consenso pode ser paralisante – como descreve Duran, há decisões que precisam de regressar a assembleia várias vezes até que se consiga tomar uma decisão. Em segundo lugar, o consenso pode ser totalizante, movendo-se no sentido da homogeneização política de diferentes pessoas ou grupos que são, na sua natureza situada, naturalmente difusos, e que têm as suas próprias contradições. Em terceiro lugar, a complexidade de um movimento global tão múltiplo e heterogéneo mas que se quer articulado estabelece as suas próprias formas de burocracia, de forma a prevenir uma acção «caótica» no tempo e no espaço, incapaz de se consensualizar, comunicar ou justificar. Nada disto justifica uma apologia dos processos de tomada de decisão centralizados. No entanto coloca à prova, como tantas vezes acontece, modelos de organização assembleários, autónomos e auto-geridos que, longe de serem um protocolo one size fits all, precisam de se re-adaptar e re-pensar constantemente.
Cuidar de uma economia alternativa
O trabalho de construção de uma economia alternativa deixa iluminado o motivo pelo qual vingou nas sociedades capitalistas ocidentais o simplex dos mercados: dá trabalho. Procurar produtos que se possam comprar com Faircoin, trazer mais produtores ou prestadores de serviços para um ecossistema de comércio justo ou criar redes sustentáveis de transporte de produtos são tarefas que requerem grande investimento de tempo e energia, em contraste com o que nos é exigido num supermercado. E a filosofia de fundo nunca está completamente “resolvida”: no encontro anual que em 2018 aconteceu em Novi Sad, na Sérvia, bastante tempo foi dedicado a discutir horizontalidade, cooperação, modelos de trabalho e autonomia – questões revisitadas ciclicamente a partir das experiências práticas. É por isto que a Faircoop vai muito além da criptomoeda: é a reprodução de uma economia justa, das relações humanas que a sustentam e das relações políticas que a configuram que no horizonte se coloca como maior desafio.
Devemos perguntar-nos se o perfil da Faircoin enquanto ‘moeda única’ – partilhada por diferentes economias locais e circulares – não é contraproducente numa época em que se multiplicam as formas monetárias em circulação. Essa multiplicação é proveitosa porque alimenta diferentes concepções sobre ‘o que é dinheiro’ e permite expressar diferentes formas de valorização e de circulação. Permite também que diferentes moedas transportem consigo diferentes projectos políticos. É no sentido da multiplicação que o dinheiro se torna uma mera ferramenta operacional, menos centralizável e com menos poder sobre todas as dimensões da vida. Devemos também questionar-nos sobre a fragilidade de uma criptomoeda, absolutamente dependente de recursos energéticos, internet e hardware para o seu funcionamento. A resiliência de sistemas monetários digitais é ameaçada pelo eminente colapso do sistema capitalista – e mesmo os movimentos de transição capazes de assegurar a vida após o colapso exigem repensar os nossos actuais níveis de consumo energético. Estas, entre muitas outras, são questões que se colocam à medida que se experimenta, mas que não devem estrangular o campo do possível. Bom artífice não tem uma só ferramenta. Se quisermos criar um fundo de emergência para apoiar lutas no outro lado do mundo, que de um dia para o outro possa reunir contribuições vindas de diferentes comunidades, livres de bloqueios ou comissões, uma moeda partilhada e digital é uma óptima ferramenta.
Notas:
(1) A MACAO é um espaço artístico ocupado, actualmente em risco de desalojo pelo município de Milão – um dos últimos municípios ‘de esquerda’ italianos – que quer vender o edifício a um fundo de investimento do BNP Paribas.
PAGELAS: sem paralelo por enquanto no mundo das criptomoedas, o preço da Faircoin é estabelecido em assembleia pelos seus membros (actualmente equivalente a 1,20 euros). Isto garante que os envolvidos nas economias circulares não sofram a desvalorização da moeda entre o momento da compra ou venda de produtos e o momento da conversão para euros. Em alguns anos, criou-se um complexo de ferramentas legais que passam por uma cooperativa no Liechenstein, uma cooperativa europeia, contas bancárias na Suíça e em bancos éticos em Espanha e Itália, para além das inúmeras colaborações com outras organizações e colectivos. Entre outras coisas, é a partir destes recursos legais que a Faircoop oferece serviços bancários (Bank of the Commons) e serviços legais para facturação de rendimentos (Freedom Coop).
Texto de Sandra Faustino Coelho
(Nota: este texto foi originalmente publicado no Jornal Mapa, jornal de informação crítica, editado em papel, tendo sido aqui reproduzido com a devida autorização.)
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