Uma das estações de rádio portuguesas em teoria mais conservadoras, pela sua relação com a Igreja Católica, está simultaneamente na linha da frente no que respeita ao ‘jornalismo de dados’. A Rádio Renascença não está apenas a utilizar dados numéricos para encontrar ângulos jornalísticos distintos e contar histórias interessantes; está a disponibilizar esses dados de forma aberta para que outros órgãos de comunicação social possam usá-los e também produzir notícias, gráficos ou outros conteúdos. Para a Renascença a filosofia ‘open source’ é também uma questão de transparência para com a sua audiência.
Apesar de ter esta designação, o ‘jornalismo de dados’ não é um tipo de jornalismo especial ou diferente dos outros – é jornalismo, ponto, e consiste na análise e tratamento de dados numéricos e na sua apresentação no contexto de uma história qualquer que se quer contar. O ‘jornalismo de dados’ também não é algo novo, existindo desde que existem dados. Só que os avanços tecnológicos a partir da segunda metade do século XX facilitaram o processamento de grandes quantidades de dados, que deixaram de estar em livros e passaram a ser ficheiros digitais; e, assim, novas possibilidades surgiram, numa web em que o conteúdo visual prevalece e onde é possível explorar novos formatos jornalísticos.
Da análise de dados e do seu cruzamento com outras informações não numéricas, podem surgir ângulos jornalísticos distintos ou conclusões interessantes, a que de outra forma não se chegaria. Os dados podem ser apresentados ao leitor numa visualização bonita, como um gráfico, uma infografia ou um vídeo, mas podem também aparecer textualmente num artigo. Acima de tudo, e como noutros “tipos de jornalismo”, o mais importante é a história que se conta.
A Renascença não é o único órgão de comunicação social português a investir em jornalismo de dados, mas destaca-se dos demais por disponibilizar os dados que utiliza nas suas histórias de forma aberta. Desde 2017 que a emissora católica portuguesa mantém um repositório no GitLab, uma das plataformas mais conhecidas entre a comunidade ‘open source’, seguindo o exemplo de diferentes redacções internacionais. Rui Barros, 25 anos, entrou para a Renascença em 2016 através de um estágio de três meses, acabando por ser contratado como o único jornalista de dados na redacção. “O meu trabalho foi recebido muito bem. Claro que no início acredito que gerou alguma confusão ver uma pessoa que tinha sido contratada como jornalista de volta de linhas de código”, conta ao Shifter, via e-mail. “Mas a melhor forma de alguém perceber exactamente o que fazes é ver o resultado final. E quando os restantes jornalistas da Renascença viram as primeiras tabelas interactivas e infografias, as primeiras conclusões e histórias ‘diferentes’ com dados, acho que depressa perceberam o meu trabalho. Bem, isso e quando comecei a ‘safar’ coisas de forma mais rápida porque era capaz de escrever um script ou assim.”
O trabalho desenvolvido por Rui Barros na Renascença vai ser a sua tese de mestrado no curso de Ciências da Comunicação que está a concluir na Universidade do Minho. No GitLab da Renascença encontramos, por exemplo, conjuntos de dados utilizados para construir peças sobre como cada região do país votou nas europeias, como a seca afecta o Douro do vinho ou qual o dia do ano em que mais pessoas se casam. Alguns desses trabalhos começaram como desafios do próprio, outros foram sugeridos pelos seus editores, mas todos envolveram pegar em bases de dados (algumas públicas e acessíveis, outras nem tanto) e trabalhá-las através de algumas linhas de código – Rui usa uma linguagem de programação chamada R.
O repositório da Renascença no GitLab, criado em 2017, contém uma selecção dos dados por detrás dos artigos, gráficos e trabalhos interactivos publicados no site da Renascença, bem como um descritivo da sua origem e da metodologia utilizada nas transformações que foram feitas aos dados originais. Um dos próximos objectivos de Rui e da Renascença é tornar o portal de dados abertos mais acessível e menos técnico, explicando em detalhe como foi feito o tratamento de dados. Algo como isto. “O GitLab não tem a interface mais amigável do mundo para o utilizador comum. Queríamos que leitor que não sabe uma linha de R pudesse pelo menos ler a lógica das análises.”
Rui diz que costuma escrever num bloco de notas em português o que vai fazer em código, a seguir executar esse código e depois escrever novamente em português as conclusões – ou seja, tem tudo anotado mas falta disponibilizar ao público. “Infelizmente manter o portal não é uma tarefa fácil e, ao contrário das peças jornalísticas produzidas, não dá retorno algum. Pelo que tudo o que seja mais do que simplesmente fazer upload dos ficheiros e das análises tem que ser feito em tempos mais mortos ou fora do horário de trabalho”, conta.
O intuito do GitLab é não só servir de arquivo desses dados, mas também permitir que outros órgãos de comunicação social possam pegar nesses dados, que provêm de fontes públicas, e desenvolver as suas próprias análises e conteúdos. Mas é também uma questão de transparência para com a audiência. “O meu editor costuma dizer que a pior coisa que pode acontecer a uma pessoa é ler uma notícia e ficar com perguntas por responder”, explica. “Quando se analisa dados fazem-se escolhas: olha-se para uma coisa e não para outra, não se consideram determinados casos, etc. E isso não só tem de ser explicado ao leitor como esse mesmo leitor deve poder descarregar o código e perceber a 100% aquilo que foi feito.”
A transparência não foi a única motivação para a Renascença disponibilizar os dados que trata em código aberto. É uma questão de altruísmo também. “Infelizmente Portugal tem ainda um problema gravíssimo de abertura de dados e ninguém mais sofre com isso do que os jornalistas. Por natureza os jornalistas, mesmo antes do jornalismo de dados, gostam de ter números. Mas esses números muitas vezes estão perdidos numa gaveta qualquer de uma secretaria-geral deste país. E horas são perdidas para tentar localizar a pessoa certa para conseguir obter esses dados”, explica Rui. “Já que foi investido tanto tempo para conseguir determinados números, que direito tenho eu de deixar essa base de dados presa num disco rígido na redacção? Estamos conscientes que é diferente quando é um órgão de comunicação a pedir o acesso a dados e quando é um cidadão. E por isso acreditamos que faz parte da obrigação moral do jornalista contribuir para esse esforço de tornar os dados da https://staging2.shifter.pt/wp-content/uploads/2021/02/e03c1f45-47ae-3e75-8ad9-75c08c1d37ee.jpgistração pública livres. Algo que deveria ser público por natureza.”
“Sou suspeito, mas sou dos que acredita que esta forma de fazer jornalismo consegue trazer à luz novas abordagens dos temas e novas histórias. Mais jornalistas de dados seria certamente benéfico para todos.” Rui é adepto pessoal da filosofia código aberto e “na análise de dados e nos trabalhos interactivos a Renascença usa imensas soluções open source. E muito do que aprendi, por exemplo em R, que é a linguagem de programação que uso para a análise de dados, foi a ler o código disponibilizado por outras pessoas online”. “Ainda que não sinta que seja um programador brilhante, sinto que é o mínimo que devo fazer é tentar retribuir, publicando as minhas soluções em regime open source”, refere.
Todo o trabalho publicado no GitLab pela Renascença está disponível sob licença Creative Commons, permitindo a sua reutilização de forma livre, inclusive para fins comerciais. A história de Rui Barros na Renascença contrasta com todas as outras histórias que vamos ouvindo de jovens que em início de carreira são obrigados pelas chefias a desempenharem tarefas de que não gostam nas redacções. Rui gosta mesmo do que faz e troce para que o GitLab da Renascença continue e se torne mais conhecido. “Aliás, quando falo com pessoas da comunidade open data costumam perguntar-me como é que convenci as chefias a deixar-me disponibilizar os nossos dados e o código. Na realidade não foi difícil. Apresentei os argumentos que vos disse e a resposta que recebi foi: ‘se isso contribui para a qualidade e transparência do nosso jornalismo, força’. E acho que essa postura diz muito sobre a forma como a Renascença olha para esta nova forma de fazer jornalismo.”
A Renascença pode ter um historial longo – a emissora foi fundada em 1936 –, mas é uma rádio que nunca teve medo de arriscar no digital, na informação e no entretenimento. “Um exemplo é a equipa de vídeo e a webtv, a V+, que foi uma aposta numa altura em que quase ninguém fazia vídeo online em Portugal. E por isso não me surpreende nada que tenha havido esta aposta no seio da emissora católica portuguesa.”
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