Se ligaste o noticiário durante o dia de ontem é pouco provável que a notícia sobre o abate do drone do exército norte-americano na zona do Irão te tenha escapado. Para quem não teve essa oportunidade – ou já deixou esse hábito –, faço um pequeno ponto de contexto: ontem, tropas do exército iraniano terão abatido com um míssil terra-ar um drone de modelo RQ-4A em localização imprecisa – já lá vamos –, aumentando ainda mais a tensão existente entre os dois países.
Cerca de uma semana depois dos ataques aos petroleiros ao largo do Irão por que os Estados Unidos e os seus aliados, Reino Unido e Arábia Saudita, prontamente culparam o exército iraniano; surge assim mais um elemento a somar ao conflito, prontamente ecoado por televisões de todo o mundo.
Se sobre o primeiro caso faltam as evidências – como recordou um representante dos negócios estrangeiros do Japão (“Se ter o nível necessário de especialização é considerado um argumento convincente para estabelecer que foi o Irão, isso também se aplicaria aos Estados Unidos e a Israel”) –, sobre o segundo assume-se uma grande dúvida, a localização, mas pairam uma série de outras questões que aqui tentarei expor numa altura em que pelas notícias dominam as réplicas de ameaças belicistas.
Comecemos pelo princípio que embora possa parecer óbvio, pode não sê-lo para a maioria: o que é um drone?
Um drone é um aparelho de voo não tripulado de dimensões e funções variadas, utilizado pelo exército dos Estados Unidos desde 2001 e mais tarde assimilado por outros países na sua defesa. Neste caso concreto, trata-se de um RQ-4A, desarmado, fabricado pela empresa Northrop Grumman, com uma autonomia de voo que pode chegar às 24 horas, podendo atingir alturas superiores a 16 mil metros.
Nesta missão, o RQ-4A estaria preparado para colectar em tempo real vídeos de alta-resolução em qualquer condição atmosférica.
Os drones têm-se tornado especialmente populares pelo seu uso por parte do exército norte-americano em operações à distância, especialmente no Médio Oriente. O seu uso foi reportado pela primeira vez em ataques ao Afeganistão, mas nos casos mais recentes a estratégia repetiu-se; uma investigação do The Intercept revelou, por exemplo, que entre 2011 e 2018 os Estados Unidos conduziram 550 ataques de drone em território Líbio sem que isso tenha tido grande eco mediático, mas revelando os trilhos por que continuaria a evoluir a indústria da guerra.
O facto de serem não tripulados e permitirem um controlo à distância é visto como o principal trunfo, evitando casualidades e permitindo ataques cirúrgicos; para além disso, podem ser equipados com sistemas que façam, por exemplo, reconhecimento facial podendo localizar alvos à distância, algo que tem agradado aos decisores e feito danos colaterais nas empresas que se propõe a desenvolver esta tecnologia, como o caso da Google com o Project Maven que acabara por abandonar.
Google abandona projecto militar, depois de pressão interna e revelações na imprensa
Feito este ponto prévio e de extraordinária importância, passemos a uma análise mais prática do que aconteceu:
Fontes da diplomacia dos Estados Unidos acusam o Irão de ter abatido o RQ-4C numa zona que ainda consideram Espaço Aéreo Internacional, sob o estreito de Ormuz; do lado iraniano, reitera-se que o ataque ocorreu, sim, mas já no espaço aéreo iraniano, isto é, numa zona onde o aparelho dos Estados Unidos não poderia sobrevoar sem aviso prévio.
Apesar da falta de consenso generalizado sobre o local do ataque, o acontecimento foi pretexto suficiente para as ameaças de guerra subirem de tom e circularem todo o mundo. Mas, afinal, porque interessa a morte de um drone? Se na história vimos guerras começar por mortes de homens, o abate de um drone parece inaugurar um novo capítulo da história.
O abate de um avião não tripulado, provocando a morte de absolutamente 0 pessoas, é elemento que baste para um conflito diplomático ecoado por todo o mundo e que, nas entrelinhas, vai legitimando a escala da retórica belicista do Presidente norte-americano; de resto, as notícias de hoje dizem que Trump chegou mesmo a dar ordens de ataque ao Irão, tendo recuado à última da hora já com navios e aviões a bordo.
Perante isto, é imperativo questionar porque é que a morte de centenas de pessoas, provocadas por semelhantes drones, não chegaram sequer a notícia para além da plataforma The Intercept – que revelou os Drone Papers, destapando a estratégia começada por Obama e continuada por Trump de assassinatos à distância com dezenas de vítimas civis e danos colaterais – e de outras saudáveis mas raras excepções.
Se não vale uma vida, vale o quê?
A queda do drone provocou zero mortos mas nem por isso deixa de ter um custo a que os aparelhos militares são sensíveis; no caso do RQ-4C, são 123 milhões de dólares de tecnologia militar. Mas será este valor um pretexto suficiente para se começar uma guerra? Para responder a esta questão é preciso percebermos a complexa relação entre Estados Unidos e Irão e recordar os anos recentes da história.
Como Mehdi Hasan dizia na introdução do seu habitual podcast Deconstructed, ainda em referência ao ataque aos petroleiros: “É um país do Médio Oriente com muito petróleo, as primeiras três letras são I, R e A e a América quer bombardeá-lo. Em 2003 foi o Iraque. Hoje é um Irão. Os paralelos são mais do que estranhos.”
Em face da narrativa dominante, dizê-lo pode parecer arriscado, mas é ainda mais necessário. Basta recordarmos – como Mehdi Hasan fez – que a guerra no Iraque começou por uma alegada presença de armas de destruição maciça que fez manchetes em todo o mundo para só anos mais tarde ser desmascarada. Hoje, o que sobre isso se escreve, mesmo em media norte-americanos, não deixa dúvidas e é perspectiva histórica suficiente para nos ajudar a ter outro olhar sobre o presente:
“A Administração de Bush exagerou ou descontextualizou conclusões dos serviços de inteligência nas suas declarações públicas. Bush mentiu realmente e pessoas morreram como resultado da guerra que essas mentiras justificaram. Esses são os factos.
A falha no Iraque não foi meramente um caso de políticos bem intencionados mas incompetentes a fazer aquilo que saberiam ser um desastre. É a história dos políticos que repetidamente enganam o público sobre o porquê exacto da guerra ter começado.”
Passados 13 anos do conflito no Iraque escrevia-se isto, esperemos que daqui a 13 não se escreva algo semelhante sobre o Irão. O conflito entre os países é antigo e mistura-se com o complexo xadrez político e religioso da região. O Irão é o principal país xiita, historicamente rival da sunita Arábia Saudita. O conflito que tivera um interregno com o acordo nuclear, voltou à agenda quando Trump retirou os Estados Unidos desse acordo, voltando a ameaçar o Irão com sanções económicas – desde então, o diálogo entre os dois países tem sido pontuado por ameaças com ambos os lados a afirmarem que não querem começar um conflito mas que responderão a agressões.
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