Subsiste o mito de que Lisboa foi fundada por Ulisses, heróica personagem do épico de Homero. Aprendemos na escola, quando nos é introduzido Camões, que um épico tem como personagem principal, um herói. Nos Lusíadas, entregam esse heroísmo a todo um povo de descobridores. Naturalmente que precisamos de rever esta história, mas nunca resisto a apresentar Lisboa como sendo uma cidade fundada por heróis para heróis.
Mas na sua sabedoria, os Gregos criaram outros paralelos igualmente interessantes. Hoje, traduzida como cidade-estado, o conceito de “polis”, no seu sentido original, estabelece uma ligação entre um corpo de cidadãos e a governação da cidade. Este direito participativo era entregue aos que detinham o estatuto de cidadão. Volvidas muitas constituições, a participação política foi restrita à representação a partir do voto, isto é, a “ágora”, espaço público de assembleia, passa a dispor aos cidadãos um teatro da cidadania. Será este conceito da Democracia trágico ou cómico? Sem resposta, posso afirmar que os índices democráticos carecem de participação informada e popular.
Tenho observado com muito interesse o surgimento de novos heróis da cidadania, que constituem polis e que apresentam os seus direitos de participação política em ágora. Podemos até afirmar que se conseguirem manter o portão de entrada para o castelo aberta, tanto a praça de Martim Moniz como a cultura política do Lisboeta podem ser renovados. Não sendo “da minha praça”, encontro no debate gerado à volta da redefinição deste espaço público como o surgimento no panorama nacional de uma nova forma de fazer política assente na participação pública dos residentes locais. Trata-se pois da democratização de assuntos que sendo da competência do município, encontra neste debate a possibilidade de abrir mão da arena política e resgatá-la da mesma autoridade que a codifica e distancia o cidadão da política e a política do cidadão.
Para os mais distraídos, o debate à volta da requalificação da praça de Martim Moniz, retomado após as alterações feitas em 2012, tomou dimensão após a apresentação pública de um projeto de requalificação do espaço público em Novembro de 2018. Contestado nessa mesma apresentação, além do cordão humano à volta da praça no inicio deste Fevereiro, subsiste um contrato entre um privado concessionário deste espaço público até 2022. Comparável na sua alienação, como salienta António Guterres relativamente ao projeto de 2012, nenhuma das lojas parecem ser promovidas por habitantes locais. Perante a diversidade encontrada no bairro, esta riqueza é dispersa num rodízio de culturas importadas. Um teatro da cultura? Admite-se a inevitabilidade dos processos de gentrificação. O segredo está em garantir que as novas oportunidades criadas por um bairro mais afluente e seguro sejam geridas em prol daqueles que apenas subsistiam, de maneira a que possam competir e reclamar o seu lugar face às novas pressões socio-económicas.
Acolhidas algumas das criticas e alterando um pouco o projeto original, aparentemente os “contentores”, como generalizado o projeto avançado pela Câmara, parece que vão mesmo para a frente. Estas reivindicações, a par das representações partidárias, são discutidas numa rede da polis de cidadãos que têm trabalhado em prol do bairro. Convocado pela Associação Renovar a Mouraria (a celebrar 10 anos de trabalho), o cordão humano incluiu ainda o Grupo Gente Nova, e o Movimento Morar em Lisboa, entre outros.
José Pinto, surge como o outro herói neste debate. Também com um currículo de trabalho para a cidade, saliento a criação do festival Out Jazz, entre outros projetos, através da NCS, única candidata à mencionada concessão da praça. Poucos dias após o cordão, apresentou o Manifesto Mercado Martim Moniz, reapresentando o projeto ao público com uma celebração e com uma adesão semelhante, ainda que mais festiva. Através das redes sociais, vem a esclarecer os contributos feitos em prejuízo do concessionário, mantidos devido a investidores que suportaram o trabalho feito na praça. Figura agora um contentor modelo no seu centro e o debate continua.
São muitos os heróis do Martim Moniz, em diversas ágoras, sem representação na polis. Surgiu ainda um projeto alternativo proposto por um cidadão. Deste consensual direito à cidade, advêm inúmeros alternativas para a sua realização. Considerando o défice democrático, a sua procura caí mais para o dever das entidades públicas do que pelo direito à cidadania. Num processo atabalhoado, a Câmara mediu um braço de ferro entre o interesse público e o interesse privado. Felizmente, estão a ser criados espaços de diálogo entre as associações, a população e a concessionária que envergonham qualquer representação ditada pelo município.
A par das iniciativas encontradas no Lisboa Participa, é imperativo tornar as cidades mais de quem pensam nelas. O direito a desafiar, por exemplo, é elaborado a partir de estatutos que permitem ao cidadão ou a coletivos a desafiarem a provisão de serviços públicos de maneira mais eficiente. Do projeto Participatory City-Making, provêm uma série de ferramentas para a elaboração de atividades participativas para a definição da cidade. Uma das iniciativas estudadas aqui em Roterdão, foi a Mooi Mooier Middelland, em que o município atribuiu 7 milhões de euros para um grupo de iniciativas, desenvolverem projetos para o bairro através de um modelo de participação aberta. Um dos grupos resultantes transformou-se no projeto Casa Middeland desenvolvendo-se agora como plataforma de participação política entre as diferentes organizações que constroem o seu mandato por baixo, na cidade.
(Artigo redigido com o novo AO)
Texto de Francisco Santos
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