Na semana passada, o Facebook apresentou a sua criptomoeda e aqui escrevemos sobre o que na altura era possível saber, a partir da leitura dos documentos oficiais e sem o conhecimento de detalhe técnico que nos permitisse ter uma visão crítica consolidada sobre o que realmente essa criação podia representar.
Durante este tempo que passou as análises sobre a iniciativa do Facebook têm sido várias e nesta altura volta a justificar-se que lhe dediquemos mais umas linhas. Nos media mainstream, a cripto do Facebook passou incólume e só o fantasma da regulação e os avisos dos bancos centrais travaram a sua performance. Contudo, para quem gosta de uma visão mais técnica, de uma análise à ética e, eventualmente, de antecipar todas as possibilidades distópicas, a procura é incessante por tentar através de referências contemporâneas situar cada inovação.
Sempre que o tema é o digital, Black Mirror e Mr. Robot são duas séries que saltam para a linha da frente das referências. As semelhanças entre as cenas representadas na ficção, e os avanços que a tecnologia comercial nos vai oferecendo são em alguns casos evidentes e o caso da Libra não é uma excepção. Pela dimensão sobrenatural que algumas das empresas tecnológicas fundadas nos EUA atingiram, compará-las com a E Corp protagonista da série é relativamente comum; mas, se recuarmos até ao episódio número 11 da 2ª temporada de Mr. Robot e à iniciativa desta empresa em criar a sua moeda, a comparação torna-se ainda mais evidente. Num diálogo explícito e assertivo com o Secretário de Estado do Departamento do Tesouro dos EUA, um dos responsáveis da E Corp sugere a criação da E Coin, numa proposta que justifica com o ganho de relevância da Bitcoin.
Na conversa, o representante do poder, e CEO da Evil Corp, Philip Price, expressa a sua preocupação com o estado da finança actual em que “o dinheiro vivo começa a escassear”, que justifica com a predominância de novas moedas como a Bitcoin, alertando o seu interlocutor, um conselheiro na empresa, para a perda de poder que isso significaria para uma empresa como a E Corp.
Philip Price: “Jack, olha para mim. Eu não sou o problema aqui. O problema é que o dinheiro vivo está a desaparecer. Rapidamente. Esse é o caminho que o mundo está a seguir. E a Bitcoin está a espalhar-se – e se a Bitcoin vingar nós estamos no mundo do inferno. E é desregulado. E já atingiu o seu volume máximo de transições e é em parte controlada por miners chineses.
Com a E-Coin, se controlarmos a ledger e os servidores de mining — nós somos a autoridade. E eu vou certificar-me que vocês têm visão de todas as carteiras que forem abertas: todos os empréstimos, todas as transacções. O que significa que podemos criar novos activos. O que significa que podemos começar a reconstruir o sector bancário sem ter de lhe injectar mais fundos federais politicamente intragáveis.”
Anteriormente este mesmo diálogo já tinha servido de comparação com uma outra criptomoeda, o Ripple (XRP); contudo, olhando à realidade actual de cada uma das moedas, a Libra parece encaixar ainda melhor na definição – desde logo, porque é uma iniciativa associada a várias marcas bem cotadas na percepção do público em geral. Brad Garlinghouse, CEO do Ripple, mostrou-se mesmo contente com o surgimento da Libra do Facebook convicto de que levará mais pessoas para o mundo das criptomoeda, pelo que, até disse estar com vontade de enviar uma garrafa de champagne a David Marcus, o líder da equipa da Libra no Facebook.
Mas, afinal, como se distinguem estas iniciativas e porque parece que no diálogo de Mr. Robot se está a falar da iniciativa do Facebook?
A principal distinção entre o Ripple e a Libra é o seu mercado preferencial. Enquanto que o Ripple está de momento focado na alta finança – comprou recentemente uma parte considerável da empresa MoneyGram –, a Libra está a ser preparada para que o seu lançamento seja directo para o consumidor. Por um lado, entenda-se, se o Ripple pode servir como meio de transição para empresas de envio de dinheiro, a Libra, com as suas aplicações em Facebook, quer permitir o envio de dinheiro sem a dependência dessas empresas – provavelmente em somas menores.
Quer uma, quer a outra moeda têm um ponto em comum: recorrem à tecnologia blockchain para oferecer uma alternativa ao software actualmente utilizado pelos bancos para garantir transacções financeiras internacionais, o Swift. Por um lado, o Ripple parece quer-se posicionar como uma blockchain utilizável pelas instituições financeiras, enquanto que a Libra pretende posicionar-se como um mercado por si só. Tanto um como outro caso focam-se em criar uma alternativa mais eficiente ao software ultrapassado utilizado pela banca, a grande diferença está no público. Sintetizando: o Ripple é uma solução para empresas, a Libra pretende ser para pessoas.
O Facebook, com a sua base de utilizadores com 2,2 mil milhões de pessoas interligadas e susceptíveis a ser empactadas pela sua mensagem, faz da Libra um caso muito sério; se no caso do Ripple, o público são os bancos com a sua capacidade de entendimento sobre os protocolos em utilização, no caso da Libra, a ambiguidade em torno da sua comunicação pode ser benéfica para os criadores – um caso em que a opacidade pode ser perigosa para os utilizadores como outros protagonizados pelo mesmo Facebook. Ao vender a ideia de que está a criar uma criptomoeda o Facebook, surfa a onda associada a esta tecnologia com uma série de valores éticos culturalmente associados sem que os subscreva necessariamente – o ponto mais flagrante é o da descentralização.
Se uma criptomoeda originalmente se distinguia pelo seu carácter descentralizado e pela possibilidade de qualquer um fazer mining, no caso da Libra (como no caso do Ripple) isso não acontece. Tal como referido no diálogo de Mr. Robot, a empresa detém a ledger (a cadeia de blockchain) e o monopólio da verificação das transacções (mining) – embora possa não a centralizar numa só empresa, fá-la num conjunto de empresas que tornam a associação criada numa espécie de mega-corporação das corporações. É nesta junção das corporações, neste aglutinado de serviços, que podem então surgir os novos assets independentes dos fundos do governo federal e da regulação de um banco central.
No meio disto, há quem chame à atenção para o facto de que aquilo que agora querem fazer com a Libra ser semelhante ao que a gig economy fez com o mercado laboral – uma disrupção à margem de lei que acabou por vingar. A concentração de poder materializada na criação de uma moeda pode, como desde logo avisámos, ser um forma de promover o monopólio detido pelas empresas em associação – podendo criar cartões de desconto, mecânicas de cash-back, sistemas de crédito, sem a atenção do banco central.
De resto, recorde-se que na cena de Mr. Robot referida, Jack, secretário de Estado do Tesouro, responde à primeira iteração de Philip Price com um assertivo: “É inconstitucional, não podes fazer a tua própria moeda, isso é o trabalho do Governo federal!”
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