Um cenário incomum na generalidade dos países europeus. Os arquitectos e os seus colegas paisagistas demonstram preocupação com este quadro, onde parece não existirem regras definidas. O caos observável é incentivado pela legislação, na qual o direito constitucional à livre expressão suplanta o ordenamento do espaço público. Não é sequer necessário licenciamento para instalar um outdoor partidário. Tanto que a Câmara de Lisboa não sabe quantos existem nas ruas da cidade. Mas a autarquia queixa-se do seu impacto paisagístico e dos danos causados nos pavimentos. Por isso, pede mudanças na lei.
Marquês de Pombal, Praça de Espanha, Campo Pequeno, Saldanha, Largo do Rato, Entrecampos, Alameda Dom Afonso Henriques, Segunda Circular ou Belém, junto à Praça do Império. Algumas das mais movimentadas e icónicas áreas de Lisboa têm sido ocupadas, nos últimos meses, por painéis de propaganda eleitoral de grandes dimensões. A implantação de outdoors com as mensagens dos partidos políticos em zonas centrais e urbanisticamente consolidadas da capital portuguesa está longe de constituir uma novidade, pois tem-se vindo a repetir ao longo das últimas duas décadas, crescendo nas semanas que antecedem a ida às urnas. Uma realidade a destoar com o que é observável na generalidade das grandes cidades europeias, onde tais soluções de comunicação estão banidas das zonas nobres, em nome da defesa da qualidade paisagística e arquitectónica. Uma questão de lei e de costume.
Por cá, poucos parecem ser os que verdadeiramente se incomodam com a questão, mais parecendo assumir-se a localização destes enormes suportes publicitários em pontos nevrálgicos de Lisboa como algo normal, inserida no manancial de recursos de propaganda política ao dispor das candidaturas. Uma postura a destoar com um tempo não muito distante, em que o assunto chegou a causar celeuma em campanhas eleitorais. Há dez anos, em Abril de 2009, o vereador dos Espaços Verdes da capital, José Sá Fernandes, envolveu-se numa acesa polémica com quatro partidos que se recusavam retirar os painéis que haviam colocado junto à rotunda do Marquês de Pombal. Antecipando as legislativas e as autárquicas desse ano – a realizar em Setembro e Outubro, respectivamente –, PSD, PCP, BE e Movimento Esperança Portugal (MEP) decidiram desobedecer à ordem do autarca para não ocuparem a praça com tais infraestruturas.
Invocando a preservação estética do lugar – “o cartaz está a violar os critérios estabelecidos por lei, porque está a estragar o enquadramento daquela zona especial de protecção”, dizia então ao jornais –, o vereador notificou aquelas forças políticas para removerem os painéis de grandes dimensões, mas aquelas recusaram-se a fazê-lo. Mas os social-democratas não se ficaram por aí, apresentando então queixa à Comissão Nacional de Eleições e acusando Sá Fernandes de desconhecimento da lei. Mais, o PSD recordava que, dois anos antes, nas autárquicas intercalares de 2007, e enquanto candidato pelo Bloco de Esquerda, o vereador também ali havia instalado um outdoor onde se podia ler “O Zé faz falta”. Poucos dias depois, e ante a inamovibilidade dos partidos intimados, o autarca apelava ao diálogo e admitia também ter antes cometido o erro que agora apontava aos quatro partidos, por ignorar a legislação em vigor.
Na altura, Sá Fernandes ainda acenou com um parecer pedido ao IGESPAR (Instituto de Gestão do Património Arquitectónico e Arqueológico), segundo o qual aquela era uma “zona sensível”, por se localizar numa área de protecção arquitectónica, sendo por isso de evitar a colocação de tais estruturas. O problema é que a legislação em vigor não será o melhor exemplo de clareza. Ou, assuma-se, a sua interpretação está longe de gerar consenso. A lei de 1988, referente a “afixação e inscrição de mensagens de publicidade e propaganda”, sublinha que compete às Câmaras Municipais disponibilizarem espaço e lugares públicos para afixação de propaganda, incluindo a de campanha eleitoral. E refere especificamente que, nestes momentos, as autarquias devem realizar uma “uma distribuição equitativa dos espaços por todo o seu território de forma a que, em cada local destinado à afixação de propaganda política, cada partido ou força concorrente disponha de uma área disponível não inferior a dois metros quadrados”.
O diploma assume ainda, no seu artigo 4º, que os critérios de licenciamento da propaganda são, na prática, os mesmos que se aplicam à publicidade de âmbito estritamente comercial. De entre eles, destaca-se a preocupação em “não provocar obstrução de perspectivas panorâmicas ou afectar a estética ou o ambiente dos lugares ou da paisagem” e “não prejudicar a beleza ou o enquadramento de monumentos nacionais, de edifícios de interesse público ou outros susceptíveis de ser classificados pelas entidades públicas”. Mas a lei também indica que, em período eleitoral, além da colocar à disposição das forças concorrentes espaços especialmente destinados à afixação da sua propaganda, existe a possibilidade de instalação de “meios amovíveis de propaganda” – os quais deverão cumprir as tais regras enquadramento paisagístico.
Ora, e como é que isto se aplica à prática? Não é muito claro, nem consensual, mas Margarida Cancela d’Abreu, da Associação Portuguesa dos Arquitectos Paisagistas (APAP), não tem dúvidas de que as regras precisam de ser repensadas, ou pelo menos revistas na sua aplicação no terreno. Até porque o actual cenário é muito pouco dignificante. “A dimensão deste fenómeno preocupa-nos. Aquilo a que assistimos nas cidades portuguesas, e em Lisboa em particular, é uma obstrução das vistas e uma óbvia poluição visual. Estes painéis interferem com a fruição da cidade, constituem uma concorrência às panorâmicas existentes”, critica. A arquitecta paisagista salienta que “lá fora, no resto da Europa, este fenómeno não se verifica, não existem painéis nas cidades com estas dimensão e densidade”.
Margarida Cancela d’Abreu sublinha essas vertentes do problema, sem deixar de referir uma outra. “O que vemos em Lisboa é chocante, sobretudo por esses aspectos da densidade e da dimensão, mas também por parecer não haver locais próprios e bem pensados” para os partidos colocarem a sua propaganda, considera. A institucionalização a que temos assistido, nos últimos anos, da instalação de painéis em determinados ponto-chave da capital deixa-a apreensiva. “Há locais da cidade onde eles não deviam estar”, afirma. Defende, por isso, a realização de “estudos de conjunto, identificando sítios específicos, de forma a enquadrar isto em locais próprios” – em linha, aliás, com o que era definido já por um decreto-lei de 1976, sobre os princípios da actividade publicitária. A especialista olha para a legislação em vigor e considera que a Câmara de Lisboa “está a aplicar mal a delegação de competências nesta área”, tendo em conta o que observa nas ruas.
Mas a autarquia da capital, apesar de admitir que o cenário actual está longe de ser agradável à vista, diz-se destituída dos instrumentos legais para agir. “De acordo com a legislação em vigor, a colocação de outdoors com mensagens de propaganda no espaço público está isenta de licenciamento municipal. As autarquias estão impossibilitadas de terem uma palavra a dizer sobre o enquadramento paisagístico dos suportes de propaganda ou sobre a sua dimensão”, informa a Câmara de Lisboa, numa resposta escrita a um conjunto de questões concretas d’O Corvo sobre este fenómeno. Nelas, perguntava-se pelo número de infraestruturas deste género, dedicadas a propaganda partidária, licenciadas na cidade, bem como pela sua distribuição numérica por força política e as principais zonas de concentração. Perguntas que ficam sem resposta, admitindo a edilidade a sua incapacidade em controlar o fenómeno.
“Ainda há pouco tempo a cidade foi confrontada com cartazes de um movimento que ainda nem estava constituído formalmente como partido político (Chega, de André Ventura). Até nestas circunstâncias, a CML nada pôde fazer”, explica a autarquia na referida resposta. A mesma fonte camarária não deixa de lamentar que, “depois de, há uns anos, se ter conseguido um acordo de princípio entre várias forças políticas para que não se colocassem outdoors em espaços e vias de grande capacidade, e onde o impacto visual fosse grande”, estes tenham voltado a surgir “em zonas de relevante centralidade”. Dizendo-se manietada, a Câmara de Lisboa apela a mexidas na lei: “É indiscutível que a implantação de tais estruturas de grande dimensão nesses locais provoca impactes negativos sobretudo ao nível do enquadramento paisagístico, além de danos nos pavimentos da cidade. Esta situação só pode mudar se a lei mudar e isso só pode acontecer por via parlamentar.”
Um recente parecer da Comissão Nacional de Eleições (CNE) veio reforçar o sentimento de aparente, ou quase, inimputabilidade dos partidos políticos no que toca a esta questão. Partindo da interpretação da tal lei de 1988, assegura que “a actividade de propaganda é livre, pode ser desenvolvida a todo o tempo, não carecendo de comunicação, autorização ou licença prévia por parte das autoridades https://staging2.shifter.pt/wp-content/uploads/2021/02/e03c1f45-47ae-3e75-8ad9-75c08c1d37ee.jpgistrativas”. Emitido em Dezembro de 2016 o parecer diz, e tomando ainda como referência a legislação criada há três décadas, que “os espaços de propaganda que as câmaras municipais devem colocar à disposição das forças concorrentes são meios adicionais, não impedindo a utilização de outras formas e espaços que as forças políticas entendam”. Ou seja, em teoria, e tirando os casos de óbvia violação do património classificado, todo o espaço público poderia ser utilizado.
Por causa disso, o presidente da direcção da Ordem dos Arquitectos, José Manuel Parreirinho, concorda que o quadro observável em Lisboa e noutros núcleos urbanos nacionais resulta do facto de “a legislação existente ser contraditória, confusa, muito pouco coerente”. Mas o dirigente frisa que o problema não se restringe aos momentos em que há consultas populares. “O problema dos outdoors é de dois tipos. Há certos sítios onde eles estão lá permanentemente, mas a situação agrava-se com as campanhas eleitorais, em que são espalhados por todo os lados”, descreve, criticando o carácter “intrusivo” destes dispositivos de comunicação em relação ao espaço público. Tal como a sua colega arquitecta paisagista, Parreirinho salienta o facto de Portugal destoar em relação à realidade europeia neste aspecto. Por cá, parece prevalecer o entendimento que o direito constitucional à livre expressão se sobrepõe ao ordenamento do espaço público.
“Houve uma época, nos primeiros anos da democracia portuguesa, em que os cartazes nas paredes eram um problema. Mas, felizmente, deixaram de o ser, os partidos deixaram de o fazer. Agora, esta questão dos outdoors prevalece. É um bocado selvátiva a forma como são colocados”, critica o presidente da Ordem dos Arquitectos, lamentando a maneira como isso interfere com a leitura do espaço público e do edificado. Apesar de censurar a instalação intensiva os grandes painéis, José Manuel Parreirinho até acha que a maior parte dos portugueses, incluindo os que vivem e trabalham em Lisboa, acabam por se revelar indiferentes à sua existência. “Passam por estas coisas, sem as verem”, diz, considerando que o problema com os outdoors de propaganda política até acaba por não diferir assim tanto do decorrente dos painéis com fins comerciais ou até dos painéis com fins comerciais.
“O mobiliário urbano e a sua colocação são um problema. Nos últimos anos, registou-se uma melhoria significativa na gestão do espaço público, é verdade. Mas, depois, há uma grande falta de cuidado na forma como se faz isto. O mobiliário publicitário, por exemplo, é normalmente de má qualidade e em excesso, tal como as papeleiras”, avalia o representante máximo da classe dos arquitectos portugueses. José Manuel Parreirinho avalia ainda de forma negativa o que diz ser o “bombardeamento do espaço público das nossas cidades com sinais de trânsito, alguns dos quais são absurdos”. O presidente da ordem considera que não devemos olhar para esta realidade com resignação. “Há outras formas de fazer isto, sem ser agressivo.” Basta que haja vontade das autarquias e se faça uso de algumas das mais elementares ferramentas do planeamento urbano.
De facto, tal é possível, como salienta Margarida Cancela d’Abreu, da APAP, apontando para as regras definidas não apenas no Plano Director Municipal (PDM) de Lisboa, como noutros normativos elaborados pela câmara municipal. A arquitecta paisagista refere o documento Lisboa, o Desenho da Rua – Manual de Espaço Público, o qual tem, no capítulo referente ao mobiliário urbano, indicações precisas sobre os painéis publicitários – embora seja omisso relativamente à propaganda política. Ali se pode ler que “a instalação de qualquer tipo de suporte para publicidade no espaço público deverá garantir de forma rigorosa a salvaguarda dos valores arquitectónicos e urbanísticos do local, preservando a visibilidade de fachadas, bem como a funcionalidade dos espaços afectados, assim como a sua adequada integração urbanística e arquitectónica”.
Este género de suporte de comunicação, pelas suas dimensões, sempre foi visto como algo mais adequado à beira de estrada, tendo como principal público-alvo os automobilistas. E se é verdade que o automóvel é, ainda, prevalecente nas nossas cidades, com especial relevo em Lisboa, tal não deverá servir como álibi para minimizar a perturbação causada na fruição do espaço público, consideram os especialistas. Até porque tal influi na forma como a capital portuguesa é avaliada por quem a visita. Vejam-se os reparos recentes a esta realidade feitos pelo correspondente do jornal El País, mostrando-se perplexo com a proliferação de outdoors no Marquês de Pombal. É estranho, de facto, mas, se calhar, muitos até se esquecerão que já os houve em locais ainda mais centrais. Nas autárquicas de Dezembro de 2001, para além de ocupar o Marquês, Pedro Santana Lopes, enquanto candidato à presidência da Câmara de Lisboa pelo PSD, colocou painéis gigantes no Terreiro do Paço, no Largo Camões e no Rossio.
Texto e fotos de Samuel Alemão
(Nota: este texto foi originalmente publicado n’O Corvo, jornal digital dedicado à cidade de Lisboa, tendo sido aqui reproduzido com a devida autorização.)
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