O Resto da Tua Vida: a reinvenção do humorista e o renascer do actor

O Resto da Tua Vida: a reinvenção do humorista e o renascer do actor

24 Maio, 2019 /

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O Resto Da Tua Vida nasceu de uma ideia que o humorista Carlos Coutinho Vilhena tinha “guardada na gaveta”, à espera do momento certo. E é a série do momento.

Existem trabalhos que vão ficar para sempre na história pela sua qualidade muito acima da média. Programas como O Último A Sair, Sou Menino Para Ir ou Na Casa D’Este Senhor conseguiram ultrapassar a linha que separa o bom do excecional e entrar para um lugar de acesso muito restrito. No entanto, sem que nada o fizesse prever, este grupo conheceu recentemente um novo candidato através da série humorística e documental O Resto da Tua Vida, de Carlos Coutinho Vilhena, que estreou no dia 7 de Abril no canal de YouTube do próprio.

“Acertaste em quase todas as coisas de que eu gosto. Se dizes O Último A Sair, eu fico orgulhoso porque acho que é dos projectos mais ambiciosos; adoro o Sou Menino Para Ir também”, referiu Carlos numa conversa com o Shifter por telefone. “Uma série que foi importante para mim também entre realidade e ficção é o Na Casa D’Este Senhor do Bondage, acho que é uma das maiores pérolas do humor em Portugal. Eu não sigo assim tantos exemplos lá fora, mesmo na música e no humor eu fico muito por aqui.”

Para quem ainda não teve a oportunidade de ver O Resto da Tua Vida, preparem-se para um momento genial de produção, onde a ficção e realidade se misturam e o conteúdo se completa através de um formato multi-canal (sendo o canal do YouTube o principal). “Nós estamos a tentar fazer o máximo de ideias e dividir a série em várias plataformas. Conseguimos fazer na televisão, nas revistas e internet. Mas é uma coisa que dá muito trabalho. Não só ir às entrevistas, como prepará-las, marcá-las, editar o episódio, fazer o canal dele, os posts no Instagram e tratar da imprensa. Nós às vezes gostávamos de ter mais coisas cá fora e não as fazemos, mas como isto foi tudo planeado há muito tempo está tudo a rebentar agora. Ainda temos muitas coisas preparadas para sair e achamos que estamos a meio do caminho, ainda temos muita coisa para mandar cá para fora que acho que as pessoas não estão à espera.”

Não só pelo sucesso mediático do trabalho, mas, sobretudo, pela eximia qualidade de produção daquele que é um dos melhores conteúdos portugueses da actualidade; conta com uma vasta equipa técnica de três pessoas: um director de fotografia, um operador de câmara, e o Carlos que edita – e que nos atendeu o telefone para nos explicar, afinal, que série é esta.

Um pouco de contexto

Estávamos em 2005, no auge de um dos maiores sucessos da televisão portuguesa, a novela juvenil Morangos Com Açúcar encontrava-se na sua 3ª temporada e contava com um elenco de figuras que hoje todos conhecemos: Joana Duarte, Luís Lourenço, Ana Guiomar, Diana Chaves, Diogo Valsassina, Francisco Côrte-Real, Jessica Athayde… e isto só para nomear alguns dos grandes nomes da atualidade que surgiram dessa temporada.

Mas e o João André? Possivelmente ninguém sabia quem era o João, mas se falarmos do Kiko, companheiro de aventuras do Manel e da Becas, com o famoso “K” na parte de trás da cabeça, toda a gente se recorda. Pois bem, da mesma forma que dos Morangos saíram super-estrelas que todos reconhecemos, também existiram pessoas que viveram todo esse mundo e sentiram toda essa popularidade mas, no final, quando ficaram sem trabalho na novela, rapidamente caíram no anonimato e passaram a fazer parte da população “normal” – com a excepção de que durante largos anos continuaram a ser reconhecidos pela personagem que interpretaram e não pela pessoa que são…

E é nesta altura que nos perguntamos porquê? Como é possível passar do topo para o anonimato tão rapidamente? Foi mesma essa a questão que colocámos ao Carlos: “A gestão de carreira, sobretudo num mercado asfixiado como é o português, é a única coisa que importa. Se houver talento melhor porque és aceite pelos pares e tens o respeito do público, mas podes perfeitamente ter uma carreira se só tiveres gestão de carreira, podes perfeitamente ter sucesso numa área em que não tenhas muito talento. Eu também não acredito no talento, acredito sim no trabalho e na reinvenção e na tentativa-erro, mas acreditando que há pessoas com um dom, por exemplo para cantar, às vezes a forma como se ‘vendem’ é muito mais importante até do que teres uma letra incrível ou seres muito profundo. Acho que é mesmo a forma como apareces e a forma como te posicionas – no mercado dos actores então… é fundamental.

O problema dos actores é que, é muito complicado o grande publico definir e decidir o que é um bom actor e um mau ator. A maior parte das pessoas que está a ver uma novela não percebe a diferença entre a Rita Blanco ou uma atriz que apareceu lá há dois meses. Não consegue porque a nível técnico a boa representação não é fácil de identificar – na música facilmente se percebe se aquela pessoa canta bem ou não, ou se este humorista me faz rir ou não, é muito mais preto no branco. A gestão de carreira nesse sentido é fundamental.”

João e Carlos com Manuel Luís Goucha (via Instagram)

Esta é a história do João André

O Resto Da Tua Vida nasceu de uma ideia que o humorista Carlos Coutinho Vilhena tinha “guardada na gaveta”, à espera do momento certo, que se deu quando a vida dos dois se cruzou no dia em que João foi a casa de Carlos entregar-lhe uma pizza (este episódio foi gravado e está na série). Foi tudo real. “Agora… eu já tinha aquela ideia há uns anos, não sabia era que ia ser com ele. São daquelas ideias que ficamos com elas uns anos na gaveta e depois há uma altura em que têm mesmo de sair.”

A partir deste encontro, o Carlos propôs ao João ser o manager dele durante um ano e relançar-lhe a carreira, o que foi aceite de bom grado pelo jovem actor e fundador da companhia de teatro Bruta.

As coisas começaram a tornar-se mais interessantes quando a série é exactamente sobre esse ano, esse encontro, essas conversas e todo esse tempo de planeamento. Ou seja, actualmente o João André está com a carreira relançada porque os vídeos começaram a sair há um mês, mas aquilo que vemos nos vídeos é o início e o caminho percorrido para chegar a todo este momento – o que acaba por ser um pouco ao estilo do que foi feito em Seinfield. Isto faz com que haja uma linha muito ténue entre o que é real e o que não, que por vezes deixa os fãs confusos.

“Todas as histórias são reais… o que acontece é que, como gravamos tantas horas, eu escolho aquilo que quero, ou seja, cada episódio tem a narrativa de uma série normal – primeiro há um conflito e depois uma solução –, e isso é o que confunde as pessoas, mas é tudo real. Muitas vezes eu digo aos câmaras para porem a gravar mas não me avisarem, nem a mim, nem ao João. O que se calhar não é real? Os momentos de humor, como por exemplo, o do Papa. Não é real no sentido em que eu já pensei neles, mas para o João é tudo real.”

João e Carlos brincaram com o fim da série no Instagram e no 5PMN (via Instagram)

O caminho a seguir

Para o comum do espectador é normal pensar que a série está toda estruturada, com um número de episódios definidos, um final estipulado e que neste momento todo o projecto está na fase“fazer upload” e recolher os frutos do trabalho realizado durante um ano. Mas a verdade é que esse não é o caso – nem de perto –, não só não existe um número de episódios estipulado como não existe um final escrito. “O final tem de ser real, é o que acontecer. Não quero que o João seja outra vez fenómeno que vai rebentar este ano por causa da série e depois volta. Eu quero que o João tenha uma carreira estruturada e mesmo que nós continuemos com a série ou não, ou que só tenha uma temporada, ou que termine já, eu quero que ele se mantenha… pode acabar no próximo sinceramente. Nós estamos exatamente nesse ponto, estamos em filmagens e edições e estamos dependentes de circunstâncias que são exteriores a nós.”

Mas se por um lado não há um final estipulado para a série, existe sim uma ideia do sentido que ambos gostariam que a carreira do João tomasse: “O que é que queria? Era vê-lo nas carreiras que dão dinheiro. Ele agora tem carradas de seguidores, neste momento está quase com média de likes maior que o Pedro Teixeira, agora será que isto vai durar? Não sabemos. Que ele vai ter mais público nas peças do teatro? Claro. Mas também não sei se as peças do teatro são o que o público quer, não sei se o público que segue a série é o público que ele quer a ver uma interpretação da Odisseia… estamos nesta guerra.

O que é que eu quero? Quero que ele viva disto. Que não tenha de ter mais trabalhos precários, mas que no fundo também faça aquilo que gosta, e eu acho que dá para fazer este equilibro e há vários atores que fazem isso como o Miguel Guilherme, a Rita Blanco, o Albano Jerónimo. Eu acho é que, com tantos seguidores – há muito poucos atores que estão quase a chegar aos 100 mil seguidores –, ele consegue passar para o próximo nível, ou seja, ele já tem uma base em que pode criar as curtas dele, a ficção dele, e eu quero ajudar nesse sentido – na realização e na edição –, quero que ele seja um actor respeitado mas que também ganhe dinheiro, que faça aquilo que gosta porque nem todos fazemos aquilo que gostamos.”

Uma questão de números

No mundo de constante feedback, em que a quantidade de likes, partilhas e visualizações, dão uma resposta imediata por parte do público da qualidade do trabalho em questão e acabam por, de certa forma, definir o que é bom do que não é, então O Resto Da Tua Vida até nesse campo se destaca. Com menos de um mês de existência, os cinco vídeos da série são os mais vistos do canal do Carlos com quase três milhões de visualizações em conjunto.

“Não estava nada à espera disto, nada mesmo. Sabia que por ter uma figura dos Morangos, que foi uma série mediática, podia ganhar algum feedback mas nunca pensei que fosse ser assim, até porque ele não era o protagonista e aí pensava até que as pessoas não se iam lembrar dele ou não iam ter tanto interesse por esta história, mas como estava a gostar tanto de fazer aquilo, desde a linha narrativa que nós encontrámos, a forma como eu cheguei à edição que eu queria… eu estava a gostar apesar de não saber se o meu público – dos sketches mais intemporais –, ia gostar. Também não estava muito preocupado porque se eu não me reinventar com esta idade quando é que me vou reinventar?! Tenho 25 anos e é altura certa para eu poder falhar, mesmo que não resultasse porque eu quis fazer um capricho depois tenho sempre a possibilidade de fazer coisas mais mainstream. O que acontece é que, de repente, isto é o projeto com conteúdo mais transversal que eu tenho. O conteúdo é bem mais familiar do que eu estava à espera e tenho muita gente com 40/50 anos que me dão feedback ou que dizem que gostaram – este projeto acabou por ser um conteúdo bem mais familiar do que o que eu estava à espera…”

Recebi mensagens quase do humor todo em Portugal. Agora publicamente tive o Pombares e o João Quadros que escreveram o Último a Sair, chegaram a fazer posts sobre isso o que me deixa muito contente claro. O que eu senti mais foi esse respeito dos pares porque eu até agora era um puto que ainda está a ver se vai bater, se não vai, ‘ele realmente já vive disto, mas quem é ele e o que é que ele faz?’. E neste momento senti que dei um passo de ‘ah ok, ele afinal é alguém e está connosco aqui na guerra’. Recebi o feedback das pessoas que admiro e fiquei feliz com isso.”

João Quadros diz que “é do melhor que já foi feito” (via Twitter)

Como aconteceu no passado com grandes séries – Último a Sair, Uma Nêspera no Cú, etc –, todo o sucesso mediático que esta série tem faz com que se siga um pedido do publico para que venham mais temporadas ou que se volte a fazer o mesmo mas com outras pessoas – neste caso uma espécie de agência de talentos dos Fábio Paim e Zé Marias deste mundo –, mas esse não parece ser o caminho a seguir. “Estou a sentir essa pressão porque se calhar até era um projeto que bateria. Mas os exemplos que eu sigo e os artistas que eu gosto, o que me dizem é que quando o público quer uma coisa o ideal é tu fazeres o contrário, como eu fiz quando acabei com o Bom Vivant. Aqui passa-se o mesmo, o processo foi bom com o João e acho que vai ficar por aqui. Para além de ser complicado ter uma segunda série tão forte e arranjar uma pessoa com o talento do João mais a capacidade de encaixe (porque não é qualquer pessoa que está comigo 20 minutos a puxar um cortinado para cima e para baixo e a alinhar na brincadeira), iria existir esse risco e depois as pessoas iam querer fazer comparações.”

Shifter: O que dizem os teus olhos?
Carlos Coutinho Vilhena: Os meus olhos dizem que eu estou feliz agora, podia acabar amanha a minha carreira e já tinha feito uma coisa porreira. Estou relaxo dos ombros.

Sobre os próximos episódios (via Instagram)

Capítulo final

Ao contrário da incerteza que existe sobre o número de episódios, o final ideal, ou o que se segue depois deste capítulo na vida dos dois, existe sim, uma grande certeza de que este projeto foi uma aposta ganha e que o risco de “reinvenção aos 25 anos” valeu bem a pena.

O Resto da Tua Vida é um daqueles raros casos em que todos ganham: o Carlos e a sua equipa pelo reconhecimento e alcance de um novo patamar no humor em Portugal, o João André pelo renascer da sua carreira e oportunidade de poder fazer aquilo que gosta a nível profissional, e – o mais importante – o público, não só pela série que em si (que está fenomenal) mas, sobretudo, pelo artista que após nos presentear com algo deste calibre afirma-se e estabelece um novo padrão de qualidade para os seus trabalhos futuros, passando do puto que está a dar os primeiros passos para alguém que “está na guerra”.

Quanto a nós resta-nos esperar pelos próximos episódios…

Autor:
24 Maio, 2019

Nascido e criado em Coimbra, onde se encontra a estudar Marketing e Negócios Internacionais. Apaixonou-se pela escrita, é amante de cafés e tem um relacionamento sério com a literatura. Escritor favorito: Ernst Hemingway. Livro favorito: Crime e Castigo, de Fiódor Dostoiévski.

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