(Nota: o que vais ouvir, ler ou ver foi produzido pela equipa do Fumaça, um projecto de jornalismo independente, e foi originalmente publicado em fumaca.pt.)
Até ao fim do ano, uma petrolífera planeia furar em Aljubarrota e na Bajouca, em busca de gás natural. Em Dá-lhe Dás, série de quatro episódios, contamos as histórias por contar, os bastidores, a oposição das populações e as promessas da empresa. Meses de investigação não deixam dúvidas: as decisões nacionais e europeias estão a salvar a indústria do gás.
Episódio 3: o mini-mercado do Soares – a Australis foi a Aljubarrota e à Bajouca apresentar-se ao povo. Como vão ser feitos os furos e de que forma? E como apareceu nos contratos a referência à técnica de fraturação hidráulica (fracking)? Que promessas fez a empresa? Há medo de que as águas sejam contaminadas e de que haja impactos negativos na agricultura. Na Bajouca, a maioria da população está contra o furo – e mostra-o.
Este episódio foi produzido para ser ouvido. Mas pode ser lido em simultâneo. O que se segue abaixo é a transcrição integral de toda a peça áudio, acompanhada de fotos e mapas.
Parte I – Vinagre
Na Bajouca, em Leiria, as pessoas não sabiam que aí vinha a indústria do gás. As suas casas, locais de trabalho, os cafés e restaurantes onde comem, as igrejas onde rezam, os campos que cultivam, toda esta área foi concessionada. Sem que se soubesse de nada. Os 2 510 km2 de direitos de exploração do subsolo nacional que o Governo vendeu em 2015 dividem-se por 18 concelhos onde moram cerca de 825 mil pessoas. Mas nesta ampla área do Centro-Oeste nacional, há terras onde a indústria petrolífera não é estranha. Em Aljubarrota, por exemplo, há mais de 20 anos que várias empresas já tinham furado e feito campanhas geossísmicas. Já tinham entrado no imaginário da população.
João Vinagre:
Eu também só descobri o furo mesmo em cima e foi o que fez mexer. Foi ser daqui. Estar ligado a movimentos sociais e ambientalistas e perceber que, em Portugal, as empresas estavam cá, pá, desde 1800. Mas, forte, forte, começaram há 20 anos, 30, e não havia nenhum grupo ambientalista, não havia ninguém a acompanhar, não havia nenhum relatório, ninguém fazia perguntas. E eu pensei, ‘como é que é possível isto estar aqui há 20 anos’?
Apresento-vos uma voz que vão ouvir várias vezes ao longo deste episódio.
João Vinagre:
O meu nome é João Vinagre, eu vivo nas Caldas, nascido e vivo cá ainda. Portanto, cresci na zona Oeste e em 2012…
Em 2012, João percebeu que andavam a montar uma torre para furar mesmo ao lado do Mosteiro de Alcobaça…
João Vinagre:
… E aí é que eles descobriram a coluna de gás que leva a que haja empresas ainda interessadas em investir.
E isso fê-lo passar os últimos anos a investigar tudo o que podia sobre as indústrias petrolíferas no mundo e cá dentro. Criou um blogue, chamado Gás Natural Não, onde coloca notícias, pesquisas, vídeos, divulga eventos e campanhas, explora estudos, teses de mestrado e doutoramento, escreve reflexões, análises críticas, teorias – umas mais certas e factuais que outras. Um verdadeiro repositório sobre o tema.
Vinagre é um homem de muitas causas, lê, estuda, investiga. Foi a primeira pessoa com quem falei para fazer esta série. Passamos mais de três horas à conversa.
João Vinagre:
Epá, eu não sou técnico, mas eu acompanho isto há seis anos, e não acompanho em Portugal. Durante muitos anos tive de acompanhar o que se passava nos Estados Unidos, na Austrália, na Polónia…
No início a sua atenção virou-se para fora de Portugal e a sua preocupação estava nas explorações não convencionais de petróleo e de gás, como as areias betuminosas ou o gás de xisto. Nos furos tradicionais, como se caricatura nos filmes ou nos desenhos animados, faz-se um furo num reservatório de petróleo ou gás e ele vem à superfície. Nas explorações não convencionais os hidrocarbonetos não se juntam em grandes bolsas homogéneas debaixo da terra, podem estar misturados com e entre vários tipos de rochas, areias, lamas, de forma fragmentada.
João Vinagre:
O que a tornou não convencional – e o nome foi dado pelas empresas – foi isso. Foi o tipo de investimento que tinhas que dar para estudar tecnologias novas, materiais novos, que tornassem, economicamente, viável.
João esteve envolvido numa campanha internacional que lutava contra a extração de areias betuminosas (que são uma mistura de areia, barro, água e betume) e a sua exportação para Europa. Esta é uma das formas mais poluentes e destrutivas de explorar petróleo e que usa mais energia para o transformar. Tem o seu epicentro na província de Alberta, no Canadá e é um gigantesco depósito de hidrocarbonetos onde se montou um dos mais impressionantes projetos industriais da humanidade.
Em 2015, um grupo com mais de 100 cientistas norte-americanos e canadianos assinou uma carta pedindo uma moratória à extração deste tipo de matéria prima pelos efeitos que provoca na paisagem, na contaminação de águas e poluição do ar e pelos impactos nas comunidades. O Canadá é o terceiro país do mundo em reservas de petróleo, atrás da Arábia Saudita e da Venezuela, onde também há explorações de areias deste tipo, na região de Orinoco.
O ativista começou também a olhar para outro tipo explorações…
João Vinagre:
Disseram-me: ‘Como é que é? Queres apresentar uma cena sobre o fracking? Damos-te ali um espaço e tu…’.
E ele lá foi falar de mais uma técnica não convencional, chamada fraturação hidráulica ou fracking, em inglês. Consiste num furo vertical que já debaixo da terra faz um desvio, tornando-se horizontal – como se fosse um L. Isto permite esburacar uma secção muito mais longa do subsolo. Depois é injetada, a alta pressão, uma mistura de milhares de litros de água, areia e centenas de produtos químicos, de modo a rebentar a rocha e soltar o gás ou óleo aí aprisionado. Essa mistura volta à superfície, os hidrocarbonetos são aproveitados e o que sobra de água, químicos e lamas é colocado em lagoas a céu aberto, muitas vezes abandonadas sem tratamento ou despejadas em lixeiras, provocando a contaminação de linhas de água ou aquíferos subterrâneos, como demonstrou um estudo da Agência de Proteção Ambiental dos Estados Unidos da América, publicado em 2016.
É por causa destas consequências que João Vinagre não quer cá o fracking. Ela acha que é bem possível que a Australis recorra a esta técnica para furar em Aljubarrota ou na Bajouca. Não tirou esta conclusão do nada. Na verdade, parece até ter bastante lógica. Por três razões, ora acompanhem-me:
Primeira razão. Em todos os documentos submetidos ao longo do processo de avaliação ambiental – explicámos o que isto era no último episódio – a empresa descreve os furos como perfurações verticais que depois fazem um desvio horizontal, a forma mais comum de extração de fracking.
Segunda razão. Os contratos de concessão Batalha e Pombal – é sempre destas áreas que falamos – são, na prática, tirados a papel químico um do outro. Só muda o nome e as coordenadas da zona vendida. E nestes está escrito nos números, 3, 4 e 5 do artigo 2.º que a concessionária – a Australis – (e cito) “deverá respeitar todas as leis em vigor durante a vigência do contrato de concessão, em particular a que respeitar à utilização de técnicas de fraturação hidráulica”. Diz-se ainda que para poder usar esta técnica tem de ser pedida “autorização prévia à tutela, a qual só poderá ser recusada com fundamento na Lei” e ainda que se a tutela – portanto o Ministro ou Secretário de Estado com a pasta da Energia – não responder ao pedido no prazo de 30 dias, (cito) “considerar-se-á o mesmo pedido como aprovado”.
Terceira razão. Para além de Portugal – onde ainda não fez nenhum furo – a única outra geografia onde a Australis opera é nos Estados Unidos da América. Até ao final de 2018, era a principal titular de direitos de superfície na área central de produção da Tuscaloosa Marine Shale (TMS), uma bacia sedimentar entre os estados do Louisiana e Mississippi, onde a petrolífera explorava 59 poços de petróleo. Mas tem uma área tão grande que no seu relatório anual de 2018 estimava poder abrir cerca de 410 poços nos próximos anos. E em todos eles…
Ian Lusted: We use fracking in the US, yes. It is a tool in the toolbox.
As palavras são de Ian Lusted, CEO da Australis, quando foi a Leiria, em outubro passado, apresentar os planos da companhia aos autarcas, ambientalistas e jornalistas. O fracking é uma ferramenta na caixa de ferramentas. E pelos vistos é uma ferramenta que se usa apenas nos Estados Unidos da América, não em Portugal.
Resumindo. Nos contratos assinados entre a Australis e o Estado Português a técnica de fraturação hidráulica não está proibida e diz-se que pode ser usada, desde que autorizada pelo Governo; o tipo de furo que se vai fazer – vertical e depois horizontal – é semelhante aos que se fazem num furo de fracking e, finalmente, fora de Portugal, no único local onde tem operações, nos EUA, a Australis utiliza fracking para explorar petróleo.
O que empresa diz e repete – em todas as declarações públicas, comunicados de imprensa e entrevistas não deixa margem para outras interpretações: em Portugal não vai usar a fraturação hidráulica. Os furos serão convencionais, tão normais como qualquer furo para captação de água.
Será que alguém em Aljubarrota ou na Bajouca acredita nisto? Que já ouviu falar em fracking ou fracturação hidráulica? Que percebe o que é isso quer dizer? E de que forma reagiram as populações quando a petrolífera lhes foi apresentar o seu projeto, cara a cara? Será que vão deixar os furos acontecer?
“A padeira da Bajouca” é o terceiro episódio da série Dá-lhe Gás. Seja toda a gente bem-vinda ao Fumaça, eu sou o Pedro Miguel Santos.
Parte II – Fracking
Não é só João Vinagre a andar desconfiado. A maioria dos ambientalistas e ativistas anti-gás estão. Terã as suas desconfianças dos ambientalistas terão razão de ser? Fazendo fé em toda a informação submetida pela empresa em documentos oficiais, não. Não há razões factuais para acreditar que haverá fracking em Aljubarrota ou na Bajouca. Mas a verdade é que acreditar na palavra de empresas petrolíferas é o mesmo que acreditar na palavra das tabaqueiras, antes de serem obrigadas a colocar nos maços de cigarros a frase “fumar mata”. Durante décadas as empresas de fumo negaram que o tabaco causasse danos à saúde ou sequer provocasse cancro. Faziam publicidade prometendo maravilhas e gastaram milhões a promover a desconfiança sobre as consequências negativas dos seus produtos, num conluio de desinformação que ficou conhecido como “Operação Berkshire”.
Na indústria petrolífera passa-se mais ou menos o mesmo. Há mais de 50 anos que a empresas de petróleo dos Estados Unidos da América tem conhecimento das consequências danosas que a queima de combustíveis fósseis traria ao sistema climático e sabe-se, hoje, que nos anos 80 gigantes como a Exxon e a Shell tinham relatórios internos secretos que já identificavam de forma muito clara os danos que seus produtos causavam no ambiente e no aquecimento do Planeta.
Não há evidências de que a Australis tenha este tipo de práticas. Mas até ir explicar às populações, tintim por tintim, o que queria fazer a desconfiança instalou-se, sobretudo na Bajouca. Lá iremos mais à frente. Porque, em Aljubarrota, a coisa parece mais tranquila, como lembra o João Vinagre.
João Vinagre: Aqui em Alcobaça fizemos uma ação que foi distribuir flyers. Aproveitámos a feira medieval de Aljubarrota e tentámos incentivar um bocado as mulheres de Aljubarrota, mas pronto, foi engraçado. A única… A conversa que tivemos lá no café foi logo um rapaz a dizer “Então, mas então é mau porquê? Eu tenho ali um terreno e eles pagam-me não sei quanto por ele. Porque é que é mau? Ali o outro senhor alugou um terreno ali um ano, recebia 3000 euros por mês. É mau porquê?”. O impacto que a indústria petrolífera deixou na área não foi nada negativo, e isso é um problema que o ativista, ou a pessoa ativa, ou a pessoa local vai ter uma grande dificuldade em dar a volta.
Pedro Miguel Santos: E o que é que se responde a esses argumentos?
João Vinagre: [risos] Não sei. Não é fácil.
Não só andou ele e outros ativistas da campanha vestidos de Padeira de Aljubarrota, na Feira Medieval, em agosto de 2018, como organizaram também sessões de esclarecimento e debate. José Lourenço Severino, o presidente da junta de Aljubarrota, esteve numa delas, realizada em Alcobaça.
José Lourenço Severino: Não estão motivadas, as pessoas querem que os outros trabalhem para eles, está a perceber.
Pedro Miguel Santos: [risos] Mas acha que não as preocupa, mesmo a questão das águas ou dos impactes?
José Lourenço Severino: É como eu lhe estou a dizer, as pessoas… Tudo o que é formado, tudo o que tem conhecimentos reais, preocupa-se. Os outros, não querem saber. Fizeram uma reunião em Alcobaça, anunciaram na rádio e tudo, apareceram lá um máximo 20, mas de Aljubarrota só tive eu e mais dois ou três…
João Vinagre percebe bem as dificuldades de lutar contra empresas tão poderosas.
João Vinagre:
Eles estão aqui há 20 anos, hum. Quando a gente está aqui há dois a tentar falar com as pessoas, as petrolíferas têm 20 anos de trabalho com a população ali, então…
Nas mil e umas vidas que já teve, nas muitas causas em que já militou – da libertação animal à luta contra a construção das barragens do Sabor e de Foz Tua – sabe que não há receitas que se apliquem de igual modo em cada terra. Cada comunidade é uma comunidade. E, muitas vezes, a palavra ambientalista é um mau cartão de visita…
João Vinagre: Foi o que aconteceu nesse café: o pessoal começou a falar em alterações climáticas, em economia, e acabou-se. Tu não podes chegar a uma população no meio do nada e começares a falar… Tens de os fazer perceber que os filhos já não se interessam e que o que eles usaram a vida toda vai-se perder. E que as gerações futuras podem vir a precisar disso, que é a água, a terra e o convívio entre eles e entreajuda. Que é o que acontece nas aldeias. Tu chegas lá, vivem lá idosos, não vivem lá pessoas novas. As pessoas novas que vivem lá às vezes são investidores de agricultura, só que como é que tu vais dizer a um agricultor ‘Epá, você não pode deixar as petrolíferas vir para aqui porque se não…’. ‘Então, mas como é que achas que eu exporto a minha fruta? Como é que achas que o meu trator funciona? Se vocês param com o petróleo, como eu a gente vai ganhar dinheiro para a família comer?’
Pedro Miguel Santos: Isso eram as respostas das pessoas?
João Vinagre: Isso eram as respostas. São respostas comuns. É uma resposta que existe em qualquer comércio que tu vás tentar fechar. Até… Até comunidades que vendem drogas é o que respondem: ‘como é que eu vou ganhar dinheiro para a minha família?’. É o que te dá dinheiro. E isso sempre tem sido um dos problemas do movimento ambientalista em Portugal ao tentar introduzir leis de proteção seja lá onde for. Tens os caçadores que não gostam dos ambientalistas, tens os agricultores que não gostam dos ambientalistas. Eu trabalho do campo. Todos os dias tenho de lidar com pessoas, eles sabem o que é que eu defendo. E é isso, tu não consegues falar de… ‘temos de acabar com o petróleo’. (…)
Eu já estive na luta contra as barragens em Trás-os-Montes, e o que existe muito nas aldeias e nos pequenos povos é a ideia má dos ambientalistas e dos de esquerda ou de direita, não interessa. A partir do momento em que eles te identificam, ou que o teu vocabulário tem a ver com a salvação do planeta, numa melhor política, na na na, perdes as pessoas.
Talvez o tom de gozo com que foram ditas as palavras seguintes, seja disso um bom exemplo.
José Carvalho:
Sou José Carvalho, Provedor da Santa Casa da Misericórdia de Aljubarrota, e tenho a dizer o seguinte: Se o Estudo de Impacte Ambiental for favorável, que avance a exploração de gás, porque nós aqui na Santa Casa há anos que precisamos de gás natural, que ainda não nos puseram. [risos] Avancem com isso.
Foi a última intervenção numa longa reunião de quase três horas.
A 28 de janeiro deste ano a Australis fez a sua primeira apresentação pública destinada ao Povo de Aljubarrota. Pelas 20:30, no salão da junta de freguesia estava tudo apostos: colunas, projetor, aquecedor ligado – que a noite estava fria – 50 cadeiras, perfeitamente alinhadas, à espera das gentes. Cá fora, uns minutos antes da entrada, fumavam-se os últimos cigarros. A sala encheu totalmente. O presidente de junta, José Lourenço Severino, fez as honras da casa.
José Lourenço Severino: Quem tiver dúvidas deve fazer hoje, por isso estamos aqui. Obrigado a todos.
Helena Silva: Obrigada, senhor presidente. E vamos dar início então à sessão propriamente dita. Antes disso eu gostaria de me apresentar, o meu nome é Helena Silva, eu vou ser a moderadora desta sessão. Passo então a apresentar a mesa.
Na mesa estavam sentadas caras já nossas conhecidas, que apresentámos no último episódio: Vasco Taborda, o representante legal da Australis em Portugal; Rui Machado, supervisor de campo, Paula Gonzalez, da ERM, a consultora ambiental que vai coordenar o Estudo de Impacto Ambiental e o diretor-geral da Australis…
Helena Silva:
Ian Lusted, que nos vai ajudar a conhecer melhor a empresa e o seu trabalho. Vai também esclarecer-nos sobre o trabalho que a empresa pretende realizar em Portugal, a fase em que está este processo, os timmings de trabalho da empresa e, mais importante, a forma como pretende realizar estas prospeções. Muito se tem dito nos últimos tempos sobre este trabalho vamos tentar que esta intervenção seja o mais esclarecedora possível.
A alusão ao “muito que se tem dito nos últimos tempos sobre este trabalho” ia direitinha aos ambientalistas por dizerem – muitos, hoje, ainda dizem – que vai haver fracking em Aljubarrota e na Bajouca e por não acreditarem que esta técnica não seja utilizada. Na sessão desta noite, em cima das cadeiras, havia um panfleto da empresa a explicar o que queria fazer. No verso lia-se:
“A Australis não está a planear estimular estes poços através de fraturação hidráulica. Serão utilizadas técnicas convencionais. A empresa não solicitou nenhum tipo de aprovação para técnicas de fraturação hidráulica ou fracking.”
Mas porque que raio está esta referência nos contratos? Em outubro, quando a Australis fez a primeira reunião só para autarcas, ativistas e comunicação social, em Leiria, no hotel Eurosol, quis esclarecer este assunto. Vasco Taborda, o advogado da empresa, foi quem me elucidou.
Vasco Taborda: Eu tratei dos contratos, na altura, e foi uma imposição do ministro do Ambiente de então. (…)
Pedro Miguel Santos: Quando diz o Ministério, estamos a falar, na altura, do Ministério do Ambiente e da Energia. A Entidade Nacional para o Mercado dos Combustíveis, que foi a entidade que assinou o contrato – Doutor Paulo Carmona. Foi a entidade nacional, ou foi o Ministério? São duas entidades diferentes.
Vasco Taborda: O Ministério, o Ministério.
Pedro Miguel Santos: Esta necessidade – de querer o fracking lá – é uma imposição do Ministério do Ambiente da altura.
Vasco Taborda: Foi o que me foi transmitido na altura, sim.
E foi mesmo uma imposição de Jorge Moreira da Silva, Ministro do Ambiente, Ordenamento do Território e Energia, que, hoje, é diretor-geral de Desenvolvimento e Cooperação da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE). Contactei-o, tentei um encontro pessoal, mas só foi possível falar por email. Escreveu-me:
“Recordo-me (…) de ter exigido que a ENMC incluísse nos contratos que iria assinar uma disposição que obrigasse os projetos que recorressem a fracking a realizar Avaliação de Impacto Ambiental logo na fase de mapeamento e prospeção e não apenas antes da exploração. Isto é, esta norma contratual é mais exigente do que aquilo que a legislação estabelecia e colocou Portugal como o país europeu com os contratos com as regras mais apertadas para a realização de fracking. Felizmente.”
Moreira da Silva não é uma pessoa qualquer no que às políticas de ambiente e às alterações climáticas diz respeito. É formado em Engenharia Eletrotécnica (área de Energia), e um valioso quadro do PSD. Foi presidente da JSD e vice-presidente do partido. Entre 1999 e 2003, foi Deputado ao Parlamento Europeu e, nessa qualidade, foi relator, negociador e autor da Diretiva que estabeleceu o Sistema Europeu de Comércio de Emissões de Gases de Efeito de Estufa, aprovada em 2003.
Entre 2006 e 2009, foi consultor do Presidente da República nas áreas da Ciência, Ambiente e Energia; do Banco Europeu de Investimento (BEI) e da Comissão Europeia na área da biodiversidade e das alterações climáticas.
Em 2011, fundou o think-tank Plataforma para o Crescimento Sustentável – composto por uma maioria de ex-dirigentes e simpatizantes do PSD – tendo sido o Presidente da direção entre 2011 e 2013 e novamente a partir de 2015, até ir para a OCDE. Entre 2009 e 2012, foi Diretor da área de Economia da Energia e das Alterações Climáticas do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), em Nova Iorque.
Este Moreira da Silva – conselheiro e especialista internacional – é o mesmo Moreira da Silva ministro que permitiu que se fizessem as concessões Batalha e Pombal. Mas na questão do fracking, quem operacionalizou as coisas foi o seu Secretário de Estado, como me escreveu – e cito – “confesso que não domino todos os detalhes dado que o tema da geologia estava delegado no Secretário de Estado da Energia, Artur Trindade, talvez valha a pena contactá-lo”. Assim fiz, mas não consegui uma resposta. Trindade foi nomeado secretário de Estado da Energia do Governo de Passos Coelho depois da saída de Henrique Gomes, quando este governante queria cortar as rendas excessivas no setor elétrico pagas à EDP. Hoje Artur Trindade é presidente do Conselho de Administração do OMIP, o operador português do mercado ibérico da eletricidade.
A Direção Geral de Energia e Geologia informou-me de que:
“(…) Por despacho do senhor Secretário de Estado da Energia [Artur Trindade], de 28 de novembro de 2014, foi determinado que deveria ficar claro que a concessionária deveria cumprir com a regulamentação que viesse a ser criada para a produção não convencional, em particular a fraturação hidráulica.”
Ainda assim, a verdade é que o fracking não está proibido em Portugal, nem na Europa, genericamente. Foi banido apenas em França, Alemanha, Bulgária, Irlanda. Esta maneira de extrair petróleo e gás tem graves consequências ambientais por causa da enorme quantidade de água que utiliza, pela contaminação de lençóis freáticos e pelos sismos que pode induzir e provocar.
Voltemos à apresentação da Australis. Era uma sala a abarrotar, mais lugares houvesse, mais se ocupavam. Solenemente frequentada – estava lá todo o executivo da junta, estava lá toda a vereação da Câmara de Alcobaça. Estava também a comunicação social. Estavam os ativistas anti-exploração de gás, os principais críticos, neste encontro.
Durante mais de duas horas Ian Lusted, presidente do Conselho de Administração da Australis, falou. E explicou detalhe a detalhe, técnica a técnica o que ia ser feito. De forma clara e sem vacilar. Dizia uma ou duas frases em inglês e as duas tradutoras revezavam-se a traduzir para português. Quase três horas de explicações.
E o que é que a empresa vai fazer aqui, em Aljubarrota, a umas centenas de metros da casa de Maria Celeste, que conhecemos no episódio um?
Vai ocupar uma área de 7.500 m2 para realizar um furo com uma profundidade total de 3.200m. Depois de chegar tão fundo a sonda sobe e a partir dos 2.130m desvia-se horizontalmente, fazendo um L, e estica-se até aos 700 metros de extensão.
Mas até isto acontecer há muito trabalho anterior. O projeto tem três fases.
- Na primeira, fazem-se os trabalhos de preparação, construção e instalação do estaleiro e das infraestruturas associadas. Nivela-se e compacta-se o terreno, para aguentar o peso da maquinaria, cobre-se o solo com uma manta geotêxtil e pó de pedra, para que a terra não seja contaminada. Ou se usa água da rede ou pode ter se der fazer um furo de água artesiano, para alimentar todo o complexo, embora já haja um no local.
- Na etapa dois o processo é mais complexo, porque começam as sondagens, que duram entre 90 e 120 dias. Nestes meses vai-se tentar chegar às profundidades definidas. Esta fase faz-se passo a passo em etapas de perfuração, entubamento/revestimento e cimentação. Começa-se por furar até uma profundidade de cerca 230 metros, com uma broca de maior diâmetro. Depois é descido um tubo, que é cimentado à volta. Supostamente, isto garante que os aquíferos subterrâneos até essa profundidade não são contaminados. O processo continua, de fora para dentro, como se fosse uma boneca russa, uma matrioska. Volta-se a perfurar, até uma maior profundidade, já dentro da secção mais larga e isolada com uma nova broca de diâmetro mais pequeno. Instala-se nova tubagem, ela volta a ser cimentada, vai-se mais fundo, assim sucessivamente até chegar aos 3.200 metros. Segundo a Australis haverá sete camadas de proteção entre o veio do gás e o subsolo.
- Uma vez feito o furo, começam os testes iniciais. Durante uma semana deixa-se subir o que está nas profundezas. Separa-se à superfície, num sistema fechado de atmosfera controlada, as lamas, óleos e água do gás. E ele sobe torre acima, para ser queimado, numa técnica conhecida como flaring ou queima da tocha, em português, cuja finalidade é manter o poço de gás em segurança, a uma pressão constante e testar a qualidade do gás. Se esses testes iniciais correrem bem começa uma fase de testes de longo prazo, por um período estimado de seis meses. Se não se chegar aqui sela-se o furo com vários tampões de betão, desmonta-se tudo, faz-se a recuperação paisagística e abandona-se o local.
Tudo isto é muito explicado, com todos os detalhes e jargões específicos da área. E se já é difícil entender isto em português, quando até as tradutoras se atrapalhavam a traduzir os termos técnicos, imaginem ouvir isto em inglês.
Que a Australis percebe do assunto, não há dúvidas. Mas o povo de Aljubarrota, tem outras questões:
Claudia Cordeiro: If this is on your doorstep how would you feel?
Tradutora: Se isto estivesse a ser proposto para a porta da sua casa, como está a ser proposto para a porta da nossa casa, como é que iria reagir?
A questão Cláudia Cordeiro, professora, residente em Aljubarrota há 21 anos. Preocupa-se que este projeto venha pôr em causa o seu cantinho, o local tranquilo que escolheu para viver e envelhecer. Preocupa-a o barulho, o aumento do trânsito com a circulação de camiões, os impactos ambientais numa região já pejada de pedreiras, onde a indústria extrativa prolifera. Fez questão de se dirigir a Ian Lusted em inglês, mas a tradutora da sessão teve de passar para português as suas palavras, como ouvimos acima.
E teve também de traduzir a resposta do chefe da Australis, para que toda a gente a entendesse.
Ian Lusted: I have an appreciation of the risks and i understand that if you don’t have my experience base.
Tradutora: Compreendo, por um lado, muito bem quais sãos os riscos. Mas também compreendo que vocês não têm o meu conhecimento e a minha experiência.
Ian Lusted: So, you can have a very different perception of the risks.
Tradutora: A vossa perceção dos riscos é completamente diferente da minha.
Ian lusted falou dos seus mais de 30 anos de experiência na indústria petrolífera e no facto de já ter vivido com a família mesmo ao lado de locais de produção de gás, como quando morou no Brunei, um país na costa norte da ilha de Bornéu, no Sudeste Asiático, antiga colónia britânica, cuja economia depende em grande parte da exploração de petrolífera e onde se localiza uma importante refinaria de gás no Pacífico Ocidental.
E também fez promessas. Falou nos benefícios para a comunidade local. Disse que cada um dos furos deve custar cerca de 10 milhões de dólares americanos – mais ou menos 8,9 milhões de euros – e se acontecesse como noutros locais onde têm furado, uma parte disso seria gasta ali mesmo, em Aljubarrota.
Ian Lusted: One to one and half million euros will be spent within the local community.
Tradutora: Um milhão a um milhão e meio é gasto, despendido, na comunidade local.
Mas nada obriga a Australis a investir 10 milhões de dólares no furo. O que os contratos dizem é que a sondagem de pesquisa a executar tem de ter, pelo menos, “um investimento estimado de dois milhões de euros”. Portanto, o impacto na comunidade por ser muito mais pequeno.
Talvez porque quando a esmola é demais o pobre desconfia, Paulo Araújo, aljubarrotense, quis saber mais sobre os números:
Paulo Araújo:
Até que ponto esta preferência pela economia local e pelas compras e aquisição de serviços a nível local foi pensada e está devidamente negociado ou se é apenas uma coisa que se fala e depois na realidade, havendo empresas locais que façam o serviço será simplesmente uma questão económica e os serviços e os produtos são adquiridos onde for mais barato, normalmente é assim que acontece.
Ian Lusted: The numbers I was quoting was from an analysis of the work that Mohave did when they were last in this area.
Tradutora: Os números que eu referi diziam respeito a um estudo, aos dados recolhidos num estudo que foi realizado aqui na zona.
Os números são vagos, não passam de uma estimativa baseada no anterior trabalho da Mohave e não havia nada decidido, em concreto. Não por acaso, Ian Lusted referiu que Rui Machado, o atual responsável de campo da Australis, que antes trabalhava para a Mohave, conhecia a zona e estava a fazer um levantamento das empresas com as quais poderiam vir a trabalhar, até porque teriam de indicar isso no Estudo de Impacto Ambiental.
Lusted não se ficou por aqui. Anunciou que a Australis está em negociações com o Governo para criar um sistema de royalties que beneficie as autarquias, seja a câmara de Alcobaça, seja a Junta de Aljubarrota. Uma conversa agradável aos ouvidos dos governantes locais eleitos ali presentes.
O presidente do município, Paulo Inácio, do PSD, queria mesmo era a garantia de que se avançar a exploração de gás a Australis muda a sede de Lisboa para Alcobaça.
Paulo Inácio:
Se houvesse descoberta obviamente teria se ser no concelho de Alcobaça e como tal a parte da derrama iria para o município de Alcobaça.
Uma reivindicação antiga, de há vários anos. Quando a Mohave e a Galp queriam furar ao lado do Mosteiro, em 2012, ele já defendia o que defendeu nesta noite. Se isto acontecer, a derrama, um imposto municipal sobre o lucro tributável das empresas que pode ir até 1,5%, vai direitinha para os cofres da autarquia.
Paulo Inácio:
Mas para além dessas questões tem de haver outras contrapartidas para a comunidade, contrapartidas para melhorar a sua qualidade de vida.
Só que esta ideia das contrapartidas e dos royalties sofre do mesmo mal de que padecem todas as promessas…
Paulo Inácio:
Mas não está absolutamente nada definido, nada… falado, relativamente, especificamente, relativamente ao assunto.
Para já, o que se sabe do que a Australis investiu em Portugal, vem dos seus próprios anúncios. Num comunicado enviado às redações, em novembro passado, a empresa dizia que desde 2015 investiu “mais de 500.000 dólares em trabalhos de estudo do subsolo”. Este número redondo – perto de 450 mil euros – diz pouco, porque não se consegue perceber se tudo aquilo que a empresa tem de pagar ao Estado, nas datas a que está obrigada por contrato, tem sido liquidado.
E como podíamos saber? Perguntando à entidade que assinou os contratos, a ENMC – Entidade Nacional para o Mercado de Combustíveis. Acontece que em agosto passado, o Governo trocou o nome à ENMC – agora chama-se ENSE – Entidade Nacional para o Setor Energético; e alterou-lhe as competências: a este novo organismo cabe agora fiscalizar todo o setor energético. Se fiscaliza, não pode promover. E assim, as competências de prospeção, pesquisa e produção de petróleo e gás natural passaram para a Direção-Geral de Energia e Geologia – a DGEG. Nesta passagem de pasta, desapareceu do site da defunta ENMC – agora ENSE – toda a informação sobre pesquisa e exploração de petróleo e gás no país. Neste momento, não há nenhuma entidade pública que disponibilize online, de forma transparente e acessível a qualquer cidadã ou cidadão, informações sobre o tema.
Fizemos à DGEG várias questões sobre o cumprimento dos contratos. Em novembro de 2018 e março de 2019 pedimos para consultar os processos que envolvem as concessões Batalha e Pombal. A resposta, enviada no ano passado – a deste ano ainda não teve retorno – foi a seguinte: “(…) encontram-se no arquivo técnico-científico, de momento não disponível, pois encontra-se a decorrer o processo de transferência (…) da então ENMC, E. P. E. para a DGEG.”
Mas nem tudo ficou por esclarecer. Por exemplo, quando perguntamos: “Quanto foi pago até hoje, ao Estado Português, pela Australis Oil & Gas Portugal, Sociedade Unipessoal Lda, em virtude dos contratos assinados – Pombal e Batalha (discriminado por contrato)?” a DGEG informou que “Em ambos os contratos foram pagas Rendas de Superfície e Taxas previstas na lei, bem como as contrapartidas previstas em contrato”. Ou seja, continuamos sem ter um número. Não sabemos.
Fazendo as contas ao que está previsto nos contratos, até ao final do ano 4 (que termina a 30 de setembro 2019) a Australis tem de ter entregue ao Estado Português: €188.250 em rendas de superfície e 248 mil em contrapartidas. Se a isto juntarmos os 20 mil euros pagos, em 2015, pela celebração de cada contrato chegamos a um total de 476.250 euros. Pelo menos isto terá de entrar nos cofres do Estado Central. Olhando apenas para o que consta nos contratos e excluindo outro tipo de taxas, licenças ou procedimentos https://staging2.shifter.pt/wp-content/uploads/2021/02/e03c1f45-47ae-3e75-8ad9-75c08c1d37ee.jpgistrativos, o Estado chega ao final do ano quatro sem ter recebido, sequer, meio milhão de euros pelos dois contratos.
Mas, em Aljubarrota, fazem-se contas a outros rosários.
No deve e no haver do que fica na comunidade foi Ana Grave, Vogal da Junta de Freguesia fez a conversa descer à terra. Queria saber o que a empresa vai fazer aos detritos resultantes do furo. Por detritos, entenda-se, às águas, lamas, e demais resíduos resultantes de uma operação de pode levar vários meses e trará à terra dezenas de pessoas.
Ana Grave:
Onde, como, por quem para onde é que eles vão? Porque eles são produzidos aqui, mas têm de ir para algum lado. Upsss… espero que não seja para cima de cima de mim, embora vá levar com eles, provavelmente. Era só, muito obrigada.
Ian Lusted garantiu que tudo teria de ser explicado e definido no Estudo de Impacto Ambiental – desde o fim a dar às rochas extraídas até ao que fazer aos esgotos das casas de banho – bem como que empresas iam contratar para tratar desses assuntos. Não disse, por exemplo, que tipo de fluidos vão ajudar as brocas a entrar terra adentro. Só depois de feito o Estudo de Impacto ambiental se saberá se estes fluidos serão à base de água ou de óleo e que tipo de químicos os vão constituir. Mas o certo é que vão originar muitas lamas – como aquelas invadiram os pomares do Henrique e da Maria, no Mogo, de que falámos no episódio 1 – e por isso tem de ser construída uma lagoa impermeável para depositar todos esses líquidos.
Parte III – Água
Naquela noite fria e húmida de janeiro, em Aljubarrota, falou-se pouco de água. Talvez porque ainda era inverno. Talvez porque ainda não estivesse claro que no primeiro mês do ano a quase totalidade do território continental já estava numa situação de seca moderada ou fraca. Segundo o Instituto Português do Mar e da Atmosfera (IPMA), “o valor médio da quantidade de precipitação, correspondeu a cerca de 50% do valor normal, sendo o sexto janeiro mais seco desde 2000”. No final de fevereiro, piorou, “verificou-se um aumento da área em seca em relação ao final de janeiro, com todo o território em seca meteorológica”. No final de março, a situação agravou-se ainda mais: 16.8 % do continente estava em situação de seca fraca, 45.1 % em seca moderada, 37.6 % em seca severa e 0.5 % em seca extrema, mediu o IPMA.
E, em períodos de seca, olha-se para o uso da água de outra forma. O consumo de água estimado para o furo de prospeção de Aljubarrota é de até 6 000 m3 para todas as fases do projeto. Seis mil metros cúbicos são seis milhões de litros de água. Se tivermos em conta que o consumo médio diário de água por habitante, em 2016, é de 187 litros, chegamos à conclusão que se gastará no furo da Australis a água que cerca de 32 mil pessoas utilizam num dia. Mais de metade da população do concelho de Alcobaça.
Maria do Carmo Martins
Quando ouvimos falar deste tipo de investimento e do impacto, é assim, eu acho que há um impacto tremendo que isso pode ter, a nível ambiental, sem dúvida nenhuma, e a nível da agricultura da região.
Esta é Maria do Carmo Martins, a secretária-Geral do Centro Operativo e Tecnológico Hortofrutícola Nacional – COTHN. Esta associação privada, sem fins lucrativos, faz a ligação entre as universidades e politécnicos, os seus centros de investigação e as associações de produtores hortofrutícolas – a ideia é que o conhecimento científico chegue a quem precisa dele para melhor produzir. A sede fica mesmo à entrada de Alcobaça, perto do Museu do Vinho, a sete minutos de carro do local do furo de Aljubarrota. Fui bater-lhe à porta em outubro. Já tinha ouvido falar no assunto, mas até aquela data ninguém tinha contactado diretamente a associação. Como quase toda a gente, estava preocupada. Sobretudo por causa da água, ou melhor, da falta dela.
Maria do Carmo Martins: Há furos que secaram pura e simplesmente, e para encontrar água, já não se consegue água às mesmas profundidades que se conseguiam aqui há cinco ou há dez anos atrás.
Pedro Miguel Santos: E isso é feedback…
Maria do Carmo Martins: É feedback dos produtores.
O excesso de furos de água feitos na região, seja para uso agrícola, doméstico ou industrial tem provocado problemas de disponibilidade para a própria agricultura, porque o nível de água subterrânea desceu muito. Ao mesmo tempo, porque se cultiva em terrenos muito perto da costa, se os níveis de água descem no subsolo, a infiltração de água salgada pode tornar-se um problema.
Maria do Carmo Martins: Portanto, além de termos um problema de quantidade, nesta altura, temos também um problema de qualidade da própria água. Que nesta altura já começa a ter um nível de sais elevados que pode, nalgumas questões, ser limitante para a utilização na parte agrícola.
Pedro Miguel Santos: Portanto a utilização de água para furar e para fazer aquela exploração pode ser conflitante com…
Maria do Carmo Martins: Completamente, sem dúvida nenhuma, sem dúvida nenhuma que pode. Eu acho que é mais um problema que estas regiões vão ter e realmente a água, nesta altura, não se pode pensar… Nenhum agricultor, nenhum produtor, nenhum empresário que se queira dedicar à parte agrícola pode sequer… Já não se pode pensar no sequeiro, isso é impossível. Tem de se ter rega.
Para produzir, é preciso água. E no Oeste, produzem-se duas estrelas das exportações nacionais.
Maria do Carmo Martins:
Esta região é uma região em que o setor agrícola tem um peso importante, nós estamos no coração da produção da Maçã de Alcobaça e não só, temos aqui também a pêra, a pêra rocha também é produzida aqui em termos de fruticultura.
João Vinagre, o nosso guia de serviço, não tem muita fé nos grandes agricultores. Mas pensa que só eles têm força para travar a exploração de gás na zona oeste.
João Vinagre: São os únicos que têm força suficiente para a pressão política.
Pedro Miguel Santos: Os produtores de pêra, de fruta.
João Vinagre: Claro, são os únicos que têm força suficiente para pressionar o suficiente uma Câmara para tomar uma decisão de “sim” ou “não”. Que é o que os agricultores tentam fazer no Canadá e na Inglaterra, não é?
Sabe que é difícil isto acontecer em Portugal. Muito difícil, na verdade. Há anos que trabalha na apanha da fruta, conhece o pensar dos grandes latifundiários e produtores. Sabe que eles sabem que não haveria pêra rocha ou maçã de Alcobaça nos supermercados ingleses sem petróleo.
João Vinagre:
Sem petróleo não vai haver trabalho, não consegues fazer agricultura, não é. E estares a dizer às pessoas que temos de acabar com o petróleo, numa sociedade que é completamente dependente do petróleo. 80% do mundo funciona a energia fósseis. E vais a uma aldeia e ainda é pior, porque sem tratores não tens agricultura, não é? Não é fácil, mesmo num debate com uma petrolífera, estares a dizer àquela pessoa que eles estão a enganá-lo. Porque há pessoas que ganharam muito dinheiro com o avanço tecnológico e com o petróleo.
E também sabe que sem gente nas ruas, nada muda.
João Vinagre
O que não existe em Portugal, também, que nunca existiu – existiu, a nível político, e depois foi completamente reprimido e apagado da história – é movimentos que se mexam nas ruas. Por exemplo, na Europa, as coisas não têm parado… só têm parado nos Congressos e nas Assembleias depois da população ocupar espaço, depois da população ocupar ruas.
Talvez o João Vinagre tenha de ir à Bajouca e às aldeias à volta da área onde a Australis quer furar. Aqui, a população quer saber mais, procura conhecimento e pretende ocupar as ruas…
Parte IV – Vale da Pedra
16 de dezembro de 2018. Estou no Vale da Pedra, uma aldeia que pertence à união de freguesias de Souto da Carpalhosa e Ortigosa, que faz fronteira com a Bajouca. Passam alguns minutos da 09h00 da manhã.
Pedro Miguel Santos: Olá Catarina.
Catarina Gomes: Olá Pedro, então?
Cristina Bailão: Olá.
Pedro Miguel Santos: Estás boa?Catarina Gomes: Já estás pronto? É a Cristina.
Cristina Bailão: Olá.
Pedro Miguel Santos: Tudo bem Cristina?
Cristina Bailão: Prazer.
Pedro Miguel Santos: Pedro Santos, do Fumaça, sou jornalista.
Cristina Bailão: Fumaça?
Pedro Miguel Santos: Sim.
Cristina Bailão: Que giro.
Pedro Miguel Santos: E a Cristina é de onde?
Catarina Gomes: É aqui.
Cristina Bailão: Eu sou daqui, sou da Bouça de Cá, onde vão fazer o furo.
Pedro Miguel Santos: Ahhh boa.
Cristina Bailão: Estou a 300 metros.
(…)
Catarina Gomes: Mas andaram, eles andaram a fazer um trabalho incrível, andaram por estas aldeias todas a distribuir porta a porta. Este é o Marco, que é um dos dinamizadores do evento.
Pedro Miguel Santos: Olá Marco, tudo bem?
Marco Domingues: Tudo bem?
Pedro Miguel Santos: A que horas é que vão começar, fazes ideia?
Marco Domingues: 10h00, 10h30.
Estamos no Salão Paroquial, mesmo no centro da aldeia. Do outro lado fica a capela do Senhor Jesus dos Aflitos. Ampliada e restaurada em 1992, mas que D. Serafim de Sousa Ferreira e Silva, à época Bispo de Leiria-Fátima, só benzeu e inaugurou em 1997. Parece mais uma igreja que uma capela e, lá dentro, celebra-se a missa dominical. Entro. A capela estava cheia, as pessoas comungaram e, no final, o padre tinha uma aviso importante para fazer.
Padre:
Sabemos que se está a preparar para fazer exploração de gás aqui na Bajouca ali no salão está um grupo a receber assinaturas contra esta exploração. Claro nós não estamos informados sobre isso, por isso, façam favor, quem quiser, naturalmente, de passar, perguntar, questionar-se. Havendo, ouvi dizer, que acho que há essa possibilidade, de contaminação das águas, claro que vai afetar a nossa região também, por isso mesmo estará alguém certamente para, com entusiasmo, dar as suas ideias.
(…)
O senhor esteja convosco. Ele está no meio de nós. Abençoe-vos Deus todo Poderoso, Pai, Filho e Espírito Santo. Ámen. Bom domingo a todos e que a paz do Senhor vos acompanhe. Graças a Deus.
E as gentes lá foram, em direção ao salão paroquial para assinar uma petição contra o furo e passar a manhã a discutir sobre o que se iria passar ali a menos de 3 quilómetros. Dentro do pavilhão havia duas faixas, com as frases “Contaminação da água não” e “Nem fracking, nem convencional. Renováveis sim”. Emília Ramalhais Domingues, moradora local, foi lá para dar o seu apoio à causa.
Emília Domingues: Vejo que as pessoas estão preocupadas com as águas e com o ambiente e com os barulhos, talvez, não sei. Eu não ‘tou a ser muito bem informada, por isso é que não posso explicar muita coisa.
Pedro Miguel Santos: Pois, pois, mas veio aqui procurar essa informação.
Emília Domingues: Sim, sim, sim em princípio dar a assinatura que não estou de acordo. ‘Tou a ver que isto não é coisa boa, mas o que é realmente não sei.
Pedro Miguel Santos: E vai haver agora uma sessão de esclarecimento, vai ficar cá para ver?
Emília Domingues: Olhe não, porque o meu marido fez ontem anos e tenho lá a casa cheia. Os meus netos vieram ontem da Alemanha, de propósito e aquela coisa toda. De maneira que não posso aqui estar, mas gostava de estar.
Pedro Miguel Santos: Tem que ir tratar da família.
Emília Domingues: Tenho, mas se calhar ainda por aqui passo.
Que eu tivesse visto não passou. Mas é bem possível que tenha ido a uma das várias reuniões que as gentes da e à volta da Bajouca têm organizando. Desde o encontro que a Australis organizou em Leiria, no hotel Eurosol, só para presidentes de câmara e junta e ambientalistas, no final de outubro – que os sinos tocaram a rebate. Soube-se que haveria aqui um furo e o povo foi espalhando a palavra, começou a procurar informações, a falar com ativistas e a organizar sessões de esclarecimento.
A primeira aconteceu logo um mês depois, a 30 de novembro, na Associação Bajouquense para o Desenvolvimento – ABAD. A ABAD é a organização defensora da natureza da freguesia, gere um espaço chamado Parque Natural do Pisão, onde há um parque de lazer, um moinho movido pelas águas de um ribeiro, as ruínas de um forno de cal. O orgulho dos Bajouquenses.
Além disso, as instalações da associação são num grande terreno, com pinhal e onde a ABAD construiu um enorme pavilhão polivalente que é a sala de visitas da freguesia. No dia 30 de novembro, pelas 21h00 a sala encheu-se com centenas de pessoas para ouvir os ativistas anti-exploração de petróleo.
Jairo Dias:
Vendo que ninguém sabia de nada, achei que deveria tomar uma iniciativa e dar a conhecer à população o mais rápido possível, que isto é um assunto de extrema gravidade e não poderia ficar parado, sem fazer nada. Rapidamente isto tomou proporções gigantescas.
Este é Jairo Dias, que dinamizou o encontro e se tornou uma das caras da resistência local ao furo. É da freguesia vizinha, mas vai mudar-se para a Bajouca. Tem sido das pessoas mais ativas na dinamização destas sessões públicas aqui na zona. Tem 33 anos, é engenheiro. Com ele na sessão estiveram os suspeitos dos costume: Catarina Gomes, do Movimento do Centro contra a Exploração do Gás e da Campanha Linha Vermelha, da Academia Cidadã; Luís Fazendeiro, da Plataforma Algarve Livre de Petróleo, do Algarve veio também Laurinda Seabra da ASMAA e ainda Nicole Oliveira, da 350.org – que já aqui entrevistámos no Fumaça –; esteve ainda Ricardo Vicente, do Peniche Livre de Petróleo. Falaram dos perigos da exploração, de fracking, das consequências ambientais provocadas pela indústria dos combustíveis fósseis, mundo fora, de alterações climáticas.
Mas essa sessão não foi suficiente. No Vale da Pedra, aldeia ali ao lado, mesmo sendo noutra freguesia, o furo da Bajouca também não deixava ninguém dormir. Por isso era preciso juntar toda a gente. E Marco Domingues, que cumprimentei mal cheguei ao salão paroquial, resolveu fazer alguma coisa e auto-organizar uma reunião. Pediu ajuda a Cristina Bailão e a Jairo Dias e juntou mais amigos. Fez uns panfletos a anunciar o evento e pôs mão à obra, que era preciso avisar a malta.
Marco Domingues: Não fui só eu. Fomos uma equipa. Eu fiz o Vale da Pedra, de Baixo; fiz Jã da Rua mais um grupo, também; andei nas Relvinhas e na Camarneira, depois houve outros grupos que fizeram.
Pedro Miguel Santos: Mas quantos panfletos distribuíram, tens noção?
Marco Domingues: Aproximadamente… porque depois também demos uns para umas terras à volta, 400.
Pedro Miguel Santos: Foram a quase todas as casas do lugar?
Marco Domingues: Todas as casas. Nós não olhamos para uma casa e dissemos ‘ah, esta não’. Mesmo em casas sem caixa de correio, entregamos por debaixo de um portão, por debaixo de uma porta, no para-brisas de um carro, quando não estava a chover. Tentar informar ao máximo.
E as pessoas vieram. Talvez umas 150 almas para ouvir, perguntar, discutir.
Catarina Gomes:
Bom dia a todos. Eu sou a Catarina, sou do Movimento do Centro contra a Exploração do Gás. Sou da Marinha Grande e vivo em Alcobaça. E estou aqui hoje a convite do Marco, da Cristina e do Jairo, da Bajouca, que também há-de vir cá – para falar-vos um pouco do que vai acontecer aqui na Bajouca e o que também está a acontecer em Aljubarrota, que é em Alcobaça, tudo na mesma região…
Foi uma manhã, no mínimo, animada. Catarina Gomes falou das intenções da Australis e das razões que levam os ambientalistas a ser contra o projeto: a eventual contaminação das águas, a emissão de gases de efeito de estufa, as alterações climáticas, as poucas vantagens económicas para a terra e para o país.
O povo, tinha muitas perguntas, dúvidas, receios. Falou-se de tudo e mais alguma coisa: acidentes, doenças, no fim das abelhas, nos desastres nucleares de Chernobyl e Fukushima, nas descargas das fábricas de celulose no rio Tejo, no custo das energias renováveis ou no risco de poluição do ar e das águas das ribeiras da região. Falou-se da necessidade de ouvir a outra parte, a empresa. Que explicações teria a Australis a dar?
E também se questionou a falta de posicionamento da junta local, a União das freguesias do Souto da Carpalhosa e Ortigosa, que ainda não tinha dito publicamente se era contra ou a favor dos furos. De tal forma que a presidente – Eulália Crespo, eleita pelo PSD – que assistia na plateia e até tinha emprestado o projetor para se fazer a apresentação e deixado fotocopiar os panfletos que se andaram a distribuir – saiu a meio, sentida com as críticas. Nada que tivesse deixado preocupado Marco Domingues. Estava seguro das suas razões.
Marco Domingues:
A nossa mensagem foi bem passada, o povo está alerta e vamos lutar contra isto.
É seguro dizer que a maioria das pessoas na sala estava, no mínimo, muito desconfiada e não houve ninguém a defender em voz alta a exploração de gás. Mas várias vozes sugeriram que era preciso ouvir os argumentos da petrolífera.
Marco Domingues:
Em termos da Australis, eu duvido muito que a Australis alguma vez apareça aqui alguém para esclarecer alguém, porque eles já têm os contratos na mão. Ponto final, não vêm aqui para convencer ninguém. (Popular) E se aparecer a gente corre-os daqui. [Risos]
Mas Marco estava enganado…
Parte VI – Bajouca
Helena Silva:
Senhoras e senhores, boa noite. Eu pedia que, entretanto, fossem ocupando os vossos lugares. Dentro de 2 ou 3 minutos gostaríamos de dar início a esta sessão.
A Australis foi mesmo à Bajouca. Terça-feira, 29 de janeiro, um dia depois da sessão de esclarecimento em Aljubarrota, a petrolífera australiana levou a sua equipa e tinha a população em peso no salão da ABAD. Marcada para as 21h00 a sala encheu-se num repente. Certamente mais de 500 pessoas passaram por ali durante as mais de quatro horas que durou o encontro. Não havia cadeiras para sentar tanto povo.
Helena Silva:
Aquilo que eu peço é que as pessoas que queiram colocar as suas perguntas se dirijam ao microfone uma vez que somos muitos, a sala está cheia eu vou pedir que tenham alguma contenção em termos de tempo. (…) Depois o Ian e os restantes elementos da mesa estarão disponíveis para responder às vossas questões.
A petrolífera australiana foi ali dizer exatamente o mesmo que tinha dito no dia anterior perante o povo de Aljubarrota. O discurso estava mais oleado, as tradutoras enganaram-se menos e só os detalhes relativos à localização mudaram: aqui a profundidade do furo seria maior, chegará aos 4.350 metros.
Mas nesta noite houve uma coisa bem diferente: o povo. A massa de que se fazem as e os Bajouquenses parece ser outra. E se alguma vez houve uma padeira em Aljubarrota a expulsar invasores, poderia bem dizer-se que ela se tinha mudado para a Bajouca, onde a população recebeu a equipa da Australis de forma bastante dura.
Sobretudo quando a petrolífera falou em contrapartidas e benefícios económicos, nos tais 1 milhão a 1.5 milhão de euros que poderão ficar nas comunidades.
Arsénio Capela:
Todo o dinheiro que está investido nesse poço, está a comprar uma guerra com este Povo todo. Uma guerra que você vai pagar para sair. Eu só quero que seja franco, no risco, porque não é com esse dinheiro que nos está a oferecer, que a gente se vai vender. E tenha consciência que na próxima sessão não vai ser tão calma, possivelmente, vai ter mais oposição. Eu da minha parte vejo que vocês vêm aqui para tentar-nos comprar.
Uma das intervenções mais assertivas e duras da noite partiu de Arsénio Capela, bajouquense, na casa dos 30 anos. Quis que empresa percebesse que não era bem-vinda à Bajouca. E deixou-o bem claro.
Arsénio Capela:
Eu quero saber qual é o meu risco. Se o meu risco for algum eu considero que está-me a tentar eliminar a minha família. A gente vai tomar as medidas que forem necessárias para nos defendermos, tenha isso em consideração. Obrigado, boa noite.
Não só se dirigiu assim a Ian Lusted, presidente da Australis, durante a apresentação, como no final foi diretamente falar com ele, repetindo-lhe cara-a-cara tudo o que já tinha dito perante os seus conterrâneos. Falei com ele depois disso.
Pedro Miguel Santos: Tu disseste palavras muito fortes, quase em tom de ameaça, dizendo que…
Arsénio Capela: Não foi em tom de ameaça, foi uma constatação. Porque ele vem para o nosso lugar, ele tem que se pôr no nosso lugar. É a nossa terra. Nós vamos defender o nosso bem-estar, dos nossos filhos, das próximas gerações independentemente de nós termos de fazer frente… Não estou a dizer que seja violento mas vamos sempre marcar esta posição, que somos contra. E ele tem de sentir isso, porque se ele não sentir isso basicamente nós não estamos a ser transparentes. E queremos dizer-lhe que ele é bem recebido para comer à nossa mesa, mas não para furar na nossa terra.
A sessão tinha começado calma. As pessoas foram para ouvir, mas à medida que o tempo foi passando a população ficou mais hostil. Gritos, apupos, uhhhhhss. E já nada do que alguém da Australis dissesse era realmente ouvido. Se Arsénio marcou a sua posição. José Luís, que mora a um quilómetro do local do furo, gritou-a.
José Luís:
Vocês não fazem dos outros burros, está a perceber?! Explicações, explicar aí a grossura de tudo… Isso pode rebentar tudo. Isso pode rebentar tudo. (…) E a minha casa fica a um quilómetro, rebenta casa, rebenta tudo. E dos meus vizinhos também. [gritos] Mas a Australis não rebenta, a Australis não rebenta. Porque eles levam o dinheiro para lá e não rebentam, vêm para cá buscar o dinheiro. Não, ao pé da minha casa nunca vai haver um furo. Eles são bem-vindos cá para passarem férias e gastarem cá o dinheiro agora furarem cá não furam. Vão furar para a terra deles. E se não forem capazes a gente vai lá furar, a gente também lá vai furar.
Até para o Alentejo José Luís mandou a Australis, dizendo que havia lá muito espaço. Ironizou, riu-se, foi mordaz. Mostrou-se admirado por Marcelo Rebelo de Sousa não estar ali, já que ia a todo lado. E foi ignorando os pedidos da moderadora para terminar.
José Luís:
Porque a primeira pedra que ele lá esteja ou a primeira máquina, a máquina é destruída pelo povo. É destruída pelo povo. (…) Eu tenho direito a viver uma vida saudável, eu tenho o direito a dormir descansado de noite. Eu não posso estar de noite com medo que haja uma explosão de gás a um quilómetro da minha casa. Eu não posso dormir com medo.
Medo foi a palavra da noite. Do barulho que as máquinas vão fazer. Das águas que podem ser contaminadas. De um eventual rebentamento. A tudo isto a Australis respondeu com a experiências na área, relembrou que desde que a empresa existe, 2015, nunca tinha tido nenhum problema ou acidente, detalhou tim-tim por tim-tim os mecanismos de segurança dos poços, as várias camadas de revestimento, as válvulas de segurança. Lembrou que há um estudo de impacte ambiental a ser feito e que se este furo de prospeção for avante e se encontrar gás passível de ser explorado comercialmente tem de ser fazer um novo plano de trabalhos e um novo Estudo de Impacto ambiental. E que as autoridades nacionais têm de aprovar e fiscalizar tudo isto. Mas as palavras de Ian Lusted soavam sempre a conversa fiada. O povo queria garantias.
Márcio: Se não acontece nada de mal porque é que vocês fazem Estudos de Impacto Ambiental? Se corre tudo bem, não tem que haver problema. Agora, eu quero saber é, se a água ficar poluída, contaminada, o que é que nós fazemos?
Ian Lusted: If the water is contaminated…
Tradutora: Se a água for contaminada…
Ian Lusted: But for sake of clarity i genuinely don’t know how that could happen.
Tradutora: Mas, para deixar bem claro, não vejo como é que isso poderia acontecer.
Márcio é um jovem da Bajouca. Não desarmou até ouviu o diretor da Australis fazer uma promessa que um dia antes, em Aljubarrota, não tinha feito.
Ian Lusted: If the water is contaminated, we will supply water. It will not be contaminated.
Tradutora: Se a água fosse contaminada nós providenciaríamos água, mas a água não vai ser contaminada.
Mas nem assim as pessoas ficaram descansadas.
Ruben Mortágua:
Caso algo corra mal que garantias temos em como não encerram a empresa Australis e nos abandonam à mercê da catástrofe iminente e descartam responsabilidades?
Ruben Mortágua, espeleólogo e membro do GPS – o Grupo de Proteção de Sicó, nome da serra que liga Condeixa-a-Nova a Pombal, foi até ao salão da ABAD apoiar os Bajouquenses. Ele e outros membros desta associação ambientalista, com sede em Pombal, têm aparecido sempre que há sessões deste género. Como muitos dos presentes naquela noite, parece acreditar pouco na palavra da empresa e ainda menos na dos políticos eleitos.
Ruben Mortágua:
O governo não vai fazer nada para nos ajudar. Nós não confiamos no governo.
Talvez esta ideia sintetize bem o espírito da maioria dos populares presentes: desconfiança.
Se a equipa da Australis tivesse percebido isso antes e soubesse que ia encontrar uma plateia totalmente diferente daquela que no dia anterior encontrou em Alcobaça, teria sido mais cautelosa. Mas não foi.
E a noite acabou assim.
Pedro Miguel Santos: O Zé Pedro Luís, da Cunha Vaz e associados veio agora ter connosco, eu estava a conversar com o presidente da junta e veio dizer que furaram dois pneus do carro dele, aqui na sede da ABAD. E, portanto, neste momento foi lá o presidente da junta, para verificar, mais as pessoas que estavam aqui.
Pedro Pedrosa: Está aqui uma chapazinha, no chão…
José Pedro Luís: Eu devia ter visto, fui ingénuo.
Pedro Miguel Santos: José Luís, queres dizer-me o que é que aconteceu? Não vais prestar declarações? [Ri-se] Não, diz-me só o que é que aconteceu?
José Pedro Luís: Não, não vou, estás a gravar não vou falar.
José Pedro Luís: Ok.
(…)
Pedro Miguel Santos: O que aconteceu foi que fizeram uma chapa horizontal com um pequeno triângulo que furou os pneus do carro. Eu tentei que o José Luís me comentasse o que tinha acontecido, o José Luís Pedro, que é assessor da Cunha Vaz, e que esteve aqui a noite toda e que esteve na sessão de ontem e ele, bom, não quis comentar.
Perguntei ao presidente da Junta da Bajouca.
Pedro Miguel Santos: Que é que se passou?
Pedro Pedrosa: Epá, isto é… Furaram os pneus dos carros deles. Isto é de… isto é, isto é porco, isto não é trabalho, isto não é trabalho.
Pedro Miguel Santos: Mas estava a falar com a GNR, vem aí a polícia?Pedro Pedrosa: Nã… vem agora a polícia.
Pedro Miguel Santos: Como é que os homens vão para casa?
Pedro Pedrosa: Não, isto é… Isto é… Isto não é… Isto não é… Isto é selvajaria.
Mulher: Que é que, fizeram-te o quê?
Pedro Pedrosa: Olha ali, anda cá ver. Estás a ver aqui? Um serralheirozinho fez aqui uma chapazinha para furar um pneu.
Mulher: Eiiiii
Pedro Miguel Santos: E furou.
Pedro Pedrosa: E furou dois, os dois carros.
Pedro Miguel Santos: Ah de dois carros?
Pedro Pedrosa: Dois carros.
(…)
Pedro Pedrosa: Isto não é, isto…
Populares: Todos temos direito a fazer a nossa luta, mas… Epá, mas de forma limpa. Não é preciso estar a fazer. Isto só prejudica, só prejudica a situação.
Pedro Pedrosa: Ainda bem que estava cá um jornalista ainda…
Pedro Miguel Santos: Aqueles carros que ali estão são os deles, que estão parados?
Pedro Pedrosa: São, lá ao fundo.
Pedro Miguel Santos: Então e foi o carro de quem?
Pedro Pedrosa: Eles vinham em dois carros, foi os dois carros…
(Nota: o que vais ouvir, ler ou ver foi produzido pela equipa do Fumaça, um projecto de jornalismo independente, e foi originalmente publicado em fumaca.pt.)
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