(Nota: o que vais ouvir, ler ou ver foi produzido pela equipa do Fumaça, um projecto de jornalismo independente, e foi originalmente publicado em fumaca.pt.)
Até ao fim do ano, uma petrolífera planeia furar em Aljubarrota e na Bajouca, em busca de gás natural. Em Dá-lhe Dás, série de quatro episódios, contamos as histórias por contar, os bastidores, a oposição das populações e as promessas da empresa. Meses de investigação não deixam dúvidas: as decisões nacionais e europeias estão a salvar a indústria do gás.
Episódio 2: o mini-mercado do Soares – em outubro de 2018, a Australis Oil & Gas anuncia mais um furo, desta vez na Bajouca, no concelho de Leiria. Os Estudos de Impacte Ambiental avançam. Mas na freguesia ninguém sabia de tais planos. Ou será que sabia? Afinal, quem é esta empresa, o que quer fazer em Portugal e como tem sido recebida por populações, ambientalistas e autarcas?
Este episódio foi produzido para ser ouvido. Mas pode ser lido em simultâneo. O que se segue abaixo é a transcrição integral de toda a peça áudio, acompanhada de fotos e mapas.
Parte 1 – Mohave = Australis
No último episódio, falámos da Mohave, uma empresa americana que durante mais de 20 anos furou e analisou o subsolo da zona Centro-Oeste do país à procura de petróleo e gás. Se ainda não ouviste O Jardim da Celeste, o primeiro episódio desta série, para aqui e vai ouvir. Será mais fácil entender o que hoje vamos contar.
Os vários furos que a Mohave fez na região de Alcobaça e Torres Vedras e as campanhas geosísmicas por este território acabaram quando essa empresa texana encerrou a sua representação permanente em Portugal, a 27 de maio de 2014.
Ainda se lembram do Henrique e da Maria? São aquele casal do Mogo, uma pequena localidade em Aljubarrota, concelho de Alcobaça, que esteve umas semanas sem dormir por causa do furo de prospeção que a Mohave lhes fez à porta de casa, em 2011.
Henrique: Precisavam de água e eu também precisava. Secaram-me aqui e nunca mais…
Pedro Miguel Santos: Mas fez alguma queixa formal, escreveu para algum lado, tem um papel, alguma coisa?
Henrique: Não sabia para onde é que havia de escrever. Eu escrevi sim, para a empresa que fazia isto e veio o engenheiro da empresa avaliar o meu furo.
Pedro: Que era a Mohav.
Maria: Sim, porque nós ficámos sem água no furo.
Henrique: Que era a Mohav, sim. Eu escrevi, eu mandei um email para a Mohav, a reclamar em como o furo tinha secado por causa deles. E eles disseram que não era. Que era mentira.
Pedro: Deixe-me lá ver se o nome do engenheiro era este…
Maria: Aiii agora… Lembras-te do nome do engenheiro?
Henrique: Acho que lembro.
Pedro: Rui Machado?
Henrique: Era o Rui Machado. Era esse mesmo, era esse mesmo.
Rui Machado, ou melhor Rui José Barbosa De Sousa Machado, de quem Henrique e Maria não se esqueceram, era um dos responsáveis da Mohave por fazer as coisas acontecer no terreno. A sua relação com a petrolífera foi profunda ao ponto de, entre outubro de 2013 e março de 2014, ter sido um dos representantes da companhia em Portugal, pouco tempo antes da sua extinção.
Henrique:
No fim de estar o furo feito – disseram eles, disse esse senhor Rui, falou – ‘isto é uma unidadezinha pequena que não vai causar barulhos nenhuns, nem vai causar nada.’
A unidadezinha – a maquinaria para extrair o gás – nunca chegou a ser montada. A Mohave faliu em maio de 2014 e com o fim da empresa caducaram todos os sete contratos de concessão que detinha na região Centro-Oeste do país.
Mas o conhecimento dos seus trabalhadores em Portugal não foi desaproveitado.
O mesmo Rui Machado que ia instalar a unidadezinha da Mohave perto da casa de Henrique e Maria há quase dez anos tem, hoje, em 2019, a missão de coordenar os trabalhos da Australis Oil & Gas Portugal perto da casa de Celeste, de que falámos no último episódio. Nesta grande empreitada Rui Machado será o “responsável de campo” da empresa, há-de ser ele a pôr os furos a mexer.
Lembram-se da Celeste? É lá, mesmo ao lado da sua casa, na rua dos Prazeres, em Aljubarrota, que a empresa petrolífera quer realizar, ainda este ano, um furo de prospeção de gás natural, com mais de três quilómetros de profundidade, ao abrigo dos contratos que a quatro dias das eleições legislativas de outubro de 2015, o governo de Pedro Passos Coelho assinou. Foram vendidos 2.510 km2 de direitos de exploração do subsolo nacional, divididos em dois blocos vizinhos: a concessão Batalha e a concessão Pombal, que abrangem 18 concelhos, de Santarém a Cantanhede, e vigoram por oito anos.
A 28 de setembro de 2015, uma importante conferência aconteceu no número 45A da Avenida de Berna, em Lisboa, sede da Fundação Calouste Gulbenkian. Chamou-se-lhe “Exploração de Petróleo em Portugal” e tinha sido organizada pela extinta Entidade Nacional para o Mercado dos Combustíveis hoje ENSE – Entidade Nacional para o Setor Energético. Nada mais apropriado, naquele lugar. A Fundação foi criada com a fortuna de Calouste Sarkis Gulbenkian um engenheiro e homem de negócios nascido no império otomano que enriqueceu com os negócios do ouro negro. Criou a Turkish Petroleum Company, a companhia que estabeleceria a indústria petrolífera no Médio Oriente e daria origem, mais tarde, a multinacionais como a BP, a Shell, a Total ou a Exxon Mobil.
Hoje, a Fundação Gulbenkian detém 100% do capital da Partex Oil & Gas, empresa criada pelo magnata arménio, que é gerida pelo professor universitário e empresário António Costa e Silva.
Uma pequena nota. A bem da transparência saibam que fui um dos dez vencedores da primeira edição das Bolsas de Investigação Jornalística, instituídas pela Fundação Calouste Gulbenkian, no ano passado. O contrato, que pode ser lido no site do Fumaça, foi assinado em dezembro de 2018 e o valor de bolsa, de 17 mil euros, transferido também nessa data.
De volta à história.
Foi um dia entre pares. Anunciou-se o lançamento de novos concursos de pesquisa de petróleo no Porto e no Algarve. Nesse dia o consórcio ENI/Galp disse ao país que ia furar ao largo de Aljezur. E a Australis – que dois dias depois, a 30 de setembro, assinaria as concessões Batalha e Pombal – fez uma apresentação da companhia, das suas intenções e da sua equipa com o título “The next phase of Exploration in the Lusitanian Basin” – em português, “A próxima fase da exploração da Bacia Lusitânica”. Além da Batalha e Pombal, a Australis ainda tentou ficar com uma terceira área de concessão, chamada Cadaval, mas o negócio acabaria por nunca avançar. O empresário Sousa Cintra também disputava a área e, nesses casos, perante a lei, o pedido não é automático e que haver um leilão, para se decidir quem fica com a concessão. Como a eleições legislativas aconteceram logo, logo a seguir a esta importante apresentação, a 5 de outubro de 2015, o leilão nunca aconteceu.
Quem veio dar a cara pela Australis Oil and Gas foi Ian Lusted, o diretor executivo da Australis. Na conferência, apresentou as intenções da empresa e sua equipa. O cargo de “Portugal Project Manager” seria de Patrick Monteleone, o presidente da extinta Mohave que, um ano antes anunciara a sua saída do país.
Mas Monteleone e Rui Machado não foram os únicos a sair da Mohave para a Australis. Por exemplo, Vasco Sande Taborda, que conhecemos no último episódio, foi o representante legal e advogado da Mohave e faz o mesmo na Australis. Tem 20 anos de experiência como consultor jurídico no setor do petróleo e gás natural em Portugal, deu apoio aos processos de licenciamento, desenvolvimento e conclusão de projetos de prospecção e exploração. Negociou e assinou os contratos de concessão Batalha e Pombal entre as Australis e o Estado português. Mais recentemente, foi também ele – como soubemos e descobrimos no último episódio – a tratar dos contratos de compra e venda dos terrenos em Aljubarrota.
Resumindo: apesar de extinta, a Mohave parece nunca ter realmente saído do país.
Não só a Australis ficou, mais ou menos, com as mesmas áreas de concessão que, antes, a Mohave detinha, como comprou o conhecimento adquirido ao longo de anos e contratou as suas principais figuras em Portugal: Monteleone, o ex-presidente que, entretanto, faleceu; Vasco Sande Taborda, advogado; e Rui Machado, responsável operacional.
Hoje vamos perceber que empresa é a Australis Oil & Gas, o que quer fazer em Portugal e como tem sido recebida por populações, ambientalistas e autarcas.
“O mini-mercado do Soares” é o segundo episódio da série Dá-lhe Gás. Seja toda a gente bem-vinda ao Fumaça, eu sou Pedro Miguel Santos.
Parte II – Australis
A 31 de outubro de 2018, aconteceu em Leiria, no hotel Eurosol, um encontro com autarcas, associações de defesa do ambiente locais e comunicação social. A Australis ia apresentar os seus projetos. Uma semana antes tinham-me dito que isto ia acontecer, mas que seria uma reunião à porta fechada. Estava curioso, porque andava há uns meses a vasculhar tudo o que podia sobre as intenções da empresa. Contactei-os, através da agência de comunicação – mais tarde falo-vos dela – disse-lhes que sabia o que se ia passar e que queria estar presente. À última da hora, lá decidiram fazer uma sessão de apresentação também para jornalistas, mas separada da sessão com os autarcas e ambientalistas.
Cheguei cedo, ainda a reunião, marcada para as 10h00 da manhã, não tinha começado. Via-se pouca gente – quem já tinha chegado antes de mim, entrou diretamente para uma sala reservada – e quem entrava fugia do frio e da chuva. Fiquei a deambular entre a rua e o lobby do hotel, queria falar com pessoas que não me respondiam a emails e pedidos de esclarecimento. Já passava do meio dia quando eu e outros jornalistas ouvimos o plano da Australis.
Ian Lusted:
Vim de propósito de Perth, na Austrália, só para estar aqui esta manhã. Gosto de pensar que isso enfatiza quão importante isto é para nós e porque é que, embora seja uma fase relativamente precoce neste processo, queríamos fazer isto.
Este é Ian Lincoln Lusted, presidente da comissão executiva e diretor-geral da Australis Oil & Gas. A petrolífera tem a sede social em Perth, a quarta maior cidade australiana, terra natal da cantora Kylie Minogue ou do falecido ator Heath Ledger. Entre Leiria e a cidade do outro lado do Planeta distam mais de 15 mil quilómetros, mais que o diâmetro da Terra. Ian Lusted serviu na Marinha Real Britânica e, depois disso, trabalhou toda a vida em companhias ligadas ao petróleo, como a Shell International, o braço da Shell no Reino Unido. Fez questão de mostrar o seu compromisso com a operação da empresa em Portugal. Dá a cara e as explicações sobre as intenções da petrolífera. Conhece os detalhes técnicos, não hesita. Expressa-se de forma clara, assertiva e pausada. Pediu desculpa por não falar português.
Ian Lusted:
As minhas desculpas por não falar Português.
Mas não está só. A equipa portuguesa veio com ele.
Pedro Miguel Santos: Só para perceber. O Vasco Taborda é o advogado. E a senhora?
Paula González: Sou da ERM.
Pedro: Portanto, é da consultora que faz o estudo de impacto ambiental.
Paula González: Sou da consultora. Sim sou [de uma entidade] autónoma.
Pedro: E como é que se chama?
Paula González: Paula.
Pedro: Paula.
Paula González: González.
Pedro: González.
Vasco Taborda: Com “Z”.
Pedro: E, já agora, o senhor?
Rui Machado: Eu sou o Rui Machado…
Pedro: Rui Machado.
Rui Machado: …e trabalho para a Australis, da parte operacional.
Paula González é engenheira do ambiente. Trabalha na delegação portuguesa da consultora internacional ERM, uma das 15 maiores empresas de serviços ambientais do mundo, com sede em Londres, no Reino Unido, e que a Australis contratou para lidar com todo o processo de avaliação ambiental em Portugal. Os grandes clientes da ERM, que tem escritórios em 44 países diferentes, são as indústrias de petróleo e gás, mineração, energia, farmacêutica, química e industrial. Os grandes poluidores. Paula Mariel González de Spencer nasceu na Argentina e tem 20 anos de experiência em consultoria ambiental, 15 dos quais na indústria de petróleo e gás natural em empresas nacionais e estrangeiras. Durante sete anos esteve na Galp Energia, onde coordenou um projeto chamado “Projecto Desenvolvimento Sustentável”.
Na prática a Australis é o resultado do que sobrou de duas empresas: além do núcleo português, de que falámos acima, e que vinha da Mohave, também o núcleo duro internacional é praticamente o mesmo do de uma outra empresa australiana, a Aurora Oil & Gas Limited. Ora vejam:
- Ian Lusted – que tem dado a cara em Portugal – é diretor-geral e presidente do conselho de https://staging2.shifter.pt/wp-content/uploads/2021/02/e03c1f45-47ae-3e75-8ad9-75c08c1d37ee.jpgistração da Australis, mas foi diretor técnico da Aurora, entre 2008 e 2014;
- Jonathan Stewart foi fundador e presidente da Aurora, hoje é presidente da Australis;
- Graham Dowland, diretor financeiro da Australis, tinha as mesmas funções na Aurora, de que também foi fundador;
- Alan Watson foi diretor não executivo na Aurora e, agora, é-o também na Australis;
- Julie Foster, hoje vice-presidente da Australis, era a responsável pela contabilidade da Aurora;
- Michael Verm, Chefe de operações da Australis, era-o também na Aurora e foi presidente da Baytex USA, a quem a Aurora foi vendida;
- Darren Wasylucha foi Vice-presidente da Aurora e, hoje, é diretor-geral corporativo da Australis;
- Raul Benavidez, geólogo na Aurora é, hoje, diretor de Geofísica na Australis, e também responsável por essa área em Portugal.
A 11 de junho de 2014, a Aurora foi vendida à empresa canadiana Baytex por 2,6 mil milhões de dólares australianos. A Aurora tinha concessões de petróleo e gás de xisto no Texas, Estados Unidos da América, e a Baytex quis ficar com elas. Foi um bom negócio.
Quase um ano depois, a 31 de março de 2015, era constituída a Australis Oil & Gas Portugal, Sociedade Unipessoal Lda, com sede no Largo Rafael Bordalo Pinheiro, n. º16, em Lisboa e capital social de 5000 euros. Este valor foi investido pela Australis Oil e Gas UK Limited, em Londres, no Reino Unido, que por sua vez pertencia à Australis Oil e Gas. Este é o nome da empresa mãe, cotada na bolsa de valores australiana, e fundada um ano antes, em março de 2014. Os fundadores? Jonathan Stewart, Ian Lusted e Graham Dowland. Os mesmos que nessa altura geriam a Aurora, antes de a terem vendido por 2,6 mil milhões de dólares.
Na Fundação Gulbenkian, a 28 de setembro de 2015, dois dias antes de assinar os contratos, a Australis reconheceu que tinha vindo para Portugal a convite do Governo Português. Mas como se concessiona uma área tão vasta do país a uma empresa com apenas seis meses e sem atividade anterior em Portugal?
Foram Paulo Jorge da Silva Carmona e José Manuel da Silva dos Reis, respetivamente presidente e vice-presidente da Entidade Nacional para o Mercado de Combustíveis, que assinaram os contratos de concessão Batalha e Pombal, por delegação de poderes de Jorge Moreira da Silva, Ministro do Ambiente, Ordenamento do Território e Energia a – que, hoje, é diretor-geral de Desenvolvimento e Cooperação da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE).
Paulo Carmona tinha sido nomeado presidente do conselho de https://staging2.shifter.pt/wp-content/uploads/2021/02/e03c1f45-47ae-3e75-8ad9-75c08c1d37ee.jpgistração da EGREP – Entidade Gestora de Reservas Estratégicas de Produtos Petrolíferos, a 27 de de junho de 2013, por Pedro Passos Coelho. Quase no final desse ano, a 16 de dezembro, o governo publicou o Decreto-Lei n.º 165/2013, que reestruturou e renomeou esta entidade pública empresarial e passou a chamar-lhe Entidade Nacional para o Mercado de Combustíveis – ENMC – que ficou com a responsabilidade de os processos de prospeção, pesquisa, desenvolvimento e exploração de recursos petrolíferos no país.
Carmona manteve-se. Era e é um defensor da exploração de petróleo e gás em Portugal e em vários momentos lamentou publicamente que o país ainda não tivesse explorado os seus recursos.
Paulo Carmona:
Eu queria contar uma pequena história sobre um senhor que tinha uma papelaria, uma tabacaria na minha rua. E no ano passado reformou-se. E tinha um filho que era idealista, detestava o tabaco, queria acabar com o tabaco. O que é que ele fez? Mal tomou conta da tabacaria disse: ‘Não vendo mais tabaco’. Dito e feito. O que é que aconteceu? As pessoas que iam comprar tabaco à tabacaria foram para outra. O consumo de tabaco não diminuiu. Alguém aqui acredita, que se nós explorarmos ou não explorarmos petróleo, o consumo de petróleo no mundo aumenta ou diminui? Nada. Estamos a associar a exploração de petróleo em Portugal com o consumo, com alterações climáticas, que vai haver ou não vai haver, independentemente de nós explorarmos e furarmos.
Quando fez estas declarações, no Prós e Contras da RTP em que se debateu a exploração de petróleo no país, em setembro passado, Carmona já não era presidente da ENMC. O consultor e https://staging2.shifter.pt/wp-content/uploads/2021/02/e03c1f45-47ae-3e75-8ad9-75c08c1d37ee.jpgistrador em empresas de energia nacionais e internacionais foi destituído em dezembro de 2016, pelo Governo atual.
Carmona é membro da direção da Ordem dos Economistas, diretor executivo do think-tank Missão Crescimento e fundador do MEL – Movimento Europa e Liberdade, que em janeiro realizou a 1.ª Convenção da Europa e Liberdade, que agregou políticos e independentes do centro-direita português. Foi https://staging2.shifter.pt/wp-content/uploads/2021/02/e03c1f45-47ae-3e75-8ad9-75c08c1d37ee.jpgistrador na Martifer, CEO da Prio Bio, e é dono da Multipublicações que edita as revistas Marketeer e a Executive Digest (de que foi diretor 10 anos) e o mais recente Jornal Dia 15.
Troquei vários emails com Paulo Carmona. Enviei perguntas sobre como decorreu o processo de concessões e chegou até a haver uma conversa pessoal apalavrada para a altura do Natal, que nunca chegou a acontecer. Ainda assim, as suas respostas foram esclarecedoras, cito: “A Australis era uma empresa bem financiada, a cotar na bolsa de Sidney, com técnicos competentes, os dirigentes tinham recentemente vendido uma empresa de exploração de hidrocarbonetos e queriam investir em Portugal. Também tinham recursos humanos que já haviam trabalhado em Portugal, em Aljubarrota. Conheciam o local.”
Portanto, o grande trunfo dos criadores da Australis para entrar no país e ficar com 2.510 km2 de direitos de exploração do subsolo nacional foi recrutar a equipa portuguesa que saiu da Mohave e ter feito um bom negócio vendendo a Aurora.
Meses mais tarde, em janeiro de 2016, Ian Lusted, o Diretor-Geral da Australis, admitiu ao jornal e site de negócios australiano Business News que a compra das concessões Batalha e Pombal tinha sido feita porque os dados das campanhas sísmicas da Mohave nunca tinham sido trabalhados, nem testados, o que representava uma grande oportunidade para a empresa, e que a entrada em Portugal tinha sido um negócio – cito – “barato, com pouco investimento”.
Parte III – a reunião de Leiria
Pedro Pedrosa: Pedro Pedrosa, presidente da Junta da Bajouca.
Pedro Miguel Santos: Senhor Pedro, está aqui porquê?
Pedro Pedrosa: Estou aqui porque fui convidado, pela Australis, para uma reunião para o quê, não sei bem ainda.
Pedro Miguel Santos: Chega aqui, à reunião, o Ricardo Vicente, do Peniche Livre de Petróleo. Vem como se nada fosse. Olá Ricardo, estás bem, tudo bem?
Ricardo Vicente: Tudo.
Pedro: Então, o que estás aqui a fazer?
Ricardo Vicente: [Ri-se] Venho assistir.
Pedro: Vens assistir. E achas que te vão …
Ricardo Vicente: Vou tentar… [Ri-se]
Pedro: E achas que te vão deixar assistir?
Ricardo Vicente: Não sei, acho que não.
Pedro: Como é que soubeste desta reunião que está aqui a acontecer?
Ricardo Vicente: Ehhh por vias não formais…
Pedro Miguel Santos: Neste momento vem a caminhar, para aqui, para a entrada do Hotel, Domingos Patacho, da Quercus, e o Mário Oliveira, da Oikos Leiria. [Ouvem-se passos e vozes a aproximar] Muito bom dia!
Mário Oliveira: Boas.
Pedro: Mário Oliveira e Domingos Patacho, como estão?
Mário Oliveira: Está tudo bem, como é que estás?
Pedro Miguel Santos: Senhor presidente [da Câmara Municipal de Porto de Mós], está bom?
Jorge Vala: Está tudo bem?
Pedro: Expectativas, para esta reunião, é agora que o vão informar?
Jorge Vala: Provavelmente será, não sei. Expectativa é a de ouvir, apenas.
Pedro: Não tem mais informações do que aquelas que a convocatória…
Jorge Vala: Nós somos, se calhar, o único município que tem uma posição de princípio tomada, por unanimidade, em 2017. Esta posição mantém-se inalterada, enfim, até nova decisão do executivo. Portanto, vimos objetivamente para ouvir.
Pedro Miguel Santos: E vem aí, agora, Raúl Castro, que é presidente da Câmara Municipal de Leiria, com a vereadora do Ambiente, Ana Esperança, e o vereador… – não sei do Desenvolvimento se do Planeamento. [Ouvem-se sons de gente a aproximar] Senhor presidente, muito bom dia, Pedro Santos, do Fumaça. Talvez tenha recebido o meu email. E a senhora vereadora também.
Ana Esperança: Sim.
Pedro: Recebeu o meu email? Expetativas para esta reunião?
Ana Esperança: Vamos ouvir, estamos expectantes com o que vamos ouvir.
António Cunha Vaz: O senhor é de que órgão de comunicação social?
Pedro: Olá, bom dia. Fumaça.
António Cunha Vaz: Ah, muito bem.
Pedro: Como está?
António Cunha Vaz: Bem, obrigado.
Pedro: E o senhor, com se chama?
António Cunha Vaz: António Cunha Vaz.
Cunha Vaz é fundador da Cunha Vaz e Associados, umas das maiores e mais importantes agências de comunicação do país. Representa a Australis e, sempre que temos questões a fazer, é com esta consultora que falamos. É quem nos responde, em nome da petrolífera.
Pedro: Olá António, tudo bem?
António Cunha Vaz: Somos nós que temos falado convosco, o José Pedro Luís…
Pedro: Sim, eu tenho falado com o Zé Pedro.
António Cunha Vaz: É aquele senhor que está ali, ele já fala consigo.
Pedro: Ótimo.
Foi a Cunha Vaz que convocou para este encontro os presidentes das juntas de freguesia onde a Australis quer furar. Também chamou presidentes de Câmara – estiveram presentes o de Porto de Mós, Leiria e Pombal – e ainda associações de defesa do ambiente locais, a Quercus, e a Oikos. A palestra era à porta fechada, não foi anunciada publicamente e não estava nos planos da empresa ter lá sequer jornalistas. Mas a mensagem espalhou-se.
E outros grupos ativistas anti-exploração de gás tentaram entrar.
Catarina Gomes: Gostaríamos de saber se a sessão agora é aberta, se podemos entrar…
António Cunha Vaz: Não, não.
Catarina Gomes: Não é?
António Cunha Vaz: Não.
Catarina Gomes, da associação Academia Cidadã, não desistiu. Mesmo não tendo sido oficialmente convidada, tinha tentado negociar com a Cunha Vaz uma autorização para entrar, uns dias antes. Não teve grande sucesso. Só que no dia, com autarcas e jornalistas por perto, tudo o que era preciso era evitar confusões.
A ASMAA já tinha seguido a mesma técnica e Verena Milbers, ativista, conseguiu entrar na sala de reuniões. ASMAA significa – Algarve Surf e Marine Activities Association – uma associação algarvia de defesa do ambiente e das atividades económicas ligadas ao mar, como o surf, que tem sede em Lagos. Tem-se oposto ao furo de Aljezur e intentado diversas acções legais em tribunal quer contra as petrolíferas que aí queriam furar – como a ENI e a Galp – quer contra o Estado Português.
Catarina Gomes queria fazer o mesmo que Verena Milbers. Argumentou durante uns 15 minutos, rodeada por outros ativistas, e finalmente conseguiu entrar na reunião.
Neste momento tenho de vos fazer um outro esclarecimento, a bem da transparência. A Catarina Gomes, trabalha na Campanha Linha Vermelha, que é um projeto da Academia Cidadã, uma associação que ajudei a fundar, nascida do protesto da Geração à Rasca, em 2011. Fui presidente até março de 2018, antes de começar a trabalhar profissionalmente no Fumaça, a tempo inteiro. Nessa data, desvinculei-me de todas as funções e responsabilidades executivas e do dia-a-dia da associação. Foram feitas eleições e assumi o cargo de secretário da Assembleia-Geral. Por achar que, ainda assim, essa posição formal seria incompatível com o trabalho jornalístico que queria fazer, demiti-me dela também, no final de agosto, quando esta reportagem começou a ganhar forma. Voltando à reunião.
Cá fora preparava-se o protesto. Acabava de chegar um funcionário de uma gráfica a perguntar pela Catarina Gomes, dizia que tinha umas faixas para lhe entregar. Como ela tinha conseguido entrar na reunião, os outros ativistas tomaram conta do recado. Ricardo Vicente, do Peniche Livre de Petróleo.
Ricardo Vicente: Nestas faixas temos algumas reivindicações nossas: ‘Contaminação da água não’; ‘Renováveis sim, gás não!’; ‘Nem fracking, nem convencional, renováveis sim?’; ‘Não ao furo, sim à água’.
Pedro: E quem são estas pessoas que estão a segurar estas faixas?
Ricardo Vicente: Bom, são apoiantes de algumas organizações ambientalistas aqui da região, da Linha Vermelha, do Peniche Livre de Petróleo, lá dentro há gente da ASMAA, da Quercus e da Oikos. A Quercus e a Oikos não têm nada que ver com a colocação das faixas que aqui estão.
Pedro: Porque é que fizeste questão de frisar isso?
Ricardo Vicente: Para não os comprometer com o que está aqui a acontecer, porque não têm nenhuma responsabilidade sobre a ação pública que está aqui a decorrer. Acredito que têm as mesmas palavras de ordem que nós.
Foi uma ação sobretudo simbólica. Não havia muita gente. Nas movimentadas rua do Município e avenida Marquês de Pombal, que ali se encontram, mesmo à entrada do hotel Eurosol, quem seguia de carro ou pé olhava com uma curiosidade indiferente ao que se passava, tentando escapar ao vento frio e aos aguaceiros.
Lá dentro, a Australis explicava ao que vinha. Queria furar, se tudo corresse bem, no final de 2019. Garantia que não ia utilizar uma técnica conhecida como fraturação hidráulica (fracking, em inglês) – que consiste num furo horizontal onde é injetada, a alta pressão, uma mistura de areias, água e centenas de produtos químicos, de modo a soltar o gás ou óleo aprisionados nas rochas. Há uma referência a esta técnica nos contratos de concessão – diz-se que se a Australis a quiser usar tem de pedir autorização ao Governo e que este tem 30 dias para responder. Se não disser nada, o pedido é automaticamente aprovado.
Os ambientalistas e autarcas ficaram em alerta máximo. Esta maneira de extrair petróleo e gás tem graves consequências ambientais sobretudo pela enorme quantidade de água que utiliza e pela contaminação de lençóis freáticos. A técnica é vista como tão perigosa que foi proibida em França, na Alemanha, na Bulgária e na Irlanda. Contudo, foi por causa da sua utilização em larga escala na última década que os Estados Unidos da América se tornaram o maior produtor mundial de gás natural e petróleo, superando a Rússia e a Arábia Saudita. Hei-de falar-vos melhor sobre esta polémica técnica e os seus efeitos no ambiente e na política energética europeia e mundial num próximo episódio.
Mas nessa reunião a Australis disse mais. Anunciou que ia fazer um Estudo de Impacte Ambiental, cujo processo até já tinha iniciado uma semana antes. A 24 de outubro tinha feito entrar na Agência Portuguesa do Ambiente (APA), uma Proposta de Definição de Âmbito (PDA) relativa ao local do furo. A definição de PDA está na Lei: “fase preliminar e facultativa do procedimento de Avaliação de Impacte Ambiental, na qual a autoridade de AIA [a APA] identifica, analisa e seleciona as vertentes ambientais significativas que podem ser afetadas por um projeto e sobre as quais o estudo de impacte ambiental deve incidir”.
Ou seja, já está decidido que se vai fazer um Estudo de Impacto Ambiental e entra-se numa fase de negociação com as entidades públicas para que possam, a partir da proposta da empresa, decidir o que tem mesmo de ser estudado exaustivamente. Também tem de ser tida em conta a opinião das pessoas e entidades e por isso tem se ser feita numa nova consulta pública.
Para entender toda esta burocracia e por que razão a Australis só agora vai fazer um Estudo de Impacte Ambiental fui até Coimbra, falar com quem percebe do assunto.
Parte IV – a avaliação
Alexandra Aragão:
O meu nome é Alexandra Aragão. Sou professora da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra e estudiosa da área do direito ambiental.
Foi na ala de São Pedro, em plena Alta de Coimbra, Património da Humanidade da Unesco, no seu gabinete atafulhado de livros, mas ainda com uma vista para o Páteo das Escolas, que Alexandra me ajudou a perceber o que é um processo de Avaliação Ambiental.
Alexandra Aragão:
A avaliação de impacto ambiental é um procedimento https://staging2.shifter.pt/wp-content/uploads/2021/02/e03c1f45-47ae-3e75-8ad9-75c08c1d37ee.jpgistrativo baseado num documento científico, que é o estudo de impacto ambiental, e que visa permitir uma consideração quase exaustiva de todos os possíveis impactos futuros de uma atividade ou de um projeto. Ao mesmo tempo, a avaliação de impacto ambiental tem uma dimensão democrática, digamos assim, e uma dimensão que visa permitir aos cidadãos tomar conhecimento antecipadamente, com tempo, dos projetos que estão a ser propostos e que vão, eventualmente, vir a ser licenciados no futuro, e participar também, dando a sua opinião, que deve ser tida em consideração nesse procedimento, e conduzir a uma decisão final – de sim, ou não, e em que condições – que seja mais aceitável também do ponto de vista social.
Mas nem todos os projetos têm de ser sujeitos a Estudos de Impacto Ambiental, e ainda assim são avaliados quanto ao impacto que podem causar no ambiente. Até se chegar à conclusão de que esse Estudo é ou não necessário, há etapas anteriores.
A primeira é a “apreciação prévia”. É um relatório que serve para perceber se é ou não necessário fazer um Estudo de Impacto Ambiental.
Para o furo de Aljubarrota, a Australis iniciou o processo de avaliação com um documento deste tipo. Enviou esse pedido à Entidade Nacional para o Mercado de Combustíveis – ENMC – que é quem emite a licença necessária para o furo avançar. Mas para esta licença ser emitida é preciso um parecer obrigatório da autoridade nacional de Avaliação Ambiental, que é Agência Portuguesa do Ambiente.
Se tivesse tido um parecer positivo da APA, a Australis não teria de fazer um Estudo de Impacte Ambiental. Mas não teve. Nem positivo, nem negativo. Falámos disto no último episódio. Como a APA não sabia o local exato, concluiu que não podia concluir sobre se era necessário haver ou não haver um Estudo de Impacto Ambiental (EIA), que é muito mais exigente e detalhado que a apreciação prévia.
Alexandra Aragão:
Tem que ser um documento muito mais extenso, muito mais exaustivo, analisando, um por um, os impactos, pois no solo, na população, na biodiversidade, nos riscos – esta é uma novidade da diretiva de 2014. Agora há obrigatoriedade de avaliar exaustivamente os riscos das atividades, nomeadamente estas de prospeção e extração. Portanto, há um conjunto de parâmetros que têm que ser avaliados e que esse pequeno documento não avaliou. Isto é um estudo prévio.
Aparentemente há uma lógica para existir esta fase prévia.
Alexandra Aragão:
Para determinadas atividades em relação às quais é duvidoso saber se têm impactos ambientais muito significativos, ou não, faz sentido haver um estudo prévio e não obrigar logo a um enorme estudo de impacto ambiental quando, se calhar, até a atividade é relativamente inócua. Isto não é verdade para o petróleo.
O grande mistério em saber por que razão não se determinou logo que tinha de haver um Estudo de Impacto Ambiental para o furo de Aljubarrota está na lei. A nossa legislação de avaliação de impacte ambiental é, na prática, a transposição para a ordem jurídica portuguesa da diretiva Europeia n.º 2014/52/EU.
Qualquer diretiva europeia é o acordo possível entre os países. Como cada Estado-membro tem entendimentos diferentes sobre os efeitos no ambiente dos projetos públicos e privados, a maneira de passar a legislação foi criar dois anexos, onde se especifica em que circunstâncias tem de haver uma Avaliação de Impacto Ambiental obrigatória ou quando ela pode ser decidida caso a caso.
Nos projetos do anexo 1 essa avaliação é obrigatória em todos os países da União, consoante o tipo de projetos e a sua localização. Por exemplo: refinarias de petróleo bruto; alargamento de autoestradas, com pelo menos 10 km de troço contínuo; pecuárias com mais de 3 000 porcos de produção (+30 kg) ou 900 porcas reprodutoras; fábricas de pasta de papel a partir de madeira e, também, furos de extração de petróleo e gás natural para fins comerciais quando a quantidade extraída for superior a 500 t/dia, no caso do petróleo, e 500 000 m3/dia, no caso do gás.
Alexandra Aragão: Quanto aos outros projetos, os tais do anexo 2, decidiu deixar-se à apreciação dos Estados membros, em função das características do seu território…
Pedro Miguel Santos: E da dimensão dos projetos em si.
Alexandra Aragão: Da dimensão, natureza e localização – é as três coisas.
Os furos de prospeção de gás natural são um deste tipo de projetos previstos no anexo II.
Alexandra Aragão:
Os Estados mais ligados ao Direito Continental, os Estados de matriz mais romano-germânica, como é o caso de França, Portugal, Alemanha e outros Estados que optaram por transpor esse anexo 2 dizendo exatamente em que circunstâncias e em que condições é que eles achavam que no território nacional esse tipo de atividades do anexo 2 deveriam ser sujeitas à avaliação de impacto ambiental.
E o que diz a nossa lei? Segundo a alínea b) do n.º 2 do Anexo II do Decreto-Lei n.º 152-B/2017, uma “sondagem de pesquisa e/ou prospeção de hidrocarbonetos por métodos convencionais” é decidida “caso a caso”.
Por ser caso a caso, é que a Australis teve de apresentar um documento de Apreciação Prévia, em fevereiro de 2018. Esse processo obrigava a que fosse feita uma consulta pública, de que falámos no último episódio, que aconteceu entre 27 de março e 11 de maio de 2018. Por nesse documento não se dizer exatamente onde queria furar em Aljubarrota, o processo voltou à estaca zero. E como não queria perder mais tempo, à espera de saber se tinha ou não de fazer um Estudo de Impacto Ambiental, a Australis decidiu finalmente fazê-lo e arrumar esse assunto.
Parte V – de volta à reunião
Voltemos ao Hotel Eurosol, a Leiria, à reunião onde estas informações se souberam. Estava a caminho um outro grande anúncio. O que a Australis tinha para dizer aos autarcas e que, depois, disse aos jornalistas, foi isto:
Ian Lusted: That’s enough gas to supply Portugal for about two and a half years, based on the 2017 consumption numbers.
Jornalista: Qual é o valor do gás?
Paula Gonzalez: É… São… desculpem.
Rui Machado: São 12,98 mil milhões de metros cúbicos.
Pedro Miguel Santos: Isto é uma estimativa de reserva?
Rui Machado: Sim.
Vasco Taborda: Média.
Rui Machado: Média, uma estimativa média.
Vasco Taborda: …estimativa alta, baixa – esta é a média das estimativas existentes.
Pedro Miguel Santos: Das duas concessões.
Rui Machado: Não… sim. Das duas concessões. Batalha e Pombal.
Jornalista: Dá para abastecer Portugal durante dois anos e meio, é?
Paula Gonzalez: Sim, dois anos e meio.
Jornalista: Certo.
O anúncio foi notícia. Uma estimativa de gás natural recuperável entre 6,14 e 23,15 mil milhões de m3 de gás, à data de 31 de dezembro de 2016. A avaliação foi feita pela Netherland, Sewell & Associates, uma consultora com sede em Dallas, no estado norte-americano do Texas, que fornece serviços para a indústria petrolífera mundial, como relatórios, auditorias de reservas, estudos de simulação ou avaliações de recursos de exploração. A estimativa média identificada (12,98 mil milhões de m3) é equivalente a mais de duas vezes o consumo de gás natural em Portugal, no ano de 2017, segundo o relatório BP Statistical Review of World Energy, de junho de 2018.
Mas nem o pomposo número sossegou o presidente da Câmara de Porto de Mós, o meu concelho de origem, como vos contei no episódio um. Vinha desconfiado.
Pedro Miguel Santos: Senhor presidente, está esclarecido?
Jorge Vala: Não, não estou.
Pedro: Então, conte-me lá o que é que se passou?
Jorge Vala: O que se passou foi a apresentação, a perspetiva da empresa Agora há muitas questões que estão por esclarecer.
Pedro: Por exemplo?
Jorge Vala: Se existe um plano de contingência para a água, por exemplo. Aljubarrota é a exploração da Batalha. O furo de Aljubarrota é junto ao concelho de Porto de Mós, próximo, relativamente próximo, das nossas captações de água para fornecimento de água aos nossos habitantes. E a questão que eu coloco é se existe um plano de contingência se houver um problema na captação. Dizem-me que não há problema, mas eu continuo a colocar a questão se ‘há um plano de contingência?’, porque pode haver problema.
A 1 de outubro, já me tinha encontrado com Jorge Vala. Ex-bancário, recuperou para o PSD um município que sempre fora laranja desde o 25 de abril, mas que, durante os 12 anos anteriores, se tinha rendido às cores rosa. Em julho, num evento do município, na Fórnea, uma das mais emblemáticas belezas naturais do Parque Natural das Serras de Aire e Candeeiros, ele tinha dito aos jornalistas: ‘Nós somos frontalmente contra a exploração de hidrocarbonetos’. E foi por causa desta declaração, que fui perceber de onde vinha uma ideia tão clara sobre o assunto. Disse-me que a Câmara tinha tomado uma posição depois de receber uma carta do Movimento Peniche Livre de Petróleo em que se falava dos furos e da utilização do fracking.
Apesar de, na reunião de Câmara de 7 de dezembro de 2017, Vala e os seus vereadores terem aprovado uma posição que diz: “o Município de Porto de Mós manifesta-se contra a prospeção e produção de Petróleo e Instalação da Indústria Petrolífera” parece ter saído da reunião menos contundente.
Jorge Vala:
Eu tenho presente que – e esta aqui deixa-me tranquilo, efetivamente – é que a exploração, garantidamente, não será através do, com o princípio de fracturação, portanto, não será com o sistema fracking. E também me deixa mais tranquilo porque está em curso uma avaliação de impacto ambiental e esta avaliação será determinante, até porque vai haver consulta pública no próximo ano. Esta Avaliação de Impacto Ambiental será determinante para nós, municípios, também nos posicionarmos, porque é a primeira vez que somos consultados com uma concessão que foi atribuída em 2015. Fomos completamente ignorados – e estamos a ser completamente ignorados – porque esta reunião foi feita depois das manifestações públicas que os municípios fizeram e foi feita pela Australis. Não foi feita por ninguém do Governo, por ninguém interessado, foi feita pela Australis.
O presidente da Câmara de Alcobaça, com quem tinha falado exatamente 30 dias antes, não esteve presente. Nesse 2 de outubro, tinha já as garantias que hoje a Australis aqui vinha deixar. Porque três meses antes a empresa reuniu-se com ele e o presidente de Junta de Aljubarrota.
Paulo Inácio: A Australis disse que não havia fracking do solo.
Pedro: Garantiram isso?
Paulo Inácio: Garantiram isso Pedro: Não iam usar essa técnica.
Paulo Inácio: Não iam utilizar essa técnica, garantiu isso nessa reunião. Garantiram que só fariam prospeção e que era do interesse deles fazer o impacto ambiental prévio, a avaliação ambiental.
Pedro: A avaliação de impacto ambiental.
Paulo Inácio: E nós dissemos que isso era essencial para sequer continuarmos a conversar.
Pedro: Claro.
Paulo Inácio: Sem isso, nem sequer queríamos conversar. A vontade até nem era conversar, mas dado que esses dois pressupostos estavam garantidos: não haver fracking e queriam fazer a avaliação de impacto ambiental aguardaríamos os desenvolvimentos decorrentes posteriores relativamente a essa matéria, ponto final parágrafo, foi isto que aconteceu.
Pedro: E da parte do Ministério do Ambiente, ministério da Economia, APA?
Paulo Inácio: Ministério do Ambiente, nada, zero.
Tal como o colega de Porto de Mós, queixou-se do papel do Estado central.
Paulo Inácio:
O Estado é que tem de dar estas informações, essencialmente o Estado. Porque tem-se articulado pouco com as autarquias, relativamente a esta matéria. Trata como um cidadão comum.
Ainda assim, para Paulo Inácio, a aposta, hoje, é outra.
Paulo Inácio:
Eu quero é um concelho de ambiente e de património. Estas são as minhas premissas. Não gosto muito de exploração de petróleo e de gás, da eventual exploração de petróleo e de gás no meu concelho. Mas eu para discutir esta questão de forma racional preciso de argumentos científicos.
Mas em 2012, quando a Galp e a Mohave fizeram um furo a 800 metros do Mosteiro de Alcobaça, e o ministro da economia, Álvaro Santos Pereira, e o secretário de Estado da Energia, Artur Trindade lá foram celebrar o negócio, o discurso era a favor da exploração de petróleo. Quando a Mohave faliu e deixou os trabalhos no seu concelho, Paulo Inácio não perdeu a esperança: “havendo recursos eles não vão desaparecer e outras empresas que se interessem pela sua exploração poderão aparecer”, disse ao Diário de Leiria, em maio de 2014.
Paulo Inácio: Eu acho que não mudei assim tanto, mas o país mudou. Em 2012… A gente também tem de fazer as avaliações económicas.
Pedro: No seu contexto.
Paulo Inácio: No seu contexto. Portugal hoje não está bem, mas na altura estava de cócoras em termos financeiros. Estávamos com a intervenção da Troika. E os portugueses estavam a sofrer uma austeridade brutal, brutal. E quando aparece alguma expectativa de melhorar a sua vida as pessoas agarram-se a questões importantes. E o próprio Estado português na altura disse que era importante haver esta prospeção através da Direção Geral de Energia… Porque, atenção, eu comecei a pôr reservas. Fui eu que exigi uma reunião com o senhor diretor geral de energia de então que me convencesse que não haveria problema nenhum no território.
Pedro: De então, estamos a falar do diretor geral de energia de 2012?
Paulo Inácio: 2012, 2012. E ele confirmou-me que não havia problema absolutamente nenhum, que era importante isto para o país e para o concelho e que não havia qualquer problema. E pronto, e nesse contexto, eu levei aos órgãos municipais, que aprovaram, com esta informação com este contexto. Esta decisão tinha de ser sempre coletiva, digamos assim, e foi por unanimidade.
“O grande objetivo das indústrias extrativas de petróleo e gás natural visa a maximização do lucro, muitas vezes à custa de degradar o ambiente e não garantirem a segurança das populações.”
As palavras são de uma moção da Assembleia de Freguesia de Aljubarrota aprovada em abril de 2018, por altura da consulta pública do estudo prévio. Foi uma sorte terem-se pronunciado naquela data, porque, como me contou no início de outubro José Severino Coelho, presidente da Junta de Aljubarrota, só souberam que viria aí um furo quando o Correio da Manhã lhes foi bater à porta, a fazer perguntas.
Ainda assim, José Severino, não veio a esta reunião a Leiria. Talvez porque já tivesse conhecimento do que se iria lá passar, uma vez que tinha estado reunido com a Australis e o autarca de Alcobaça, nesse verão. Ou, se calhar, porque não acredita que furo avance tão depressa quando a empresa quer.
José Lourenço Severino: Não vai ser tão fácil como eles pensam.
Pedro: Porque aquilo que eles tinham dito era que queriam furar em 2019.
José Lourenço Severino: Mas hão-de furar mais tarde.
Pedro: Acha que não…
José Lourenço Severino: Hummm não me acredito. Eles queriam furar em 2019 se a Agência do Ambiente tem aprovado isso. Isso furavam em 2019, que era o que estava previsto.
A esta reunião também não veio o presidente da Câmara da Batalha, Paulo Batista dos Santos. Em junho, quando a Agência Portuguesa do Ambiente, anunciou que não se podia pronunciar sobre a necessidade de haver um Estudo de Impacto Ambiental (EIA) relativo ao furo de Aljubarrota, a câmara ameaçou ir para os tribunais. Num comunicado enviado às redações lia-se: “face à não decisão da APA sobre esta matéria, e porque o Município da Batalha considera essencial a implementação de medidas preventivas em sede da AIA, o presidente da Câmara Municipal, Paulo Batista Santos, determinou a imediata avaliação das consequências do parecer da APA sobre projeto e pondera interpor uma ação cautelar de suspensão eficácia do ato https://staging2.shifter.pt/wp-content/uploads/2021/02/e03c1f45-47ae-3e75-8ad9-75c08c1d37ee.jpgistrativo, requerendo nova avaliação ambiental.”
Paulo Batista dos Santos foi deputado na Assembleia da República, com as cores laranjas, eleito pelo círculo de Leiria, entre 2002 e 2013, quando deixou o Parlamento para liderar o município da Batalha. Lembra-se bem da altura em que as concessões foram feitas e, aparentemente, questionou-as.
Paulo Batista dos Santos: Estas coisas têm que ser feitas com muito cuidado com muita explicação às populações e em territórios muito limitados e bem fundamentado do ponto vista técnico e ambiental, é isso que o presidente da câmara da Batalha não prescinde. Isso custou-me, digamos, alguma antipatia do ministro em exercício funções, nomeadamente o ministro Jorge Moreira da Silva, tomei uma posição também dura contra o Governo da altura…
Pedro: Na altura, em 2015?
Paulo Batista dos Santos: …2015, contra o governo, no sentido de sinalizar – e na altura não tinha informação suficiente, só fui informado que tinha sido realizada uma concessão onde estava a Batalha e Pombal. É certo que no ponto de vista físico a designação não bate com o território, porque a concessão ela começa de facto no concelho de Alcobaça e prolonga-se, a área do concelho da batalha é muito diminuta, vai ao concelho de Ourém, ao concelho de Leiria e Pombal, mas, verdadeiramente…
Pedro: E Porto de Mós…
Paulo Batista dos Santos: …e Porto de Mós também. A designação da concessão, naturalmente, colocava a Batalha também aqui num ponto de discussão. Nada nos foi apresentado, nada foi discutido connosco, nada nos foi explicado e, portanto…
Pedro: Isso não é estranho senhor presidente…. É estranho que o Governo Central tome uma medida de vender uma parte substancial do território sem que pelo menos o poder local seja ouvido.
Paulo Batista dos Santos: Estranho… estranho seguramente o é.
Reeleito em 2017, com outra maioria absoluta, conversou comigo um mês antes da apresentação que a Australis fez em Leiria. É presidente da ENERDURA – a Agência de Energia da Alta Estremadura, e vice-presidente da Comunidade Intermunicipal da Região de Leiria, uma associação composta pelos Municípios de Alvaiázere, Ansião, Batalha, Castanheira de Pera, Figueiró dos Vinhos, Leiria, Marinha Grande, Pedrógão Grande, Pombal e Porto de Mós. Se não mudou entretanto, em outubro, antes da reunião da Australis, era assim que falava em nome de todos estes concelhos:
Paulo Batista dos Santos: A nossa posição é muito clara. E temos reunido solidariamente uns com os outros – é certo que somos uns mais afetados que outros – mas tem sido sempre muito clara: frontalmente contra.
Pedro: A Comunidade intermunicipal?
Paulo Batista dos Santos: Frontalmente contra.
Se os representantes eleitos não eram assim tantos, já os convidados ambientalistas não se deixaram por representar. Uns saíram da reunião mais tranquilos que outros. Mário Oliveira, da Oikos Leiria, foi o autor do parecer que a Câmara da Batalha submeteu à Consulta pública de março. Nessa altura tinha muitas reservas.
Pedro Miguel Santos: As dúvidas de que me falou, e que estavam no parecer, estão dissipadas?
Mário Oliveira: Há uma dúvida de base que não está dissipada, nem deixa de estar, que é assim, no limite há aqui muitas situações que dependem dos estudos futuros. Garantidamente, algumas das minhas relativas preocupações estão eu diria, pelo menos, mais acauteladas, porque me quer parecer que há aqui um compromisso da empresa de ir pelo não fracking, por isso, é sempre um avanço. Do ponto de vista geológico e geotécnico, eu percebo que uma sondagem convencional, na prática, não é tão danosa como a outra poderia ser. Por isso, nessa perspetiva, assumo a coisa como pacífica. Naturalmente que do ponto de vista conceptual – e isto não estava em discussão nesta reunião – a questão das opções políticas pelo gás ou por opções renováveis em termos energéticos está subalternizada.
Domingos Patacho [Quercus]: Talvez a única novidade é que o próprio promotor assume que vai fazer EIAs, ou seja, uma avaliação específica, em princípio para cada furo das concessões e, portanto, nesse sentido vai haver mais informação, com maior detalhe, que permite, as pessoas ficarem mais esclarecidas sobre o que está em causa.
Pedro: Em termos de princípio, imagino que a Quercus não seja favorável à realização deste furo, ou é?
Domingos Patacho: Quer dizer, nós defendemos, obviamente, a descarbonização da economia, a aposta nas renováveis e, portanto, estar a fazer exploração de combustíveis fósseis nesta altura contraria, de facto, todas as orientações em termos internacionais.
As associações não convidadas inicialmente e que forçaram a sua presença, tinham uma posição mais contundente. Catarina Gomes, da Academia Cidadã:
Catarina Gomes:
Nós achamos que a Australis está a fazer uma operação de charme, a apresentação foi muito bem feita. São dados e informações claramente sem fundamento económico ou técnico. Garantem um investimento na região muito forte em pouco tempo, falam num cenário cor-de-rosa que nós achamos que não é plausível. E há muitos estudos que faltam fazer.
Verena Milbers, da ASMAA.
Pedro Miguel Santos: Primeiras impressões desta reunião?
Verena Milbers: Foi um bom cinema.
Pedro: Cinema?
Verena Milbers: Cinema, sim.
Como em qualquer bom guião de cinema, há sempre reviravoltas inesperadas. O que até ao início do verão passado se discutia publicamente era um furo em Aljubarrota, na concessão Batalha. Mas a Australis tinha outra área atribuída, mesmo ao lado, a concessão Pombal. E o presidente do conselho de Administração da Australis, que tinha vindo de propósito de Perth, na Austrália, para estar em Leiria nesta manhã, tinha algo importante a dizer.
Ian Lusted:
We plan to drill a well at each: in Aljubarrota and at Bajouca.
Portanto, além de Aljubarrota, anunciava-se um novo local. Podem não ter percebido. Não é bem na “Bajuca” – Ian Lusted avisou que não dominava o português – mas, antes, na Bajouca, uma freguesia no concelho de Leiria, dentro da concessão Pombal, onde até este dia quase ninguém sabia que aí vinha a Australis para furar. Nos contratos, a empresa é obrigada a fazer um furo todos os anos, em cada concessão, a partir do 4.º ano e até ao fim do contrato, que é de oito. Cumprindo as obrigações, no total das duas áreas concessionadas, Batalha e Pombal, têm de ser feitos oito novos furos na zona centro-oeste. Os primeiros são estes – em Aljubarrota e na Bajouca.
Parte VI – Bajouca
Pedro Miguel Santos:
É dia 31 de outubro, eu acabei de sair de leiria, demorei mais ou menos… estou a caminho do… estou a tentar procurar e descobrir o local onde vai ser o furo de prospeção de gás na Bajouca. A Bajouca é uma freguesia do concelho de leiria e está na área de concessão Pombal. Parece confuso, mas são estes os nomes.
Portanto, do centro de Leiria, que foi de onde eu saí, onde foi a reunião da Australis, no hotel Eurosol, até aqui, são mais ou menos, 20 a 25 minutos. E o que eu vou tentar fazer agora, é descobrir o sítio onde fica o furo, o local de prospeção, que eles já compraram.
Vou tentar falar com as pessoas, provavelmente ir a algum café, perceber se já ouviram falar da intenção de fazer este furo e se consigo chegar aos proprietários, eventualmente, e perceber o que é que tem sido dito.
“Daqui a 300 metros chegará ao seu destino.”
Pedro Miguel Santos:
Tá aqui um café, é isto mesmo. E à frente da associação de caçadores da Bajouca. Ah ‘tá ali a entrada. Portanto, ‘tou na Bajouca, ‘tou no centro da Bajouca. E o que eu preciso de saber neste momento é: ‘O que é que se tá a passar’.
Estacionei o carro e fui até ao café do GAU – Grupo Alegre Unido da Bajouca, uma associação recreativa e desportiva fez 50 anos, feitos no dia 1 de janeiro passado. Há duas mesas de homens a jogar às cartas. Se um assunto se souber, este é o sítio certo para perguntar.
Pedro Miguel Santos: Olá boa tarde, vinha-lhe pedir uma informação.
Senhora do Café: Diga, se eu souber responder.
Pedro: O meu nome é Pedro Santos, sou jornalista, e estou a tentar perceber onde é que é o sítio onde aqui na Bajouca querem fazer um furo de gás.
Senhora do Café: Não faço ideia. Um fundo de gás, aqui na Bajouca?
Pedro: Um furo de gás, sim
Senhora do Café: Não faço ideia, nem nunca ouvi falar, não sei, não sei. Eu posso perguntar ali a algum deles.
Pedro: Pode perguntar?
Senhora do Café: Ó, meus senhores, tenho uma pergunta para vos fazer: onde é que vai ser aqui na Bajouca feito um furo de gás?
Pessoas no Café: Um?
Pedro: Furo de gás.
Pessoas no Café: Onde vais ser feito?
Pedro: Pergunto eu, chamo-me Pedro Santos e sou jornalista. Queria perceber se alguém me sabe dizer onde é que é?
Pessoas no Café: Um furo de gás?
Pedro: Sim.
Pessoas no Café: Só se for numa botija qualquer aí…
Pessoas no Café: Um furo de gás?
Pedro: Vai haver aqui um furo de gás, sim. Aquele senhor está a olhar com um ar muito desconfiado. Não me diga que o terreno é seu?
Pessoas no Café: Uma perfuração para ver se há gás? Passa lá, passa. É onde? Um furo de gás. É na Bajouca?
Pedro: Se eu soubesse não estava a perguntar. Eu sei que querem fazer aqui um furo de gás. É uma empresa Australiana.
Pessoas no Café: Ah querem fazer prospeção?
Pedro: Prospeção, exatamente.
Pessoas no Café: Ah não sei, eu falei com essa gente, mas ninguém me disse nada, ao certo.
Senhora do Café: Ninguém sabe onde é que é?
Pessoas no Café: A melhor coisa aqui na Bajouca é ir à Junta. Vá à Junta de Freguesia que eles lá…
Se algum dos presentes sabia de alguma coisa, não me disse. Pelo que percebi o terreno que procuro fica numa estrada que liga a Bajouca à Bouça de Cá. Pus-me então a caminho da Bouça de Cá. Fui andando, devagar, até ver alguma coisa que me chamasse a atenção. E não via nada de anormal: eucaliptos, campos de cultivo, uma casa aqui, outra acolá. Mas vi uma casa térrea com uma placa a dizer “Mini-mercado Soares”. À porta havia daquelas placas de esferovite brancas, divididas em pequenos quadradinhos, com plantas à venda: couve-naba, cebola, alfaces. Entrei.
Pedro Miguel Santos: Boa tarde, vinha-lhe pedir uma informação. Ando à procura do sítio onde querem fazer um furo de gás aqui na Bajouca.
Maria Gomes: Furo de gás?
Pedro: Sim, para tirar gás natural.
Maria Gomes: Eu não sei.
Pedro: Faz ideia de alguma coisa?
Maria Gomes: Eu não.
Pedro: Já ouviu alguma coisa?
Maria Gomes: Eu não. Olha ó Agostinho já ouviste alguma coisa de gás natural para fazer aí um furo?
Pedro: Boa tarde.
Agostinho Soares: Boa tarde.
Pedro: O meu nome é Pedro Santos, sou jornalista. Venho saber se me sabe dizer ou se me conseguem dizer onde é que é o sítio onde querem fazer aqui um furo de gás natural, na Bajouca.
Agostinho Soares: Isso é através de quem, dos gajos da luz?
Pedro: Não, não, é gás. É tirar gás natural, é uma empresa australiana.
Agostinho Soares: Mas eu não vi nada ainda, epá, ainda não vi obras começadas ainda.
Pedro: Não, não há obras. Ainda não há obras, é para ser feito para o ano que vem.
Agostinho Soares: Sim…
Pedro: Mas eu queria perceber se sabiam onde é que era o terreno ou quem é que era o dono do terreno e assim, para ir falar com ele, para perguntar.
Agostinho Soares: Pois, epá, não lhe sei avançar nada de concreto sobre isso, não lhe sei avançar nada de concreto sobre isso.
Pedro: Está bem.
Agostinho Soares: Não lhe sei avançar nada sobre isso, de concreto.
Pedro: Está bem, vou à Junta então, é mais fácil, se calhar. É mais rápido ir lá do que…
Maria Gomes: Pois é…
Agostinho Soares: Exatamente.
Pedro: Está bem. Ok, muito obrigada
Maria Gomes: Nada.
Pedro: Tenham uma boa tarde.
Toda a gente me mandava ir à junta de freguesia. É para lá que vou, mas hei-de fazer algumas paragens no caminho. A Bajouca é, desde há muito, terra de olarias. Por causa da qualidade dos seus barros branco e vermelho, o povo passou a transformar a terra em tachos, testos, púcaros, canecas, pratos e tudo o mais que possam imaginar. Esta arte já deu de comida a muita gente, principalmente quando as peças asiáticas e de plástico não dominavam os nossos armários de cozinha. Com pouco mais de 2000 habitantes, há quem lhe chame a “capital da Olaria” da região de Leiria, e pelo menos 7 oficinas ainda estão ativas. Este é um sítio onde se sabe transformar o barro e a pedra.
A caminho da Junta vejo uma fábrica de lareiras e vigas pré-fabricadas. Na imagem que tinha na cabeça, mostrada na apresentação da Australis, havia uns pavilhões grandes, de chapa branca. Podia ser aqui.
Pedro Miguel Santos: Olá Boa tarde, tudo bem?
Trabalhadores: Olá, boa tarde.
Pedro: O meu nome é Pedro Santos, sou jornalista. Queria saber se me pode ajudar com uma informação: ando à procura do sítio ou do terreno onde vão fazer um furo de gás, aqui na Bajouca. Faz ideia e alguma coisa?
Trabalhadores: Boa pergunta, também nunca ouvir falar disso, ainda.
Pedro: Não?
Trabalhadores: Não.
Pedro: E acha que alguém faz ideia disso aqui ou não?
Trabalhadores: Não sei. Mas já foi… informou-se na junta ou…
Nada. Parecia impossível que ninguém soubesse nada sobre o assunto, o que já me estava a irritar.
“Ninguém sabe do Furo de Gás da Bajoucaaaa… Mais uma volta, mais uma viagem”
Paro uma última vez. Ao lado de uma oficina com ar artesanal onde, debaixo de telheiro de chapas de zinco, o Manel das Churrasqueiras montava um forno de cozer a lenha.
Pedro Miguel Santos: Estou a tentar perceber se o senhor me consegue dizer, ou se alguém sabe, onde é que vai ser um furo de gás que querem fazer aqui na Bajouca.
Fernando: Um furo de gás?
Pedro: De gás, para tirar gás natural?
Fernando: Aonde?
Pedro: Pois, a pergunta é essa.
Fernando: Qual é o jornal, desculpe lá?
Pedro: Não é um jornal, é um site online chamado Fumaça.
Fernando: Isso não será nenhuma brincadeira aqui da malta da Bajouca?
Pedro: Não, não é não.
Fernando: Tá na internet, no Facebook ou lá…
Pedro: Não, não, não. Fui hoje a uma reunião com a empresa que quer fazer isso e também lá esteve o presidente da Junta daqui.
Fernando: O Pedro?
Pedro: O Pedro, sim.
Fernando: Estou a saber agora. Epá, ainda ontem estive com o Pedro, carago! Ali a tomar o café de manhã e não me disse nada disso, não falou.
Pedro: Pois, ele também não sabia, foi lá hoje saber, imagino eu.
Fernando: Mas quem é quer fazer esse furo?
Pedro: Uma empresa australiana, chamada Australis.
Fernando é afável, simpático. Queixa-se que o negócio está em crise, falou-me de quando dava trabalho a sete pessoas e agora é só ele e o filho. Mas nem isso o convence dos benefícios que a vinda do investimento estrangeiro pode trazer à terra.
Pedro: Então e acha que se viesse para aí essa coisa do gás, que isso era bom para a terra ou que era mau?
Fernando: Para a multinacional que vem explorar é, para a terra não acredito. A menos que deem para aí algum subsídio para a junta ou aqui para desenvolver. Mas penso que para nós, povo da Bajouca, eu não acredito. Podem-me chamar pessimista, podem chamar o que quiserem, mas… epá, por amor de Deus, eu já…
Pedro: Já cá anda há muitos anos?
Fernando: Já cá ando há muitos anos, já tenho 62.
Pedro Miguel Santos: Olá boa tarde, por acaso não me sabe dizer se o senhor Presidente da junta está aí?
Funcionária Junta: Está a chegar.
Pedro: Ai é, a que horas é que ele chega?
Funcionária Junta: Entretanto, que já estão aqui pessoas à espera dele.
Pedro: Boa. Ok, muito obrigado, então eu espero por ele aqui fora.
Funcionária Junta: Não. Pode esperar aqui dentro.
Pedro: Posso esperar aqui dentro? Não, vou fumar um cigarro.
(…)
Pedro Pedrosa: Como é que deu ‘ca Bajouca?
Pedro: Como é que eu dei com a Bajouca? Por amor de Deus…
Funcionária Junta: Quem é que não dá com a Bajouca.
Pedro: Só falta dizer que a Bajouca não está no mapa.
Pedro Pedrosa: O que está lá não é a Bajouca, é Pombal.
Pedro: Isso é o nome da concessão. Mas é na Bajouca, não é?! Então, podemos falar? Quer ir para ali?
Pedro Pedrosa: Pode ser para ali.
Funcionária Junta: Olha a professora vem.
Pedro Pedrosa: Vem? A que horas?
Pedro: Também são dez minutos.
Pedro Pedrosa: Eu despacho-o rápido.
Pedro: Ele está-me sempre a despachar.
Finalmente estava na tão recomendada junta de freguesia. Pedro Pedrosa, eleito pelo PS nas autárquicas de 2017, era o homem que me podia ajudar. Quando soube que a Australis ia fazer a reunião, liguei-lhe para assuntar. Não me disse nada demais. Hoje, à entrada da reunião, tornou a ser vago. Valeriam a pena os próximos minutos?
Pedro Pedrosa: O trabalho que está a ser feito é para fazer uma prospeção de gás natural, não há aqui mais negócio nenhum, por aquilo que nos foi dito. Se houver, se tivermos a sorte ou eles tiverem a sorte de conseguir ali ter algum gás ou algum produto equivalente, depois tem que partir daí outro estudo de impacte ambiental, outras autorizações, tudo, tudo partindo do zero que é, o que é.
(…)
É claro que uma coisa destas, traz sempre algum impacto – e bastante – e era bom que trouxesse, se realmente for feito, que traga frutos para nossa freguesia, que bem precisamos.
Pedro: Porque é que diz isso? Há muito desemprego aqui?
Pedro Pedrosa: Há algum. Aqui há 20 e alguns anos uns depósitos de gás natural que estão no Carriço, eram para ser montados, implantados, em Monte Redondo, a população ou alguém não quis, foram para o Carriço. A população do Carriço está neste momento a usufruir de algumas regalias, se calhar algumas infraestruturas que não tinha, se tivesse lá a REN instalado os depósitos de gás.
Pequena pausa para explicar o que é isto da REN e do Carriço. A REN – Redes Energéticas Nacionais – é a antiga empresa pública que gerias as redes nacionais de eletricidade e gás e foi totalmente privatizada pelo Governo de Pedro Passos Coelho, num processo que terminou em 2014. O Carriço, é uma freguesia do concelho de Pombal, e aqui a REN, através da REN Armazenagem, gere seis cavidades de armazenamento de gás natural a alta pressão. Entre os 1000 e 1400 metros de profundidade, em jazidas de sal-gema, foram escavados buracos cilíndricos, entre os 200 e os 300 metros de altura e 60 a 70 metros de largura, guardam o equivalente a cerca de 20 dias de consumo médio interno total atual e representam 57% da capacidade de armazenamento existente em Portugal, segundo a REN.
Por causa desta obra, a REN tem compensado a população local. Por exemplo, ofereceu à Junta de Freguesia do Carriço um autocarro, de 60 lugares, destinado ao transporte escolar e apoiou o projeto de ampliação do lar de idosos do Centro Social do Carriço.
Não é por acaso que a Australis quer furar aqui. Se bem se lembram, no primeiro episódio, explicámos o que era necessário para haver hidrocarbonetos aprisionados debaixo da terra: uma rocha geradora, onde se decompõe a matéria orgânica; uma rocha que sirva de reservatório, normalmente calcários ou arenitos e uma camada que funcione como tampão, como argilas ou evaporitos ou sal. As formações de sal gema do Carriço ficam a 13 quilómetros, em linha reta, do sítio onde querem fazer o furo da Bajouca, que até ao momento em que falo com o presidente da Junta, Pedro Pedrosa, eu ainda não sabia onde era.
Pedro Pedrosa: É um pau de dois bicos.
Pedro: Porquê?
Pedro Pedrosa: Porque, pelo ruído que anda aí de outros lados isto pode ser bom ou pode ser muito mau. Não sei.
Pedro: Mas o que é que acha que pode ser mau?
Pedro Pedrosa: Depende, depende do investimento, foi-nos feita uma apresentação do que eles vão fazer, mas temos que ir estudar, ver o que é que realmente vêm fazer ou não vêm fazer.
(…)
Pedro Pedrosa: Eu não vou deixar avançar isto sem fazer uma sessão de esclarecimento à população, isso pode ter a certeza.
Pedro: Pois… E eles disseram-lhe se vêm cá fazê-la, eles querem cá vir? E quando?
Pedro Pedrosa: Eu não a vou fazer.
Pedro: Pois, eles é que sabem.
Pedro Pedrosa: Eu não a vou fazer. Mas ela há-de ser feita e eles hão-de vir cá.
Pergunto pelo terreno. Estava a ficar de noite e se quisesse falar com o anterior dono, tinha de me despachar. Pego no telemóvel, abrimos o Google Maps e vamos testando hipóteses.
Pedro Pedrosa: Eu acho que poderá ser, não sei…
Pedro: Porque eles diziam que era perto de casas, não é? Era uma coisa que eles estavam a dizer.
Pedro Pedrosa: Eu sei que será, por aquilo que eu me apercebi, que eu não consegui ver no mapa muito e condições, que será aqui assim numa destas zonas.
Pedro: Perto de Mini-Mercado Soares. Pois, eu passei aqui. Aliás, eu parei aqui. Até fui lá perguntar e eles não sabiam de nada.
Pedro Pedrosa: Quem?
Pedro: Um sítio que vendia sementes e…
Pedro Pedrosa: Sim, sim, sim.
Pedro: Sim.
Continuamos agarrados ao telefone, a fazer zoom in e zoom out ao mapa, tentando encontrar a imagem que tínhamos visto, na apresentação da Australis. E nisto, ele diz:
Pedro Pedrosa:
Se calhar já falou com o dono de cá, do que vendeu o terreno cá, hoje, mas eu também não sei. Eles não me disseram quem é vendeu o terreno.
Ficámos à conversa mais um bocado, mas fiquei eu com a pulga atrás da orelha. Queria sair dali porque tinha a certeza de que sabia qual era o terreno, mesmo sem nenhuma confirmação.
Parte VI – o terreno e o dono
“Estou em frente ao terreno onde vai ser. Há aqui uma placa, imediatamente do lado da placa que diz Bouça de Cá…”
Sigo para a casa mais próxima, que fica no cimo de uma pequena subida, 3 minutos a pé, a 250 metros. Mas nada. Toquei à campainha, bati às portas. Nada. Até que olho em volta e decido voltar ao Mini-mercado Soares, que estava mesmo ali, do outro lado da rua. A porta está fechada, mas há luz dentro. Toco à campainha.
Pedro: Venho cá chateá-lo outra vez…
Agostinho Soares: Diga lá, boa noite.
Pedro: Boa noite. É que, entretanto, andei aí a perguntar e penso que, disseram-me que o terreno, possivelmente, era aquele de canto que vai para a Bouça de Lá.
Agostinho Soares: : Ahhh
Pedro: Sabe de quem é esse terreno?
Agostinho Soares: É de um rapaz daqui perto, é de um rapaz aí.
Pedro: Como é que ele se chama, faz ideia?
Agostinho Soares: Mas por causa de quê, por causa?
Pedro: O tal do furo de gás?
Agostinho Soares: Ai é para um furo de gás, ali?
Pedro: Parece que sim. E eu queria falar com o dono anterior do terreno, para saber, pronto, o que é que lhe disseram, se lhe disseram para que é que era, se o informaram, quando é que o terreno foi vendido, essas coisas…
Agostinho Soares: Pois, pois, pois. Pois não sei, não sei o rapaz não está cá. Acho que não está cá agora, esse rapaz.
Estava pronto a desistir. Parecia que tinha chegado a um beco sem saída… Mas Agostinho – é este o nome do dono do Mini-Mercado Soares – estava interessado em saber mais.
Pedro: Ok, está bem. Pronto…
Agostinho Soares: Mas há gás aqui na zona, há gás, aqui há gás?
Pedro: No subsolo, lá debaixo da terra.
Agostinho Soares: Justifica aqui investigar nesta zona?
Pedro: Parece que sim, por isso é que compraram o terreno. Se for aquele, que eu penso.
Agostinho Soares: Pois, pois, pois…
Pedro: Eu queria era tentar perceber se tinham contactado alguém das casas aqui mais perto, ou tudo mais, para falar com, pronto, para confirmar, era isso. Já percebi que…
Agostinho Soares: Ah disseram-lhe que era esse terreno ali, você já ouvir falar?
Pedro: Disseram-me que podia ser aquele, não tinham bem a certeza. Porque eu também vi uma imagem num mapa e, pela pinta, porque é daquelas imagens de cima, de satélite…
Agostinho Soares: Claro, claro, claro.
Pedro: Imaginei que fosse aquele, mas não tenho a certeza.
Agostinho Soares: Exatamente, exatamente.
Pedro: E esse rapaz é daqui da Bajouca, faz ideia de onde é que ele é?
Agostinho Soares: Sim, sim, ele é daqui da zona, é de cá da zona.
Pedro: E sabe-me dizer o nome dele?
Agostinho Soares: Epá, mas ele não está cá agora, não está cá agora, atualmente.
Pedro: Mas tem cá família, ou não?
Agostinho Soares: Ele é emigrante, ele vem cá de vez em quando, agora não está cá. Não sei se ele vem cá pelo Natal, se não, não sei.
Pedro: Ok. Olhe então pronto, é isto.
E sempre que estava para me ir embora, mais uma pergunta.
Agostinho Soares: Mas a nível de, para a população, será prejudicial para nós aqui, não?!
Pedro: Isso eu não lhe sei dizer.
Agostinho Soares: Ah, ok.
Pedro: Isso é o que os estudos… Eles vão ter de fazer um estudo e vão avaliar essas coisas todas. Como é que é para o ambiente, para as águas, para o barulho.
Agostinho Soares: Pois, estou a ver…
Pedro: Para a flora, para a fauna, isso agora vai ter de ser tudo estudado. Eles aí é que hão-de dizer. Agostinho Soares: Pois, eles também não podem avançar sem ter…
Pedro: Pois claro, é isso.
Agostinho Soares: Sem que a Lei permita.
Pedro: É isso que eles têm que fazer agora. Tá muito bem…
Agostinho Soares: Mas você é para quê, para pedir conhecimento, para impedir?
Pedro: Não, não. Eu sou jornalista, não ‘tou aqui para impedir nada. Quero perceber qual é o processo: se já informaram as populações, se as pessoas sabem, como é que…
Agostinho Soares: Pois, em geral. Se o pessoal em geral tem conhecimento para que era.
Pedro: Se tem conhecimento e o que é que a empresa quer aqui fazer, não é, porque um projeto destes as pessoas têm direito de saber, não é?
Agostinho Soares: Claro.
Pedro: Pronto, é por causa disso.
Agostinho Soares: Ah quer dizer, consegui entrar em contacto com a empresa, com essa empresa consigo? Pedro: Esta manhã, tive com eles.
Agostinho Soares: Ah com essa empresa?
Pedro: Sim, sim.
Agostinho Soares: Ah eles é que lhe indicaram.
Pedro: Eles disseram e mostraram imagens aos jornalistas de cima, que era aqui na Bajouca. E, pela pinta, eu imaginei que fosse para aqui. Pensei: ‘bom, vou lá falar com as pessoas que moram perto do terreno para saber se já alguém falou com elas, se foram informadas, se não’.
Agostinho Soares: Pois eu ouvi dizer qualquer coisa, na altura do negócio, que isso que era para… Quer dizer, eles não explicavam bem para que era aquilo.
Pedro: Pois, era isso.
Agostinho Soares: Que era relacionado com o gás, tal, tal, tal, não sei quê, não sei que mais.
Pedro: Mas isso foi feito há quanto tempo, o negócio?
Agostinho Soares: Foi feito este ano, ainda.
Custou, mas foi. Afinal Agostinho sabia coisas. Muitas coisas.
Agostinho Soares: No Verão. Foi no verão, junho, julho, que o negócio foi fechado. E parece-me que aquilo que o rapaz me disse, que aquilo era, que lhe disseram que era para um estaleiro, ou para qualquer coisa relacionada com gás, nem sabemos bem o que era. Não lhe disseram bem para que é que. Quer dizer que iam fazer ainda um estudo para aquilo, para o que era. Foi o que o rapaz me disse. Que eles que…
Pedro: E têm de fazer.
Agostinho Soares: Um Estudo de Impacte Ambiental, não sei quê, não sei quanto e que seria estaleiro, seria… era relacionado com gás, relacionado com gás, mas não especificaram para o que é que era.
(…)
Agostinho Soares: Eu sei do negócio, sei como é que foi o negócio. Eles não explicaram bem para o que é que seria. Quer dizer, estava relacionado com isso, estava relacionado, mas não avançaram com…
Cliente: Boa noite.
Agostinho Soares: Olá, faz favor.
Pedro: Olá, boa noite.
Chegou uma cliente e interrompemos o assunto. Entrei no supermercado e fiquei à espera, queria saber mais. Faço conversa e volto rapidamente ao tema: “quem é o dono do terreno”.
Pedro: Já estou a ver que o senhor tem aqui de tudo. É uma loja que tem tudo: tem pregos, tem tripa para as chouriças…
Agostinho Soares: A ver se um gajo consegue ganhar para a sopa, pelo menos, que isto está complicado. Pedro: Há quanto tempo é que tem isto aqui aberto?
Agostinho Soares: Isto tem 25 anos.
Pedro: 25 anos?
Agostinho Soares: Sim.
Pedro: E toda a vida fez isto?
Agostinho Soares: Não, não, foi só quando vim para cá, foi só quando vim para cá.
Pedro: Ah veio para cá, não era de cá?
Agostinho Soares: Não. Era de cá, mas nessa altura é que abri o negócio, até lá não.
Pedro: Então, estava-me a dizer, esse rapaz, fez um bom negócio, então?
Agostinho Soares: Epá, vamos lá ver, a nível local, atualmente, para um preço normal de vender para um fim qualquer…
Pedro: Pois era isso. Eu estava aqui a ver aquela fotografia que tinha dito e são 6.800 metros.
Agostinho Soares: Deve ser.
Pedro: Mas quanto é que vale um terreno destes aqui, porque aquilo é um terreno agrícola, ou não?
Agostinho Soares: Sim é um terreno agrícola.
Pedro: A quanto é que está, custa um metro de terreno agrícola?
Agostinho Soares: Epá, aquilo depende… Hoje não há um preço de base, pode custar três euros, pode custar quatro, depende do interessado no assunto, é claro. Porque hoje em dia isto não há…
O terreno que a Australis comprou custou 1,5 por metro quadrado. Tem 6,8 hectares, 68 mil metros quadrados. Fica exatamente no mesmo sítio onde parei o carro, antes de vir falar com Agostinho, no cruzamento entre a Rua do Loural com a Rua de Bouça de Lá. Custou 85 mil euros. Mas na Bajouca ninguém sabia.
Ninguém, à exceção de Agostinho, que conhecia bem o antigo proprietário.
Agostinho Soares: Eu penso que ninguém, o pessoal aqui, a nível geral, ninguém sabe desse negócio.
Pedro: Não sabem que isto vai acontecer?
Agostinho Soares: Não, não sabem. Não sequer que o negócio está feito, tão pouco que o terreno foi vendido. Poucas pessoas sabem, ou quase nenhumas, que o terreno foi vendido.
Pedro: Porque em Aljubarrota já havia muita gente que sabia.
Agostinho Soares: Aqui, provavelmente, ninguém sabe que o negócio está feito. Se quiser eu digo-lhe que o terreno é meu, era meu.
Pedro: Era seu?
Agostinho Soares: Era meu, o terreno era meu.
Pedro: Ahh afinal…
Agostinho Soares: [Ri-se] O terreno era meu.
O terreno afinal não era de emigrante nenhum. E esse suposto emigrante não estava fora do país. Era mesmo de Agostinho, que há mais de meia hora me estava a dar baile.
A terra deixou de ser propriedade de Luís Agostinho Pedrosa Soares e da sua esposa, Maria Laura da Silva Gomes, no dia 23 de julho de 2018. A escritura foi assinada pelas 10h15 no escritório do solicitador Rui Coelho, sito na Travessa Central, n.º 93, num lugar chamado Arroteia, a 15 minutos de carro do mini-mercado Soares.
O negócio fez-se em dois momentos, como aconteceu com o terreno em Aljubarrota, uma tranche de 40 mil euros, paga a 18 de maio, e os restantes 45 mil euros no dia da escritura.
Por que razão, da primeira vez que entrei no mini-mercado de Agostinho e da esposa, Maria Laura, me disseram que não sabiam nada do assunto? Estariam deliberadamente a mentir-me?
Pedro: Então, mas não lhe disseram bem…
Agostinho Soares: Era relacionado com gás, não me disseram que iam fazer um furo de gás, não me disseram nada.
Pedro: Ai não sabia que era para um furo.
Agostinho Soares: Não, não me disseram que era para nenhum furo de gás. Disseram-me que era relacionado com gás.
Pedro: E quem é que veio cá, foi um advogado?
Agostinho Soares: Um advogado e um engenheiro, eram dois indivíduos.
Adivinhem? Quem tratou de tudo, como em Aljubarrota, foi Vasco Sande Taborda, o advogado da Australis, e Rui Machado, o responsável de campo. Lá, como aqui, não terão sido muito claros quanto ao fim a dar à terra.
Pedro: Está bem, então olhe, não o incomodo mais.
Agostinho Soares: Sim senhor.
Pedro: Obrigado pela sua ajuda, por ter falado comigo e um bom feriado.
Agostinho Soares: Esperemos que não seja prejudicial. Se for benéfico melhor, mas pelo menos que não seja prejudicial é o que interessa [ri-se].
Pedro: Pois, isso também já é bom, isso também já é bom…
(Correcção: diz-se que Rui Machado foi nomeado representante da Mohave Oil & Gas “entre novembro de 2013 e março de 2014”. Esta informação está parcialmente errada. O que aconteceu, em novembro de 2013, foi a publicação deste ato societário. Mas a nomeação para o cargo aconteceu a 15 de outubro desse ano. Foi corrigida esta informação no texto.)
(Nota: o que vais ouvir, ler ou ver foi produzido pela equipa do Fumaça, um projecto de jornalismo independente, e foi originalmente publicado em fumaca.pt.)