Porque os bons eventos não se medem pela fama

Porque os bons eventos não se medem pela fama

14 Maio, 2019 /

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O Creative Commons Global Summit é um evento com muito para nos ensinar. Por exemplo, nunca tínhamos visto um evento tão diverso. E essa diversidade não foi atingida com artifícios, como oferecer bilhetes a mulheres para equilibrar o género da audiência.

A poucos metros, a Ministra da Cultura, Graça Fonseca, e o Presidente da Câmara, Fernando Medina, cortavam a fita no Village Underground, a “vila” criativa de Lisboa que oficializava uma nova entrada para o seu espaço. Em contrapartida, nos corredores do Museu do Oriente não se via nenhuma presença institucional. Nenhum político foi ao “global summit” da Creative Commons (CC) que acontecia ali ao lado, pela primeira vez em Lisboa.

O Creative Commons Global Summit (ou apenas ‘CC Global Summit’) não é um evento de massas, tal como o Village Underground não é um projecto que abranja toda a cidade ou todo o país. A questão aqui não é se Graça e Medina deveriam ou não ter ido à inauguração da extensão do Village Underground; é onde está o acolhimento político de certames como o CC Global Summit, onde a discussão se dá em profundidade sobre temas tão actuais e caros aos políticos como os direitos de autor – houve várias sessões dedicadas à polémica Directiva Europeia de direitos de autor.

Porque é que Medina e Costa abrem o palco do Web Summit (e negoceiam um acordo secreto para a manutenção do evento irlandês na capital portuguesa), mas ignoram o CC Global Summit? Ou o Trojan Horse Was A Unicorn, que sentindo falta de apreço tomou a decisão de sair de Tróia e mudar-se de Malta? Ou o Landing Festival, que apesar do seu contributo numa escala inferior ao do ‘summit’ de Paddy Cosgrave captou talento tecnológico para se fixar em Lisboa? Ou o UXLx?

É inegável o impacto do Web Summit na economia lisboeta e, por contágio, na nacional – levou o nome do país além fronteiras, com consequências aparentes no turismo e também na fixação de empresas cá. Afinal, o “I love Lisbon, this is like work and holidays at the same time” que ouvimos à entrada do CC Global Summit, numa conversa informal entre dois participantes estrangeiros, não é por acaso; provavelmente, até o CC Global Summit veio parar a Lisboa indirectamente por causa do Web Summit. Mas tal não justifica que só o Web Summit receba o carinho e atenção da classe política e da comunicação social, que lá monta grandes redacções para reportar o aparato.

No CC Global Summit não se viu (ou melhor, nós não vimos) imprensa portuguesa além do Shifter e do TEK Sapo. A mesma comunicação social que nos dias do Web Summit encaixa a tecnologia na sua agenda editorial não está presente num evento sobre um dos lados mais importantes da tecnologia: o da partilha. Afinal, Creative Commons tem tudo a ver com partilha. É o nome de uma organização sem fins lucrativos fundada em 2001 e também o nome das licenças que lançou no ano seguinte e que permitem a criadores de conteúdo (fotógrafos, ilustradores, designers, artistas, músicos, ensaístas, romancistas, cinematógrafos…) serem donos dos seus direitos de autor em vez de os entregar a uma entidade privada como a SPA; atribuindo uma licença Creative Commons a um trabalho seu, podem escolher como outros o podem utilizar – se podem repartilhá-lo, se podem fazer dinheiro com ele, se podem remisturá-lo, etc.

O Creative Commons significa direitos de autor nas mãos dos autores, significa também partilha. Fotos licenciadas com CC são fotos que podem ser usadas para ilustrar uma publicação num blogue ou um relatório de uma empresa, desde que seja feita a devida atribuição ao autor – nos casos em que isso é exigido. Músicas CC são músicas que podem ser passadas numa estação de rádio ou usadas num vídeo no YouTube, com a devida atribuição. Uma ilustração CC, com autorização de remistura, é uma ilustração que pode ser cortada aos bocados e utilizada para fazer outro trabalho criativo qualquer.

Este espírito de partilha vive-se no CC Global Summit, e é uma das muitas coisas que o evento nos pode ensinar. Ao invés de tecnologia proprietária e dos anúncios megalómanos, muito falados no Web Summit, o CC Global Summit é sobre tecnologia colaborativa e formas de estar online. Muitas das palestras anunciadas no programa de dois dias eram em boa verdade oficinas de trabalho, onde os participantes podiam dar ideias, aprender algo relacionado com Creative Commons ou participar em projectos de co-criação como o proposto por Juliana Castro para a redacção colaborativa de um manifesto sobre open design.

Mais do que absorver conhecimento genérico e unidireccionalmente, este “global summit” serviu para criar ou aprender a criar, ajudar projectos de outros, descobrir novas iniciativas, tirar dúvidas, partilhar experiências e levantar dúvidas… De repente, uma sessão de dois advogados alemães sobre como com atribuir créditos e escrever uma licença CC transformou-se num brainstorming conjunto, em que um advogado grego, um português a trabalhar na Comissão Europeia e uma escritora norte-americana puderam partilhar as suas experiências e preocupações.

Noutra sessão, Rute Correia, autora, (colaboradora esporádica do Shifter) e apresentadora do podcast White Market, todo ele disponível em CC, e Darksunn, produtor e responsável da editora Monster Jinx, que edita música em CC, apresentaram o Open Music Network, deixando perguntas a quem os ouvia: deveremos ser uma rede ou uma aliança? O que é que podemos fazer? Ser uma lista de contactos apenas ou oferecer serviços também? O projecto está no início – Rute e Darksunn sabem que querem juntar música disponível de forma aberta e livre, juntar as pessoas que a fazem e promover a colaboração; mas não definiram ainda tudo ao detalhe e aproveitaram o certame para perceber o que faz mais sentido para a comunidade. Da audiência ouviram propostas e ideias, como a sugestão de criação um serviço de streaming de música onde pudesse estar toda a música feita e disponibilizada em CC?

O CC Global Summit é um evento com muito para nos ensinar. É um evento onde se respira. No auditório, sempre pouco cheio – porque as pessoas estão dispersas pelas várias sessões que ocorrem em simultâneo, em salas diferentes –, dava para, num ambiente bastante calmo, conhecer sucintamente projectos relacionados com CC, discutir open design e também apresentar sugestões às inquietações dos oradores.

Havia oradores portugueses, mas nunca tínhamos visto um evento tão diverso quanto este CC Global Summit. Não falamos apenas sobre igualdade de género, mas também cultural. Portugueses lá não eram muitos entre os cerca de 400 participantes; havia gregos, alemães, franceses, espanhóis, ingleses, norte-americanos, brasileiros… havia católicos, protestantes, muçulmanos, islâmicos, budistas… (Aliás, a organização teve a atenção de reservar uma sala para oração.) E a melhor parte é que essa diversidade não foi atingida com artifícios, como oferecer bilhetes a mulheres para equilibrar o género da audiência, mas antes com uma programação diversa onde a inclusão digital era um vector que se fazia sentir. Houve programação sobre redes sociais na China, sobre Open Maps na Palestina ou sobre o panorama de direitos de autor no Bangladesh.

O CC Global Summit estava muito bem organizado, pelo menos aos olhos de quem o visitava. O segredo foi a atenção ao detalhe. Logo à entrada, havia autocolantes com pronomes she, he, they ou ze para a comunidade LGBTQ+ se sentir incluída; nas casas-de-banho também havia uma nota sobre “escolher a casa-de-banho que melhor serve a tua identidade”. À entrada também, no processo de registo, havia autocolantes vermelhos para quem não quisesse ser fotografado.

Em resumo, parecia estar tudo pensado para que os visitantes não precisassem de se preocupar com absolutamente mais nada para além das difíceis decisões entre as palestras que iam acontecendo em simultâneo. O bilhete dava não só acesso aos momentos de aprendizagem como ao almoço e a sessões de descompressão (yoga de manhã, duas festas à noite). Os oradores não se fechavam em salas VIPs onde só acediam os grandes media e a zona de imprensa não era a única a merecer comida e bebida à descrição – não havia zona de imprensa sequer. Em vez disso e no decurso do espírito da partilha, todos os espaços se iam reinventando, ao acesso e à disposição de cada um; as ideias merecedoras de talks eram efectivamente expostas nos halls de passagem; quem fazia questões numa apresentação era quem liderava a seguinte e nem nas credenciais havia qualquer tipo de discriminação.

Fotos de Sebastiaan ter Burg via Flickr (CC BY 2.0)

Autor:
14 Maio, 2019

Jornalista no Shifter. Escreve sobre a transição das cidades e a digitalização da sociedade. Co-fundador do projecto. Twitter: @mruiandre

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