Para uns um herói, para outros um traidor, Julian Assange é uma das figuras centrais da organização mundial. Sem um cargo institucional de relevo, fortuna que o faça figurar na lista dos mais poderosos financeiramente ou presença num Governo de uma das grandes potencias mundiais, Assange é um dos raros casos no panorama actual de conquista de poder pela via da subversão, neste caso informática. Hacker desde jovem, ganhou o estatuto de que agora acaba por ser vítima quando em 2006 criou a plataforma de divulgação de documentos confidenciais Wikileaks: antes, já a sua vida revelara a sua personalidade sui-generis e ideias fortes que punha em prática graças a um conhecimento teórico e uma inteligência prática acima da média.
A cara do asilado e as mudanças em sete anos de confinamento às quatro paredes da Embaixada do Equador em Londres todos conhecemos, mas sobre o seu passado e as ideias que o motivaram a posicionar-se desde modo pouco se explora. O seu carácter activista e polarizador leva-o a aparecer quase sempre retratado como um elemento marginal, com uma retórica política vincada ou em entrevistas demasiado focadas para que consigamos formar uma ideia geral sobre o homem e perceber o que quer com a sua acção. Aqui revisitaremos uma das excepções que acentuam essa regra, a entrevista que Julian Assange deu ao curador Hans Ulrich Obrist, publicada no jornal E-Flux.
A entrevista é extensa e divide-se em duas partes. Na primeira, Obrist procura conhecer melhor o australiano que à data já era um dos homens mais influentes do panorama internacional; na segunda, o curador dá espaço para que oito artistas assumam o papel do entrevistador; o resultado é uma exaustiva viagem pelo ideário de Julian, na qual conseguimos descortinar a forma como este vê desde os conceitos mais básicos como comportamento civilizado até à organização do poder nas sociedades modernas. É esse carácter particular, simultaneamente denso e intenso, do diálogo que o torna tão valioso e resistente à passagem dos anos. Nesta conversa, não há pressão de tempo, de espaço ou a força coerciva de interesses externos; Obrist vai dando o mote e Assange correspondendo naturalmente, como se mais do que uma entrevista procurasse na conversa expor a sua vida – o curador tem nas entrevistas um dos pontos mais fortes do seu trabalho. Neste texto, acrescentaremos factos, links, curiosidades e detalhes que aportem valor biográfico e ajudem a construir à distância uma imagem mais aproximada do homem.
O encontro foi no dia 27 de Fevereiro de 2011, antes do veredicto que levara o activista a procurar asilo na embaixada equatoriana, na Jaula Dourada (Golden Cage), como Assange apelidava a casa – Ellingham Hall, uma mansão ainda hoje disponível para casamentos e outros eventos do género – que Vaughan Smith, ex-oficial do exército britânico, fundador do Frontline Club, jornalista de investigação freelancer, lhe cedera para sua residência durante as audições.
Quem foi e quem é Assange?
Obrist quis saber como tudo começou, Assange começou a história pelo verdadeiro princípio a sua infância. Nasceu nos anos 1970, na Austrália, filho de dois dos membros de um grupo de teatro itinerante. Recorda a sua infância como clássica apesar de, pela ocupação dos seus pais, ter vivido em mais de 50 cidades e frequentado 37 escolas diferentes. Fala de uma juventude passada a montar a cavalo, explorar caves, pescar e andar de mota, “como o Tom Sawyer”. Foi com a mãe, com quem passou grande parte da adolescência depois da separação dos seus pais, que Assange teve um dos primeiros contactos com a política e o poder de que se recorda. Depois de uma manifestação contra as armas nucleares perto de uma antiga zona de testes nucleares do exército britânico, o carro onde seguia foi mandado parar por um polícia à paisana que terá dito à sua mãe para se manter longe da política. Passaram poucos anos até ser Julian a envolver-se nos seus sistemas.
Depois dos primeiros anos passados na exploração da natureza, muito cedo Assange se dedicou à exploração da informática. Aos 15 anos já quebrava sistemas de encriptação que impediam a partilha de software e, aos 17, segundo confessa, já entrava nas profundezas dos sistemas da NASA e do Pentágono. Corria o ano de 1988 quando Assange com alguns amigos que conhecera online criara o movimento centrado numa zine, International Subervices, de partilha de informação e metodologia de hacking. O movimento acabaria três anos depois com uma mega operação da polícia australiana e o seu primeiro caso em tribunal. Entretanto, Assange criara um serviço de internet gratuito, chamado Suburbia Public Access Network, mesmo antes de a internet surgir comercialmente.
Pela inovação no tipo de crime, demorou algum tempo até o caso dos International Subversives chegar a julgamento; quando chegou, as piores previsões sugeriam 10 anos de cadeia. Tudo acabou por correr a favor de Assange. “Não há evidências de que houvesse algo além de alguma curiosidade inteligente e o prazer de poder – qual é a expressão – surfar através desses vários computadores?”, foram as palavras do juiz que o condenou a um pequeno pagamento ao Governo australiano pelos danos causados.
As histórias do tempo de hacking seriam contadas anos mais tarde, 1997, no livro Underground: Tales of Hacking, Madness, and Obsession, escrito pela investigadora Suelette Dreyfus com auxílio do próprio Assange. No livro, são relatadas as aventuras de um grupo de hackers de elite da Austrália, Reino Unido e Estados Unidos que explorava o submundo da rede antes de a internet surgir, no final dos anos 1980 — entre eles estava Mendax, hacker de Melbourne que mais tarde se percebera ser Julian. É também neste livro que se expõe numa das primeiras vezes as regras de ouro da subcultura hacker de então: não danificar os computadores que infiltrar (nem fazê-los crashar); não modificar a informação desses sistemas (excepto os logs para cobrir pistas); partilhar informação.
Durante todo este período, a operação policial continuava a revelar outro efeito secundário. Daniel, o filho de Assange, nascido em 1989, foi alvo de uma disputa em tribunal entre Julian e a sua ex-mulher, Teresa. O caso durou cerca de 10 anos e terá abalado emocionalmente Julian, que, entretanto, procurava outros desafios intelectuais que o mantivessem distante do hacking por deliberação juidical. Este é o período com menos pontos biográficos de Julian Assange, mas um dos que parecem ter deixado mais marcas. Na década de 1990, Julian Assange ingressara no curso de Física na Universidade de Melbourne e foi, nessa altura, até por força da idade, que começou a maturar o seu pensamento e a definir as suas convicções.
As ideias de Assange
É do mundo da Física que parecem emergir as suas maiores referências intelectuais. Na entrevista com Obrist, começa por explicar a sua relação intelectual com físicos como Werner Heisenberg e Niels Bohr. Assange não a descreve como assimétrica, falando do intelectual rapport que o liga a ambos autores, isto é, uma certa identificação na forma de pensar – o sentimento que de leitor e autor pensam da mesma maneira. Bohr, numa primeira fase, e Heisenberg, posteriormente, são dois nomes mais importantes na formulação das ideias hoje conhecidas como mecânica quântica – uma teoria disruptiva da física clássica que marcou um novo capítulo das ciências, influenciando áreas distintas como a filosofia. Heisenberg publicou em 1959, Physik und Philosophie, um livro em que ensaia as implicações filosóficas da sua proposta. É esta relação que parece atrair Assange.
“A mecânica quântica e as suas evoluções modernas deixaram-me com a teoria da mudança e como perceber apropriadamente como uma coisa causa outra. O meu interesse estava em reverter este processo de pensamento e adaptá-lo a outras realidades.” É a partir desta base teórica que Assange começa a desenvolver as suas ideias como explica oportunamente. Com os óculos da ciência via o mundo de outra forma, como um encadear de acções e consequências fluídas e com um grau de incerteza. “Desenvolvi uma analogia para explicar com a informação flui à volta do mundo para causar determinadas acções. Se desejamos um outro estado para o mundo que é mais justo, a questão é: que tipo de acções produzem um mundo mais justo? Que tipo de fluxo de informação leva a essas acções? E depois, de onde vêm esses fluxos?”
A informação acessível no mundo é um dos pontos mais recorrentes do pensamento de Julian e é a partir daqui que diz ter desenvolvido uma analogia onde já se vislumbram os princípios da sua grande criação, a Wikileaks. Assange fomenta a sua ideia no pressuposto de que não há informação suficiente no mundo para que realmente o compreendamos.
Para o activista, existem três tipos de história. O primeiro tipo tem a ver com o conhecimento dos processos, como fazer uma bomba de água ou um sistema de canalização, e mantém-se disponível graças ao seu interesse económico. O segundo são, por exemplo, os livros, que podem deixar de ser editados fazendo escassear a informação neles contida. O terceiro é, claro está, aquele com que mais preocupa – a informação que está a ser voluntariamente escondida, que interessa esconder. Assange faz da informação a sua principal causa pela consideração de que um mundo mais civilizado se faz de compreensão mútua e que só conhecendo o máximo possível podemos atingir esse estatuto.
Foi também neste período, durante a década de 1990, que Julian Assange se começou a envolver com o grupo sobre o qual escreveria anos mais tarde em 2012, os Cypherpunks. Com membros de várias partes do mundo, este grupo/movimento ficou conhecido por avanços em disciplinas como a criptografia e aplicações desta online. Foi lá que sugiram, por exemplo, os primeiros esboços de criptomoedas. Foi nessa altura que Julian Assange começou a ver na criptografia uma solução para tornar resolver o conflito entre os indivíduos e o estado — proteger criptograficamente a informação pode torná-la impossível de corromper, um dos maiores perigos dos nossos tempos segundo Assange.
De resto, é esta dicotomia, entre indivíduo e instituição, a mais comum em Assange, ao contrário do expectável esquerda/direita. Julian, durante a entrevista, também recusa a ideia de ter uma posição política, redirecrionando-a para falar sobre temperamento político que no seu caso diz oscilar entre o libertarianismo e a compreensão. Diz que é desta mistura que resulta a vontade de querer entender o poder e os seus pontos frágeis onde deixa de exercer o seu poder abusivo. Para além deste temperamento, acrescenta outras ideias que diz ter desenvolvido ao longo dos anos de prática. A primeira era que os mercados livres podem ser distorcidos por fenómenos económicos; na segunda, uma das mais se associa a si, Assange fala da rede do patronato, para se referir ao grupo de pessoas que num determinado estado controlam o poder e que pode assumir diversas formas como o complexo da indústria militar ou os conglomerados da alta finança.
Questionado sobre se o seu posicionamento político poderia estar relacionado com o anarquismo, Assange diz que não; que enquanto a tradição anarquista se desenvolve em torno de figuras como Proudhon e Peter Kropotkin, a sua definição política tende mais para nomes como Aleksandr Solzhenitsyn, um escritor russo muito crítico do regime do seu tempo galardoado com o Nobel em 1970 e grupos como os americanos Black Panthers. De resto, numa nota anterior da mesma conversa, Assange falara de uma certa esperança nos regimes abertamente ditatoriais como o Chinês por, pelo menos, darem aos cidadãos a noção de que estão a ser controlados obrigando-os a uma prática diária mais politizada, ao contrário do que acontece actualmente, por exemplo, na maioria dos países da Europa e nos Estados Unidos da América onde um certo conformismo se instalou sobre a manta da normalidade.
Nos anos 2000, Assange continuava activo e empenhado no desenvolvimento e aplicação das suas ideias – quer do ponto de vista teórico quer prático. Nesses anos publicava num blogue alguns textos que sustentam a visão do mundo que as suas palavras mencionam, questionava regras simples de comunicação, apelava à importância do conhecimento e alertava para a injustiça dos estados e do estado do capitalismo. Terá sido em isolamento, com um grupo restrito de colegas, que terá conceptualizado e posto em prática não só a máquina, como a ideia do Wikileaks. Inspirava-se em Nicolás Bourbaki, o pseudónimo colectivo do grupo de matemáticos franceses para salvaguardar a sua identidade, mas por ser demasiado próximo da causa e demasiado conhecido no meio acabou por se ver forçado a revelar quem realmente era — num exercício de transparência revelador de que Assange não deseja para si menos (transparência) do que para os outros.
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