O título é provocador e sou tentado a esclarecer que não é minha intenção manifestar uma opinião. Mas, como disse um professor nos tempos de faculdade: “o jornalismo é a arte de ser subjectivo sempre na certeza que não o vamos ser”. Assim, mesmo tentando fugir a juízos de valor, é natural que este artigo acabe por, de uma forma ou de outra, manifestar (in)conscientemente uma opinião que deixo já aqui: acredito que R. Kelly fez coisas ilegais e isto não é de todo chocante pois é uma ideia generalizada. Os que vêm em sua defesa apontam para o génio musical ou para uma ou outra incongruência na forma como a sua história de abusos sexuais tem vindo a ser contada. Independentemente desta introdução, o foco é uma análise à discografia de R. Kelly que funciona como uma espécie de diário do artista, de 1993 a 2018.
Escusado será dizer que este texto surge na sequência de Surviving R. Kelly, que, na sequência da investigação Buzzfeed, uma espécie de momento Bill Crosby, mas que é, em vez de uma piada, uma investigação a sério. O documentário percorre 25 anos de acusações de abuso sexual de maiores e menores. Visto que o objetivo não é contar a história do escândalo de uma ponta à outra, o que não impede que contemos parte das mesma por ser impossível dissociar deste ou daquele disco, eis uma timeline do mesmo para quem tiver uma noção do que está aqui em jogo. Seguindo o sentido contrário ao do movimento que pretende “calar” R. Kelly, o apropriadamente chamado de #MuteRKelly, fomos ouvir os 13 discos, o 1.º álbum a solo de Aallyah e a canção que o músico entregou a Michael Jackson.
“12 Play”, R. Kelly, 1993
12 Play será o disco menos condicionado de R. Kelly e por isso o mais genuíno. Por ser o primeiro e por não viver na sombra de acusações de abuso sexual no currículo. Apresenta 12 canções hiper-sexualizadas, cartão de visita para algo que será transversal a grande parte da discografia. Tudo começa na capa do disco, uma bengala com um espelho atrelado, instrumento que terá como objetivo olhar para as zonas mais íntimas, por baixo de saias. A própria bengala parece simular um pénis. As metáforas sexuais, com R. Kelly, são múltiplas. Se é verdade que o R&B tem uma conotação extremamente sexual, Kelly levou-o ao extremo. Essa ideia tem sido reiterada frequentemente nos textos de análise aos discos. Há o R&B e inerente lascívia e há R. Kelly.
“One of the things about R. Kelly, not unlike Woody Allen, is that he’s hiding in plain sight” (Dream Hampton, produtora executiva de Surviving R. Kelly à Noisey)
Corroborando essa teoria, a própria Hampton acrescenta que “It Seems Like You’re Read”, por exemplo, “revelam um homem a exibir os seus instintos de predador”. Nessa canção, e tendo em conta as acusações de pronografia infantil, há uma frase que tem criado algum frisson: “Oh, oh, your body is my playground, let me lick you up and down”.
Mais à frente: “My mind is telling me no / But my body, my body’s telling me yes / Baby, I don’t want to hurt nobody / But there is something that I must confess to you… I don’t see nothing wrong with a little bump and grind / With a little bump and grind” (“Bump and Grind”). O sentimento de culpa no arranque de “Bump and Grind” também tem gerado desconfiança e até algumas anotações eventualmente precipitadas no Genius. Mais à frente há um momento que parece esclarecer que esse sentimento de culpa não é tanto em relação à idade dela, mas sim a uma eventual traição: “You say he’s not treating you right, then, lady, spend the night”.
À 6.ª canção, “I Like the Crotch on You”, deixa a mais explicita, bizarra e auto-explicativa frase do disco: “Oh, you’re gonna want to freak me, freak me, only if you’re old enough, baby 18 and over or 16 and under.”
Aaliyah, com 14 anos, surge no vídeo do remix a “Summer Bunnies”. O single é editado poucos dias antes da data do casamento ilegal entre a miúda, então com 15 anos, e R. Kelly, com 27.
Na faixa-título, R. Kelly oferece o primeiro de vários momentos bizarros de carreira que vão desta “12 Play” a “Trapped in the Closet” e “I Admit”. Um gráfico manual sexual em 12 passos, criado nos concertos de abertura para Gerald Levert e Glenn Jones, com o objectivo de chamar a atenção do alienado público:
- We’ll go to my room of fun
- Then I’ll say give me your tongue
- Cause tonight I’m gonna fulfill your fantasies, yes
- Lie down on the floor
- Cannot wait to come inside
- Anything that’s broken, I’ll fix
- Spread your legs apart
- Feel me, I’m so hard
- See I want you from behind (slip the bump and grind yes)
- Baby climb on top of me
- Up and down we’ll go you’ll see
- And that’s when I’ll go down on my knees
“Age is Nothing But a Number”, Aaliyah, 1994
Poucos meses antes do infame casamento, R. Kelly produz, colabora, enfim, tem um papel fundamental na estreia de Aaliyah, “Age is Nothing But a Number”, disco que conta com outra “miúda” Tiffany “Tia” Hawkins, ela que em 1996 haveria de processar o cantor na sequência de alegadas relações sexuais quando tinha 15 anos.
A importância de R. Kelly no álbum vai ao ponto de surgir na capa, embora desfocado. Aliás, a imagem de Kelly surge sempre de forma misteriosa: o vídeo de “Back and Forth” abre com a sua silhueta e com um “afundanço” filmado pelas costas, embora mais tarde surja de forma clara. A temática do álbum é debatida no documentário, mas a ideia que daí sai é de uma miúda a quem a diferença de idades para com o companheiro não importa. Essa ideia “só” está explicita no tema título.
“You’re Not Alone”, Michael Jackson, 1995
O último n.º 1 de Michael Jackson, a 1.ª canção a estrear no 1.º lugar do Top 100 da Billboard surge aqui porque Lizzette Martinez, uma das mulheres que se chegou à frente em Surviving R. Kelly, decidiu revelar algo novo em relação ao clássico que R. Kelly escreveu para MJ. Ela terá conhecido o músico quando tinha 17 anos e ficado grávida numa altura em que estava no ensino secundário. A canção, segundo Martinez, é sobre a perda do bebé, após um o aborto espontâneo.
“R. Kelly”, R. Kelly, 1995
Jesus, Deus, Amen. A intro chama-se “Intro – The Sermon” e começa assim: “Before I start, I just wanna get a few things off my chest, you see, being in the business that I am in, looks like everything I do, everywhere I go, and everything I see Seems to be through some kind of magnifying glass”. Ao segundo álbum, R. Kelly já sente a pressão dos media e, como consequência ou não, dá uma volta de 180º lírica e musicalmente. O nível de introspeção lançou algumas suspeitas de calculismo. Este homónimo surge imediatamente após o escândalo do casamento com Aaliyah e aquela intro mostra que Kelly não está imune ao que se passou. Essas larachas atiradas ao que chama de “haters” também são transversais à sua discografia.
“I Believe I Can Fly”, R. Kelly, 1996
O ano abriu com o processo imposto por Tiffany “Tia” Hawkins, entretanto resolvido longe dos tribunais e acabou com “I Believe I Can Fly”, clássico que colocou R. Kelly a tocar nas igrejas e festas de graduação. A par de “Ignition” estão aqui as duas canções maiores do músico e representam na perfeição a esquizofrenia do seu catálogo, uma canção quase gospel, outra de teor altamente sexual. A canção de Space Jam terá feito muito pela opinião pública em relação à reputação do homem, daí estar aqui. O documentário realça esta capacidade de Kelly intervalar canções sexuais com momentos espirituais.
“R”, R. Kelly, 1998
Ao 3.º disco, um regresso à temática do 1.º, mas em registo duplo. Até a capa cita a da estreia, transformando-a em silhueta. Em “Don’t Put Me Out”: “Now I remember when we used the crib in Studio 12A Clothes and pallets on the floor making sweet love night till day”. No documentário, o produtor Craig Williams descreve o ambiente no estúdio como “bizarro, com uma jovem a ser encaminhada para o lounge, enquanto outra seguia para uma cama no meio do estúdio”. O estúdio é tido como elemento central na denúncia de vários abusos sexuais com menores.
“I’m sick and tired of the games you played, every move I make your ass got something to say scandalize my name when you see it in the paper trying to turn it all around when it wasn’t that way, everybody is trying to figure me out, what the hell is wrong with y’all just let me live my life, I can’t go one day without y’all in my face, y’all done lost y’all minds if you don’t hear what I say, cops chase me when I’m standing still.” Estamos em “What I Feel / Issues” e Kelly volta a atirar-se aquilo que chama de “haters” e a abordar as temáticas de abuso sexual, defendendo-se.
“TP2.com”, R. Kelly, 2000:
TP2.com vai bater com o momento em que o Chicago Sun-Times, através de Jim Derogatis, que se tornou especialista em R. Kelly, denunciou vários casos de abuso sexual. Como o próprio título indica, a nível temático é o secessor direto de 12 Play, mas com ligeiras mudanças de direção em temas como “I Wish” e “I Mean (I Don’t Mean It)” que apontam mais para a redenção.
“Chocolate Factory”, R. Kelly, 2003
Como se pode ver, R. Kelly não tem feito muito pela sua imagem ao longo dos anos. A forma como se expõe nas suas canções, com vários momentos menos felizes, é inquestionável, independentemente do que fez ou não fez. Chocolate Factory é apenas mais um questionável título que pouco interessaria não estivessemos na ressaca de mais uma acusação, desta feita devido a um vídeo em que o músico surge a ter relações sexuais com uma menor, talvez o caso mais mediático. É também por esta altura que se auto-denomina de Pied Piper do R&B.
Em relação à personagem do conto, o músico haveria de revelar, anos mais tarde, a sua ignorância, referindo que se auto-denominou assim por ter acrescentado o som de flautas na sua música. Também a nível musical, o disco mostra-se esquizofrénico: por um lado há gospel e soul em quase todo o registo, por outro há “Ignition”, a mais celebrada metáfora sexual que R. Kelly criou e Dave Chapelle adaptou. Em “What Do I Do” ainda cita a bíblia (Provérbios 18:22). É o registo mais assombrado pelos escandalos: a BBC destacou a infelicidade do título do disco, a Rolling Stone preferiu destacar o “Anything you want/You just come to daddy” que surge logo a abrir o álbum, com a faixa-titulo.
“Happy People / You Saved Me”, R. Kelly, 2004
Se com Chocolate Factory não tinham percebido que o velho R. Kelly estava guardado, o músico decide lançar um disco soul-gospel puro e duro.
“TP3”, R. Kelly, 2005
Já sabem, tudo o que é TP significa um regresso à temática sexual. Porque manteve a temática sexual, mesmo após acusação, dando a ideia que seria intocável? Numa grande entrevista à GQ respondeu: “I maintained my innocence, why would I run under a rock? Why wouldn’t I just do what I do? It’s what I’ve always done.” Infelizmente, Chris Heath não o questiona em relação aos discos mais gospel que seguiram grandes escandalos, mas do que fomos lendo aqui e ali, Kelly defende-os dizendo que sempre quis ser diferente, mudando radicalmente de disco para disco. Em TP3 regressa então à temática sexual, com destaque para as acusações de misoginia em “Sex in the Kitchen”. E na (mais uma vez) bizarra capa, está a olhar para o próprio pénis ereto? É a Slant Magazine que o sugere. O caso continuava a arrastar-se nos tribunais e este será o disco com mais “Sex” no título das canções. A cereja no topo do bolo (um bolo bizarro, é certo) é o arranque da ópera “Trapped in a Closet”.
“Double Up”, R. Kelly, 2007
Mais do mesmo: sexo, mulheres, chulos, metáforas sexuais. Em “The Champ” volta a responder aos “haters”, ou seja, a quem o acusou, e em “Sweet Tooth” tem a tirada mais questionável do registo e que, mais uma vez, pouco faz pela sua reputação: “When I saw you at the club girl leaning and rocking with it, you made a nigga wanna giggle with it, let me put in the back of the coupe and hit it, and now all I wanna do is babysit it.”
“Untitled”, R. Kelly, 2009
Era para se chamar 12 Play: 4th Quarter e por aí percebe-se a temática. É o primeiro álbum após absolvição e da entrevista concedida à BET, com a mais intrigante de todas as respostas. Intocável, R. Kelly continua a ser acusado de misoginia, até porque “Go Low”, por exemplo, vai assim: “When I see something I like, I’m gonna keep it real. for instance you look like food, I wanna put you on my plate”. É o mais monotemático dos discos, excepção feita a “Religious” que parece carta fora do baralho. A grande diferença em relação a alguns registos anteriores que têm a temática sexual como principal é que aqui é que as canções são todas para dançar. É o disco de R. Kelly com críticas mais negativas de sempre.
“Love Letter”, R. Kelly, 2010 e “Write Me Back”, R. Kelly, 2012
Love Letter tem uma capa muito Ray Charles, música muito soul das décadas de 60 e 70. R. Kelly volta a mudar, desta vez para agradecer a quem o apoiou.
Write Me Back era para ser o Black Panties, mas o regresso à linguagem sexual ficou adiado e manteve-se na linha de Love Letter. Dois discos sem grande história.
“Black Panties”, R. Kelly, 2013
Aí está, segundo o próprio, o regresso à temática de 12 Play, oito anos depois. A capa é tão explícita quanto possível: o próprio rodeado de mulheres e o som mais contemporâneo. Numa altura em que as letras já não se desviam daquilo que dele conhecemos, o vídeo de “Cookie” é o grande acontecimento do álbum: mostra uma data de empregadas (escravas?) que rodeiam R. Kelly (o chulo?).
“Buffet”, 2015
Era para se chamar White Panties, mas acabou por usar a culinária como metáfora sexual que atravessa todo o disco. Ainda assim, é um disco menos explicito, mas com um momento bizarro logo a abrir, em que sorve qualquer coisa enquanto diz declama (!?) “The Poem”.
Depois de Buffet, Kelly só voltou a editar um álbum de Natal e lançou uma inacreditável “I Admit”, em que percorre toda a carreira, de 1993 a 2018. A gestão de carreira de R. Kelly é um mistério, a forma como equlibra discos extremamente sexuais com temas gospel levou-o a comparações com Marvin Gaye e Prince. Enumera fantasias enquanto procura salvação espiritual. Haverá uma verdadeira face? Será esta uma luta interior? R. Kelly deixa mais perguntas que respostas, embora não existam dúvidas que fez coisas questionáveis.
Os argumentos em sua defesa resumem-se ao génio musical e a absolvição em 2008 prende-se com a não identificação da jovem com quem manteve relações sexuais. Numa entrevista à GQ disponibilizou-se a falar sobre tudo, noutra ao HuffPost decidiu sair a meio. Em 2019, com o #MeToo, o #TimesUp e até o #BlackLivesMatter, o cerco tem vindo a apertar. O #MuteRKelly já cancelou concertos, desvincolou-o da RCA Records e o Spotify não só retirou-o das playlists como criou uma funcionalidade que permite bloquear um artista.
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Texto de Pedro Arnaut