“Portugal ultrapassou a Rússia no consumo de álcool”. Este título de uma notícia aparece em destaque na comunidade portuguesa do Reddit, com mais de 230 upvotes na respectiva publicação; nos comentários há uma série de piadas ligeiras sobre o aparente ‘recorde’ português. Mas será um recorde? Como se diz pela internet hold my beer (segura a minha cerveja) enquanto explico.
O assunto é bem sério. A Organização Mundial de Saúde (OMS) divulgou um relatório sobre o impacto do álcool na saúde humana mundial; o documento inclui uma lista do consumo per capita em vários países, recorrendo a dados de 2016, os mais recentes. Assim, de acordo com a OMS, em média, cada português consome 12,3 litros por ano, ao passo que cada russo bebe 11,7 litros por ano. A média da zona europeia situa-se nos 9,8 litros por ano e baixou relativamente a 2010. Na Europa está a beber-se menos álcool; Portugal também diminuiu o seu consumo (que há seis anos era de 13,5 litros por ano), assim como a Rússia – só que os russos diminuíram mais que os portugueses.
Assim, apesar de o consumo per capita ter baixado nos dois países, como a diminuição na Rússia foi superior à que se deu em Portugal é possível dizer que “Portugal ultrapassou a Rússia no consumo de álcool”; contudo, tal conclusão, puxada para headline pode não ser a interpretação mais correcta dado o contexto. Dizer que Portugal ultrapassou a Rússia pode ser interpretado como um sinal de que por cá o consumo aumentou enquanto que por lá diminuiu, o que como já vimos não aconteceu; pode também ser lido como um tom vitorioso, dado o estereótipo de consumo de álcool (leia-se vodka) que costuma ser associado à população russa. Mas o caso é bem mais pedagógico.
No documento da OMS, divulgado em Setembro do ano passado, a Rússia é assinalada como um exemplo pela sua política ao longo dos anos anti-álcool, desde restrições à venda de bebidas alcoólicas (sentidas desde que se começou a preparar o Mundial de futebol de 2018) ao aumento dos preços destas, sem esquecer a proibição de publicidade em vários suportes. O jornal singapurense The Straits Times escreve mesmo: “Russos diminuem o consumo de álcool e tabaco à medida que a tendência de fitness cresce”.
A OMS elogia o esforço dos russos, referindo que as medidas resultaram até agora numa diminuição do consumo anual em 3,5 litros per capita (2007-2016), assim como numa quebra do número de doenças e mortes associadas a tal comportamento. A agência das Nações Unidas especializada na saúde lembra, no mesmo relatório, que mais de 3 milhões de pessoas morreram em 2016 em resultado do consumo nocivo de álcool. Do total das mortes atribuídas ao álcool, 28% deveram-se, entre outras causas, a lesões resultantes de acidentes de trânsito ou a violência entre pessoas; 21% a problemas digestivos; 19% resultaram de doenças cardiovasculares; doenças infecciosas, cancro, perturbações mentais e outras situações de saúde representam a restante parcela.
Dada a seriedade com que o assunto do álcool deve ser encarado pela sociedade, pela força política e pela comunicação social, a OMS tem uma página dedicada ao assunto que fornece mais alguns dados estatísticos e informação científica sobre o consumo alcoólico. A OMS recomenda que mais países (incluindo Portugal, claro) sigam a mesma estratégia da Rússia, seja com o aumento dos preços do álcool, seja com a colocação de barreiras na comunicação das marcas.
A forma como os dados são apresentados pela comunicação social é um tema mais sensível do que possamos, se calhar, pensar. Notícias cujos títulos apresentam posições de Portugal relativamente a determinado assunto ou comparações com outros países são recorrentes, e nas redes sociais costumam ter um factor de consumo rápido – lê-se o headline e siga para o próximo, às vezes deixa-se um like e um comentário na brincadeira, outras vezes partilha-se por algum motivo.
O consumo em excesso de álcool é um problema de saúde pública e não um motivo de celebração. E o papel da comunicação social também deve ser o de educar e esclarecer.