Depois dos triunfos populistas que têm marcado os últimos anos, em Portugal o debate mais premente é em torno da normalização do fascismo. Não há, pelo menos à vista, movimentos significativos que capitalizem com sucesso os habituais instintos da extrema direita (raiva, medo, etc) mas há, sem dúvida, o medo de que eles possam surgir com a velocidade com que surgiram noutros países. Trump não é um bom exemplo pelo seu contexto particular e a sua condição de milionário, mas Bolsonaro pode sê-lo e deixa-nos cada vez mais atentos.
O descontentamento das populações existe e todos sabemos que à boleia da globalização também atravessa fronteiras. A Primavera Árabe deixou claro o potencial efeito contágio entre geografias próximas mas mais recentemente o movimento dos coletes amarelos e as suas réplicas voltaram a mostrá-lo, aqui mais perto para que não deixem dúvidas.
Nos círculos mais politizados e onde a discussão política é mais acesa e efervescente, a conversa sobre a normalização do fascismo ou, menos especificamente, da extrema direita, é tópico do dia quase todos os dias. Por exemplo, no Twitter, esse assunto é um clássico; pequenos tweets, citações idiotas, respostas a meia dúzia de trolls são geralmente suficientes para preencher os critérios do que é um normalizador do fascismo. Contudo, entretidos nestas bolhas nem sempre vemos o quadro completo que se encena mesmo à nossa frente. Convencidos de que somos representativos do que quer que seja, cingimos as análises aos nossos circuitos mediáticos e falamos com desprezo e, pior, com desconhecimento da televisão nacional.
Hoje, no programa da manhã da TVI, tivemos um sinal do porquê de não devermos agir assim. No segundo episódio da nova série do programa que já dura há anos e acumula centenas de milhares de espectadores, e numa atitude de suposta defesa democrática (foi assim que Manuel Luís Goucha o introduziu), foi entrevistado o mais conhecido líder da extrema direita nacional, Mário Machado.
Se, por um lado, como Manuel Luís Goucha disse, ouvir todos é um característica saudável das democracias, ouvir quem as quer destruir e o diz abertamente é um assunto sério e sensível que deve ser preparado e conduzido com rigor. Algo que, convenhamos, escasseia nos programas da manhã, onde reina um tom ligeiro, consensual e muita, muita ambiguidade informativa, que facilmente ganha teor persuasivo. Entre o público-alvo do programa e entre aqueles que o acompanham religiosamente é bem provável que haja quem não sabe sequer distinguir o apresentador Goucha ou o “repórter” Bruno Caetano de verdadeiros jornalistas; por força do alinhamento e da filosofia do programa dificilmente se entraria numa entrevista séria com um contraponto bem feito e assim se caiu na superficialidade sensacionalista. Chegando-se ao cúmulo de fazer um vox pop subordinado à questão “sente falta de Salazar?”
Não é a primeira nem a única acção em programas do género que privilegiam um tratamento superficial, quase instintivo sobre tópicos muito sérios e que merecem uma discussão mais profunda e sensata mas é um caso paradigmático de como, nas zonas de sombra dos experts políticos há espaço para discursos não validados. Se num espaço de comentário político ou num debate informativo poderia ser expectável este tipo de convidado, num programa da manhã sem rigor jornalístico e onde até o próprio título expõe a promessa de identificação com o telespectador “Você na TV” não é assim tão normal, ou não devia.
Não se trata de querer silenciar pontos de vista políticos com argumentos ad hominem. Pelo contrário, trata-se de esperar um tratamento proporcional por parte dos órgãos de comunicação social. Proporcional à relevância dos actores políticos — actualmente a relevância de Mário Machado, sem ser em grupos muito restritos, é próxima de 0. Mais: está inscrita na constituição a proibição de apologias a regimes ditatoriais e fascistas, uma categorização onde facilmente entrariam perguntas e respostas desta entrevista.
Para termos uma ideia da falta de rigor e contraditório, basta mencionarmos o princípio da entrevista. O repórter da TVI começa por elencar uma série de quadrantes políticos sem sinalizar as particularidades da extrema direita e normalizando-a no contexto dos restantes partidos. Depois Mário Machado diz: “Fui preso 2 anos e meio por escrever um texto no Facebook. Queria saber no tempo do Estado Novo quem foi preso por escrever um texto?”, uma expressão clara de revisionismo histórico que despreza as centenas de presos políticos e obrigados ao asilo durante o tempo do Estado Novo, por vezes por menos que um texto, por um par de frases, ou até por denúncias falsas sem qualquer possibilidade de contraditório e simultaneamente, uma revisão do motivo da sua prisão.
https://twitter.com/TiagoDF/status/1080824224669974528
A entrevista seguiu e os apresentadores em palco, nomeadamente a estreante Maria Cerqueira Gomes, tentaram reforçar o contraditório em diversos assuntos, contudo, na filosofia do programa consensual e familiar, sem entrar em discussões políticas profundas, houve tempo e espaço para Mário Machado soltar os soundbites que queria.
O ponto aqui não é julgar o programa pela decisão editorial, nem os intervenientes pela sua incompetência aqui ou ali; pelo contrário, esta situação deve servir-nos de lembrete de que a população portuguesa é mais ampla do que o que nos corre nas timelines. Mais do que estar atentos e ser combativos nas redes sociais, devemos sê-lo em toda a nossa vida, até com os nossos avós, familiares distantes, amigos da família. Este foi um exemplo, mas a divulgação selectiva de interrogatórios judiciais é outro.