Retratos dos despejos no Porto

Retratos dos despejos no Porto

5 Janeiro, 2019 /
"Eu nasci em Miragaia, vivi aqui os meus 42 anos e é injusto ter agora de sair", diz António Dias (foto de Marta Vidal/Mapa)

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Fomos visitar alguns dos moradores que foram ameaçados de despejo e que sentem que estão a perder o direito à cidade onde sempre viveram.

A especulação imobiliária desencadeada pela explosão do turismo tem feito com que a habitação no Porto seja cada vez mais vista como um investimento e não como um direito. As rendas têm vindo a disparar e são cada vez mais os inquilinos com ordens de despejo ou com contratos que não vão ser renovados para transformar habitações em alojamentos turísticos. O MAPA foi visitar alguns dos moradores que foram ameaçados de despejo e que sentem que estão a perder o direito à cidade onde sempre viveram.

Da janela do seu apartamento na freguesia da Vitória, no centro histórico do Porto, Lurdes Silva vai enumerando a perda que antecipa com tristeza e ansiedade: a casa onde viveu toda a vida, a vista para o rio Douro, a vizinha que lhe emprestava cebolas, as amigas do bairro que está cada vez mais esvaziado de moradores e cada vez mais tomado por malas de rodinhas a deslizar estridentes pela calçada fora.

A família de Lurdes já vive na mesma casa há mais de seis décadas, mas só há um ano é que soube que o prédio ia ser vendido e que o novo senhorio queria investir em alojamento temporário. “Mandaram-me uma carta a dizer que tinha seis meses para sair”, conta. A vizinha, com quem tinha uma relação muito próxima, já saiu no passado mês de Julho. Em Novembro, Lurdes terá de deixar a casa onde sempre viveu.

Como só tem 59 anos, não está protegida pela moratória aprovada em Maio deste ano que suspende todas as acções de despejo de inquilinos com mais de 65 anos ou um grau de incapacidade superior a 60% e que residam na mesma casa há mais de 15 anos. Proposta pelo PS, a moratória suspende os despejos até Março de 2019, enquanto é discutida uma nova lei que vai rever o regime de arrendamento urbano. Foi aprovada com votos favoráveis do PCP e do Bloco de Esquerda, mas ambos os partidos defenderam que a moratória se deveria aplicar a todos os inquilinos e não apenas aos que têm mais de 65 anos.

Com a explosão do turismo em Portugal nos últimos anos, Lisboa e Porto têm sido profundamente transformadas pelos milhares de turistas que as visitam diariamente e pelo capital que estes números implicam. Em 2017, as receitas do turismo chegaram aos 2,48 mil milhões de euros e os estabelecimentos hoteleiros receberam 20,6 milhões de hóspedes.

A pressão turística no Porto e a falta de casas para arrendamento têm feito disparar os preços das rendas. Só nos primeiros três meses deste ano as rendas no Porto aumentaram 20%, o que representa, segundo o Índice de Rendas, o maior aumento dos últimos sete anos. Desde 2013, os preços das rendas subiram 88% na Baixa do Porto, um aumento tão elevado que já não é possível alugar um apartamento no centro da cidade com um salário médio português. O resultado é que o Porto está a ficar cada vez mais gentrificado e desigual e a privar os moradores do seu direito à cidade.

“De há uns cinco anos para cá foi um descalabro, as pessoas começaram todas a sair. Agora só vejo turistas com malas de rodinhas”, diz Lurdes. No Porto, o turismo tem sido um dos principais motores da gentrificação. A especulação imobiliária no centro histórico da cidade tem causado o desalojamento de moradores que sempre viveram nos bairros históricos para dar lugar aos milhares de turistas que visitam a cidade diariamente. A gentrificação não é um processo benigno de renovação e reabilitação urbana. Ao privilegiar o lucro trazido pelo turismo e por quem tem mais poder económico, é um processo que envolve a violência dos despejos e a marginalização das classes com menos recursos.

Cidade para turista ver?

“Agora já não vejo os meus vizinhos, já só vejo turistas”, repete Lurdes à porta do seu apartamento na Vitória. “O que está restaurado nesta rua é tudo para alojamento local.” Nos últimos anos Lurdes tem assistido ao esvaziamento do bairro. Os seus moradores tê sido substituídos por hóspedes. De acordo com um estudo do Instituto de Planeamento e Desenvolvimento do Turismo, apresentado em Abril deste ano no Fórum Internacional de Turismo, o Porto recebe cerca de 1,6 milhões de turistas por ano, o que representa uma média de oito turistas por cada morador, e de 228 turistas por cada quilómetro quadrado.

“Na minha rua agora é só alojamento local e prédios em obras”, diz também Lurdes Magalhães. O restauro de edifícios devolutos no centro histórico do Porto tem sido sobretudo para exploração turística. Com 70 anos e um filho com deficiência motora, Lurdes vive no mesmo prédio na freguesia da Vitória há 11 anos e, por isso, também não está coberta pela lei que suspende os despejos, que só cobre quem resida na mesma casa por pelo menos 15 anos.

Para além do crescente número de proprietários locais que recorrem ao alojamento temporário como fonte de rendimento através de companhias como a Airbnb, o investimento estrangeiro no mercado imobiliário português têm aumentado nos últimos anos, fazendo disparar os preços da habitação. Um estudo da consultora imobiliária CBRE estima que cerca de 80% do investimento imobiliário em Portugal em 2017 teve origem internacional. Desde que começaram a ser atribuídos vistos Gold, que dão direitos de residência a quem comprar imobiliário com um valor superior a meio milhão de euros em Portugal, 3,4 mil milhões de euros foram investidos por estrangeiros no mercado imobiliário português, de acordo com o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras.

“O que eles querem é a vista do rio”, diz Lurdes enquanto olha pela janela da sua sala. O apartamento debaixo do seu já está a ser alugado como alojamento local. Morou a vida inteira no mesmo bairro e teme que com a exígua reforma que recebe não consiga encontrar uma casa para si e para o filho com os actuais preços das rendas. Como a maioria dos moradores no centro histórico ameaçados de despejo, sente que está a ser empurrada para a periferia da cidade e que perdeu o direito de viver no bairro que sempre considerou seu.

“Antes ninguém queria vir por causa das cheias”, diz Maria Augusta, que mora na freguesia de Miragaia junto ao rio. “Mas agora toda a gente quer vir para aqui.” O prédio onde Augusta mora há oito décadas foi comprado por uma empresa que pretende investir em alojamento temporário. Segundo Augusta, a empresa já comprou três prédios na mesma rua onde os apartamentos têm vista para o Douro.

“Eu só queria poder morrer onde sempre vivi”, diz Maria Augusta à porta de casa, em Miragaia (foto de Marta Vidal/Mapa)

“O senhorio disse-nos que investiu no prédio não para ter inquilinos mas para alojamento local” diz António Dias, que mora na mesma rua em Miragaia. O contrato de António acaba em 2020, e apesar de já estar a viver na mesma casa há 21 anos, terá que sair para dar lugar aos hóspedes do alojamento temporário, que é para os proprietários muito mais lucrativo. “Os compradores querem recuperar o investimento o mais rápido possível, mas estão a esquecer-se dos direitos dos moradores”, acrescenta. “Eu nasci em Miragaia, vivi aqui os meus 42 anos e é injusto ter agora de sair.”

A especulação imobiliária dos últimos anos tem feito com que a habitação no Porto seja cada vez mais vista como um investimento e não como um direito. A mercantilização da vida urbana tem vindo a desenraizar os moradores e as relações sociais no centro histórico, que se tem tornado num espaço cada vez mais elitista e exclusivo. Apesar do direito à habitação estar previsto constitucionalmente no artigo 65º, a liberalização do mercado de arrendamento, que foi inscrita no memorando da Troika, deixou os inquilinos mais desprotegidos e facilitou os despejos.

Em 2012, as medidas de austeridade em Portugal incluíram uma eliminação gradual dos mecanismos de controlo de rendas. A nova lei das rendas, conhecida com a ‘Lei Cristas’, procurou aproximar as rendas mais antigas da média do mercado e tornou mais fácil despejar inquilinos através da criação de um Balcão Nacional de Arrendamento. Em combinação com o grande aumento da procura e da especulação imobiliária provocadas pelo crescimento do turismo, a ‘Lei Cristas’ contribuiu para fazer disparar o preço das rendas e para tornar a habitação mais precária.

“Eu só queria poder morrer onde sempre vivi”

Ao contrário do seu vizinho António, Augusta está protegida pela lei que suspende os despejos até 2019 por ter 85 anos, mas continua a sofrer com ansiedade e incerteza. “Eu só queria poder morrer onde sempre vivi”, diz. Conta ao MAPA que os novos proprietários tentam intimidar a vizinhança e que no seu prédio se vive com medo. Entre as várias formas de intimidação afirma que um representante da empresa que comprou o edifício disse já estar “farto” da situação, que um dia mandava “deitar fogo ao prédio” e “acabar com tudo”.

“Como os senhorios não têm forma legal de expulsarem as pessoas idosas, usam terrorismo psicológico”, diz António, que afirma ser testemunha das intimidações usadas em Miragaia para pressionar os moradores mais antigos a sair.

Há vários casos de idosos a morar sozinhos que são levados a assinar novos contratos temporários por não estarem informados dos seus direitos. Joaquim Lapa tem 76 anos e sempre viveu na mesma casa na freguesia da Vitória. Há cinco anos assinou um contrato temporário, sem desconfiar que este poderia não ser renovado.

“Assinei o contrato sem saber, na altura não andava bem de saúde. Não sabia que ia ter de sair este ano.” Foi um choque quando o informaram que teria de deixar o apartamento porque o edifício ia ser vendido e o seu contrato terminava em Agosto. “É uma vida inteira a morar aqui. Todos os dias subo a rua para ir tomar café e ler o jornal e fazer as compras na mercearia. Conheço isto de olhos fechados.”

Mesmo que não envolva violência física, o despejo e a marginalização de pessoas que residiram no centro da cidade durante toda a vida causa imensa ansiedade e violência psicológica. A União das Freguesias do Centro Histórico do Porto já registou uma tentativa de suicídio e o caso de inquilinos que só souberam que os edifícios estavam à venda quando viram os cartazes da imobiliária ao sair de casa, como foi discutido num seminário organizado na junta no passado mês de Junho. Em 2017, os gabinetes sociais da junta receberam 680 pedidos de ajuda e foram contactados por centenas de inquilinos intimados a abandonar as casas.

“É uma vida inteira a morar aqui”, diz Joaquim Lapa na sala do seu pequeno apartamento na Vitória (foto de Marta Vidal/Mapa)

“Desde que recebi a carta não ando sossegado. O meu estado de saúde piorou”, desabafa Joaquim. “Às vezes acordo de madrugada porque sonho que me batem à porta para me mandar sair.” O sofrimento causado aos moradores que são forçados a deixar as suas casas é acompanhado pela violência simbólica da marginalização. Empurrados para as periferias das cidades, os moradores sentem que o Porto já não lhes pertence, e que o centro da cidade agora é para quem pode pagar as rendas de 700 ou 800 euros por um T1. No Airbnb, o preço médio por noite no Porto é 63 euros.

No centro histórico do Porto contam-se histórias de moradoras que tiveram enfartes logo depois de fazer as mudanças. A ansiedade e o desespero são sentidos de tal forma que um morador intimado a deixar a casa na freguesia da Vitória fala em ameaçar os senhorios com uma arma, porque “se fosse parar à cadeia” pelo menos teria um sítio onde ficar.

Defender a cidade para quem vive nela

“Trazem turistas mas, se tirarem os moradores daqui, quem é que fica para explicar a cidade, para conviver?”, pergunta Carlos Moreira, morador da ilha da Tapada, na freguesia da Sé. Carlos viveu os seus 71 anos na ilha da Tapada e, como os restantes 50 moradores, está preocupado com o futuro do bairro desde que uma empresa de investimento imobiliário mostrou interesse em comprá-lo para tornar as pequenas casas com vista para o rio em alojamento local. Em Julho deste ano a câmara do Porto anunciou a intenção de comprar o bairro para manter a sua função social e os contratos existentes, mas os moradores ainda não se sentem descansados.

“Nasci aqui e seria uma injustiça ter de sair depois de tantos anos”, afirma Carlos. “Tirar as pessoas daqui seria matá-las.” Porque a cidade não é só feita de edifícios, mas de pessoas e de vivências, Carlos defende que a “história da cidade está nas pessoas” e que afastar os moradores é afastar a sua maior riqueza.

O que torna o Porto atractivo não é apenas o rio Douro visto das janelas dos prédios hoje tão cobiçados no mercado imobiliário. É também a roupa pendurada a secar ao sol na varanda de Lurdes e as suas bandeirinhas de São João, os santinhos de Augusta, os cachecóis do F.C. Porto de António e o Joaquim a subir a rua que conhece “de olhos fechados” para tomar café e ler o jornal. No bairro da Tapada, a beleza não está apenas na vista do rio e da ponte D. Luiz, mas também nas andorinhas de louça que Paula pendurou à porta de casa, nos morangos e framboesas plantados pelo senhor Alfredo e nas relações de vizinhança que já se perderam noutros bairros.

Com a actual crise de habitação no Porto, o centro da cidade está a ficar cada vez mais esvaziado de moradores. Fecham-se lojas de comércio tradicional e afastam-se as pessoas que nasceram no centro histórico e que lhe dão identidade. Enquanto o lucro trazido pelo turismo for mais importante do que os direitos e o bem-estar dos moradores, o Porto corre o risco de ficar descaracterizado. E, pior, de se tornar uma cidade esvaziada e elitista.

Texto e fotos de Marta Vidal

(Nota: este texto foi originalmente publicado no Jornal Mapa, jornal de informação crítica, editado em papel, tendo sido aqui reproduzido com a devida autorização.)

Autor:
5 Janeiro, 2019

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