Na semana passada publicámos um artigo em que a Joana Rita Sousa partia da funcionalidade interactiva estreada pelo Netflix em Black Mirror: Bandersnatch, até chegar a uma das questões fundamentais de toda a nossa vida, se somos ou não realmente livres. É uma das dúvidas que ficam, depois da mais ou menos intensa hora e meia de sessão, mas não é a única. Para além da clássica questão sobre liberdade, o filme interactivo levanta outras, mais modernas. Sobre vigilância, segurança de dados e algoritmos, em suma, o lado mais geek.
Sabemos do poder de Black Mirror em criar cenários distópicos e lembramo-nos das surpresas que outros episódios nos causaram pelo que tentámos perceber qual a mensagem subliminar do primeiro filme baseado na série. Charlie Brooker e companhia habituaram-nos ao longo de 4 temporadas a esperar e procurar sempre por uma mensagem num outro nível. É isso que faremos neste artigo. Em pontos simples que sintetizam as intrigas que fomos acumulando ao longo do tempo. Num artigo que pode cair para o especulativo mas terá sempre o valor de trazer novas leituras para o mesmo fenómeno, cruzando-o com realidades que nos sãos próximas.
O foco será sobretudo a forma que, pelo seu carácter inovador, tem uma carga de intencionalidade superior. Será que programaram toda esta experiência para nos contar uma simples história, para recolher dados sobre nós ou para nos provar um ponto sobre a experiência digital e o streaming?
O próprio Charlie Brooker, argumentista e David Slade, realizador, assumem a ambição com que encaram o desafio; uma oportunidade única de criar uma narrativa intricada e, por aí, com potencial meta, onde a própria narrativa se perde por entre as várias camadas que tanto podem ser de sonho como de realidade.
Personalização q.b.
Não precisamos de rodeios. Mesmo quem não era batido em Black Mirror ficou com a pulga atrás da orelha quando ouviu dizer que no Netflix estreara o primeiro filme interactivo, da era do streaming, em que cada um poderia escolher o seu destino. O Netflix já tinha testado o gimmick em conteúdos para crianças, como Puss in Book, em 2015, ou Minecraft: Story Mode, em 2018. Depois de testada a eficiência em crianças foi a vez de apostar num público mais adulto e nada melhor que Black Mirror para a proeza. Foi esta a premissa dos directores de produto do Netflix que levaram um primeiro não de Charlie Brooker, que acabou por voltar atrás na decisão graças a uma ideia de última hora — a que vimos nos ecrãs.
Esta ideia de controlo sobre uma experiência audiovisual foi o grande trunfo da peça, ao colocar o espectador num patamar decisivo, fazendo-o sentir-se importante e decisivo para o desenrolar da narrativa a relação entre o espectador e a trama tornou-se mais estreita. Atalhando a difícil missão de envolver um espectador através da narrativa, das imagens e da dinâmica entre personagens, no filme somos convidados a sentir-nos parte do episódio através de um interface que interrompe o contínuo e convida à escolha, tornando-nos em parte responsável pela nossa própria experiência. Antes sequer de começar a ver o espectador já sabe que fará parte do filme. Chegando ao fim com uma desilusão, é provável que o espectador se indague se não foram as suas escolhas a condicionar a espectacularidade do episódio, se não foi ele que estragou tudo.
Todo este universo de questões, com alguma capacidade de abstração, se pode transportar para outra realidade que bem conhecemos. Não será a nossa experiência com os feeds, alegadamente personalizados pelas nossas escolhas, mais parecida com Bandersnatch do que conseguimos racionalizar? Se as sugestões de Youtube, Instagram ou Facebook são más, quem tendemos a culpar? Desconhecendo o poder que realmente temos ao fazer escolhas no ambiente digital — tal como desconhecemos no contexto do filme — temos tendência a crer na neutralidade daquilo que nos é dado como automático, garantido. Num outro exemplo, propositadamente ainda mais abstracto, pensemos: desconfiamos mais vezes se pusemos bem o caminho no GPS ou acreditamos que ele possa estar errado?
Esta questão aproxima-nos do automation bias, uma problemática sub-explorada que reflecte a tendência do homem para confiar mais numa sugestão de um sistema automático do que na sua própria intuição ou decisão. Se neste caso concreto as implicações são baixas e no máximo sentimos que perdemos uma hora e meia, o padrão de acentuação deste fenómeno espalha-se noutros contextos tornando-se realmente impactante. Se a passividade da televisão tinha sido sentenciada pelo surgimento da internet, esta cegueira provocada pela crença nos sistemas automáticos trouxe-a de volta para os nossos feeds.
Scroll infinito
Outro dos pontos que mais me intrigou em Bandersnatch foi o seu fim adiado. Depois de ter tido a primeira vez a sensação de que o episódio tinha terminado, uma escolha fez com que voltasse atrás e regressasse ao trilho que me tinha levado ao fim. Mais uma volta, mais uma viagem, até que no canto superior do ecrã surgia um discreto “Ir para os créditos”. Outra vez me veio à ideia o simbolismo deste loop no seu contexto mais alargado. A forma como somos conduzidos até um final que se pode ir adiando. E como somos convidados a voltar atrás para que possamos experimentar todas as alternativas tem qualquer semelhante ao scroll infinito das redes sociais.
Nem por acaso, nesta peça da Wired onde são citados os principais responsáveis pelo episódio, fica clara a estratégia de colmatar o FOMO (fear of missing out) com os regressos aos momentos chave que permitem dar outra direção ao episódio. Tal como acontece na nossa experiência digital, onde procuramos explorar tudo aquilo a que temos direito, por muito que a experiência se torne repetitiva. Quem nunca chegou ao fim do feed do Instagram e voltou acima começando tudo de novo que atire o primeiro telemóvel pela janela.
Agora sabem que queres matar o pai
Depois de concluída a experiência ou visto o filme, como lhe queiram chamar, surgiu-me uma terceira questão. Desta vez, despoletada por um artigo que me apareceu no feed do Facebook. Provavelmente o algoritmo já teria sido actualizado com a informação — ou então não, simplesmente mostrou-me aquilo que estava a mostrar a toda a gente e, por sinal, pareceu à minha medida. Esse artigo, do Quartz, com o título “Black Mirror” isn’t just predicting the future—it’s causing it, debruçava-se sobre a quantidade e qualidade da informação que uma experiência como esta poder permitir ao Netflix colectar e, eventualmente, distribuir por terceiros. Nesta questão, tal como explorado no artigo, existem várias nuances pouco objectivas pelo que reina o carácter hipotético.
A política de privacidade do Netflix, tal como no caso de outras grandes empresas, é pouco clara e ainda menos lida pelos seus utilizadores pelo que aí reside a primeira dúvida. Será que quando escolhemos, a decisão é accionada e imediatamente encriptada ou apagada, será que é sujeita a algum tipo de tratamento ou cedida sob alguma forma a terceiros? Sabe-se que a empresa terá criado uma tecnologia chamada “state tracking” que faz com que o episódio acompanhe as nossas escolhas e, por exemplo, o anúncio dos cereais que aparece na TV de Stefan seja a marca que escolhemos para o seu pequeno-almoço.
Pondo esta hipótese de que os dados têm um tratamento útil e que a partir daqui os algoritmos podem traçar algumas ideias sobre nós, voltemos a abstrair-nos e a aproveitar a premissa. Na série existiam vários tipos de questões, umas mais impactantes que outras ao nível da história, contudo, podem ser várias as motivações de cada utilizador para lhes responder. Tal como acontece, por exemplo, com a nossa navegação na web.
Para ilustrar este ponto, dou um exemplo. Instalando o data selfie, a ferramenta que simula a tecnologia de vigilância do Facebook e alimentando-a durante 2 ou 3 dias com a minha utilização da rede social, o meu espanto não podia ser maior ao visualizar o perfil que os algoritmos me atribuíam. Por ter visitado por algumas vezes o perfil de Facebook de figuras da Alt-Right americana, os algoritmos acreditavam que esse era um grupo com o qual me identificava, não distinguindo a curiosidade analítica que me levava à sua busca.
Ainda assim, com toda esta falibilidade na percepção dos algoritmos os números não mentem quanto à sua importância no contexto global. Um dos mais evidentes tem a ver com a taxa de aceitação dos conteúdos nesta plataforma. Se as distribuidoras normais têm taxa de sucesso entre os 30 e os 40%, o Netflix tem cerca de 80% — a centralização dos conteúdos num espaço (a plataforma) que se adapta aos nossos gostos é o segredo para que vejamos mais uma e outra e outra série do Netflix. Se estas escolhas não revelam propriamente quais de nós têm tendências homicidas, podem perfeitamente dar pistas sobre o tipo de história que preferimos, criando mais uma porta de entrada para o tal feedback loop.
Narrativas alternativas
Para além destes três pontos, Bandersnatch levanta muitas mais questões. Desde a forma como o guião foi escrito, sob forma de diagrama, até à resistência que um formato como este oferece à pirataria, muito há por dizer e perceber sobre este admirável mundo novo da interactividade.
Até sobre o papel do criador este formato levanta novas questões, uma vez que o controlo se divide entre utilizador e argumentista. Ou como diz Charlie Brooker, em tom de brincadeira, “por um exército de trolls russos”. Esse foi, de resto, um dos desafios de Brooker, que utilizou este projecto para testar os próprios limites da escrita e do papel do argumentista na relação.
“Em algumas versões da história, é o mais próximo que atingimos de ser uma força sobrenatural, e depois há outras mais pragmáticas em que quem controla és tu, o espectador Netflix, dizendo-lhe [a Stefan] o que fazer”.
Em suma, Bandersnatch dá início a um novo capítulo da ficção online, um avanço na era do streaming e, sem nos apercebermos, materializa algumas das grandes questões do nosso tempo sob a forma de um entusiasmante fenómeno audiovisual. Como diz Charlie Brooker em modo retórico é a arte a imitar a vida (ou a vida a imitar a arte).