Já ouviste falar de antinatalismo? Uma questão filosófica sobre natalidade

Já ouviste falar de antinatalismo? Uma questão filosófica sobre natalidade

21 Janeiro, 2019 /

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Conceptualmente, antinatalismo é uma corrente filosófica que considera imoral o acto de trazer alguém ao mundo através da procriação.

<Audrey García, 39 anos, Gemma Orozco, 25 anos, Mara Rodríguez, 27 anos: Três mulheres da vizinha Espanha que tomaram a decisão de se esterilizarem por se considerarem antinatalistas. Todas se dirigiram à Segurança Social espanhola mas apenas a última conseguiu o aval para beneficiar de um procedimento contraceptivo realizado num estabelecimento de saúde, crê ela devido à sua idade.

Mas o que é, então, o antinatalismo?

Conceptualmente, antinatalismo é uma corrente filosófica que considera imoral o acto de trazer alguém ao mundo através da procriação. Como argumentos, esta corrente de pensamento afirma que a procriação viola o princípio da autonomia da pessoa por nascer, que não escolheu fazê-lo, e do não malefício, pois o risco de uma má vida (sendo esta má vida caracterizado por doença crónica ou terminal, risco de nascer numa zona de guerra ou pobreza extrema, entre outras infelicidades) supera qualquer benefício que a pessoa por nascer possa vir a usufruir.

Esta corrente tem, actualmente, como seu principal defensor David Benatar, professor de Filosofia na Universidade da Cidade do Cabo e autor de dois livros sobre a temática: Better Never to Have Been: The Harm of Coming Into Existence e Debating Procreation: Is it Wrong to Reproduce? É neste último livro, escrito em conjunto com David Wasserman, que é confrontado com algumas falhas dos seus argumentos, nomeadamente o standard elevado que impõe à qualidade de vida para que esta “valha a pena”. Benatar, no entanto, não é o primeiro a pôr em causa a procriação e parentalidade. O antinatalismo, apesar de muito próprio da filosofia, passa também pela maternidade e, por isso, tem um lugar cativo no movimento feminista.

Instinto natural?

A desmistificação do instinto materno ganha popularidade n’O Segundo Sexo de Simone de Beauvoir, até à concretização, em 1980, de L’amour en plus (Uma Visão Histórica do Amor Maternal) pela filósofa e activista francesa Élizabeth Badinter. Pela análise histórica, Élizabeth Badinter dilacera a componente “biológica” ou “natural” do instinto maternal (tanto quanto o parental) e conclui que o amor pela descendência decorre fundamentalmente do contexto sociocultural e histórico em que um indivíduo se encontra inserido. Badinter reconhece a relevância da educação como factor primordial na relação da mulher contemporânea com a maternidade:

“As mulheres que se recusam a sacrificar ambições e desejos pelo maior bem-estar do filho são demasiado numerosas para serem classificadas como exceções patológicas que confirmariam a regra. Essas mulheres que se realizam melhor fora do que dentro de casa são quase sempre as que beneficiaram de uma instrução superior e mais satisfações podem esperar do exercício de sua profissão.“

A escritora exemplifica ainda que, no século XX, com a generalização do acesso das mulheres ao mercado de trabalho e emancipação financeira face ao homem, mesmo aquelas que poderiam prescindir de trabalhar escolhem não o fazer pela componente de realização e ambição pessoal. A uma conclusão semelhante chega Isaac Asimov, famoso escritor de ficção científica e antinatalista, que vê o pleno acesso das mulheres a todos os sectores da sociedade como uma solução indirecta para países menos desenvolvidos conseguirem maior controlo demográfico: a mulher, por se realizar noutras esferas da sociedade como um indivíduo único, deixa de ver na maternidade a sua única fonte de realização e valor.

Um meio para um fim (ecológico)

Dentro dos novos aderentes do antinatalismo muitos são jovens que, não tendo no seu projecto de vida a parentalidade, estão preocupados com o legado ecológico para o planeta e, simultaneamente, o tipo de planeta que deixariam aos filhos, caso os tivessem. Movimentos como o Population Matters contam com muitos apoiantes, entre eles David Attenborough e Jane Goodall, por já terem percebido o que a sobrepopulação acarreta. Grupos como este advogam que o controlo populacional de forma voluntária e individual é a melhor forma de lidar com este problema, ao mesmo tempo que apoiam medidas de melhoria do acesso à educação e planeamento familiar.

Esta preocupação com o legado ecológico veio ganhar força quando um estudo sueco de Julho de 2017 estabelece que a medida individual com maior eficácia para diminuir a pegada de carbono de cada um de nós é… ter menos um filho! O estudo chega a esta conclusão após comparar a redução de um filho face a promoção estatal de medidas não-reprodutivas como evitar o uso de carro ou viagens aéreas intercontinentais, uso de energias renováveis, alimentação baseada em plantas, reciclagem, entre outras.

Como base para a avaliação da eficiência da redução do número de filhos usaram um estudo de 2009 que faz o cálculo de carbon legacy (o cálculo das emissões de carbono atribuídas a alguém consoante o número de descendentes) como referência para cada um dos onze países mais populosos do mundo, ajustado à taxa de fertilidade feminina. Ao compararem a redução do número de filhos com as alterações de estilo de vida, observaram que estas últimas têm maior impacto se reproduzidas por futuras gerações mas esse impacto só é superior quando avaliadas a nível individual e não a nível populacional. Como exemplo: as emissões de carbono de uma mulher nos EUA são bastante superiores às de uma mulher na China mas, por a população chinesa ser bastante superior, é este país que é responsável por emissões muito superiores aos EUA.

Se este trabalho nos dá uma pista muito importante de quão (ainda mais) responsável deve ser a decisão de ter filhos, não é um trabalho que diga que a nível estatal se deve apostar apenas na promoção de medidas de controlo ou anti-natalidade. Consoante a população alvo, se for objectivo de um país cumprir metas de redução de carbono, são igualmente importantes alterações de estilo de vida pois a redução da natalidade poderá condicionar desequilíbrios demográficos, com graves consequências nos sistemas de Saúde e Segurança Social.

O papel do Estado na demografia

Na China, em 1979 foi introduzida a política do ‘filho único’ como tentativa de controlo demográfico pelo governo da República Popular. Pela primazia cultural de ter um filho rapaz, com esta medida, muitas crianças do sexo feminino foram renegadas à nascença, tendo actualmente a China, a par de outros países asiáticos, um dos maiores desequilíbrios demográficos no que toca ao género e também à distribuição etária, com uma população envelhecida bastante superior aos seus descendentes.

Este é um exemplo claro que tentativas artificiais de controlo da natalidade têm um risco elevado, principalmente no equilíbrio de sistemas de Segurança Social, mais ainda considerando que esta é uma decisão individual (ou de casal), em que o Estado tem o papel de promover a melhor educação e saúde para a sua população, sem interferir na autonomia dos seus cidadãos.

As razões de  Audrey, Mara e Gemma para desejarem não ser mães são diversas mas todas consideram que, tal como é irreversível* a esterilização, também o é a decisão de engravidar. Em 2019, ao exercerem a sua autonomia, o planeta agradece-lhes!

Artigo de Rita Baião

Autor:
21 Janeiro, 2019

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