Uma visita à ‘última’ fábrica de lápis, em plena era digital

Uma visita à ‘última’ fábrica de lápis, em plena era digital

1 Dezembro, 2018 /

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A Viarco, em São João da Madeira, não só é a única fábrica de lápis em Portugal como em toda a Península Ibérica. A marca pertence ao imaginário de muitos, fomos conhecê-la.

É um hábito vaticinar-se o fim de tudo o que é analógico, dos livros em papel, dos jornais impressos, do papel e da escrita à mão. E mesmo em áreas criativas, como o desenho e a ilustração, a tecnologia surge como uma ameaça às ferramentas mais tradicionais. Nesta era digital, do Apple Pencil, dos iPads e Surfaces vocacionados para o mundo, o lápis tem futuro?

“O lápis nunca vai deixar de existir, é o primeiro instrumento criativo que se dá a uma criança. Tal como a fotografia digital não veio anular a fotografia analógica, a arte digital não vai anular a arte analógica, até porque um brush digital não é igual a um brush de pincel.” As palavras pertencem a Patrício Macedo, director criativo da Viarco, marca portuguesa de lápis cujas instalações visitámos com curiosidade de conhecer como se fabricam estes pequenos objectos mágicos. A Viarco não só é a única fábrica de lápis em Portugal como em toda a Península Ibérica. Criada em 1907 e desde 1941 instalada em São João Madeira, no distrito de Aveiro, os seus produtos devem pertencer ao imaginário de muitos. As paredes da fábrica guardam a história centenária desta empresa, mas contam também toda a história de uma marca com capacidade de se reinventar e de se adaptar.

Chegar a São João da Madeira, a auto-intitulada “Cidade do Trabalho”, ainda é fácil por passar por lá a também centenária Linha do Vouga. A fábrica é discreta. De fora não é possível adivinhar o que lá dentro se encontra. Há máquinas antigas que ainda hoje funcionam, permitindo o fabrico manual dos lápis e outros produtos da Viarco que dali saem para o mundo (literalmente). A operá-las dezenas de funcionários que também guardam as suas histórias e que completam os processos que as máquinas não fazem. Certo que a Viarco podia modernizar a sua fábrica, mas a empresa portuguesa não tem intenções de competir com uma Staedtler ou Faber-Castell. “Não conseguimos competir com eles porque eles pensam em números”, referiu Patrício, explicando que podem ‘dar-se ao luxo’ de criar produtos que não vendam em largas quantidades. “Temos uma estrutura que não nos obriga a facturar mil milhões ou o quer que seja anualmente. Nós pensamos em produto.”

O artesanato faz parte da identidade da Viarco. Chamam-lhe fábrica-museu. Enquanto visitávamos a fábrica, também um grupo de crianças o fazia numa excursão. As visitas organizadas à Viarco são recorrentes com a empresa a receber 10 mil pessoas por ano; e não são só miúdos: ainda recentemente a fábrica contou com a visita de uma escola norte-americana interessada em fazer algo com a Viarco no próximo ano. “Cada visita é diferente, depende do que está a acontecer no momento”, comentou Patrício, explicando que este ‘museu-vivo’ que é a Viarco faz parte da estratégia de comunicação da marca, muito virada para o ‘boca-a-boca’, que considera ser mais eficaz que uma “comunicação institucional ou comercial em que escarrapachamos tudo, perdendo-se o factor surpresa”.

“As pessoas chegam aqui como tu chegaste [ouviram falar]. Ficam de passar por cá um dia, sem stress”, acrescentou.

As visitas terminam geralmente na loja e zona de experimentação, onde, depois de percorrermos as várias salas da fábrica, podemos ver os produtos finais e conhecer o vasto portefólio da marca. Um portefólio que vai para além do lápis na sua forma mais convencional: há uma linha vintage que recupera o imaginário da marca; há lápis que cheiram a Flor de Laranjeira ou Jasmim; há um lápis-pião que gira em torno de si mesmo para criar formas circulares; há “o pior lápis do mundo”, que nasce da vontade de brincar e de pregar partidas aos outros; há até um “lápis do copianço”, que esconde em tons escuros os números da tabuada.

Experimentar, inventar e imaginar novas coisas – “sempre na base do objecto riscador” – faz parte do ADN da Viarco. “As nossas máquinas são velhas mas preferimos chamar-lhes arqueologia industrial, porque máquinas velhas são aquelas que estão paradas. Estas não. E apesar de antigas, são máquinas que nos são muito úteis, porque é fácil mudar uma peça que seja para prototipar uma ideia nossa.” Ideias não faltam à Viarco e quando poderiam faltar há quem lhas dê, com um grupo de alunos de mestrado em design na ESAD das Caldas da Rainha que idealizaram a Morphe – um conjunto de ferramentas para ajudar a obter determinados traços.

A Morphe, como outros produtos da Viarco, focam-se no campo das belas artes. É aqui que a empresa sanjoanense coloca a sua maior energia. A ArtGraf, uma espécie de sub-marca que lançou em 2007, vai para além do lápis e oferece um conjunto de ferramentas de desenho, como o Nº1, uma massa de grafite que o artista pode moldar à sua vontade para satisfazer a sua criatividade. Também há quadrados de pigmentos coloridos que podemos usar para riscar numa folha ou para pintar, se adicionarmos água. “Gostamos de criar produtos que dêem para diferentes coisas.”

Mesmo com a produção de estojos ou de uma mesa de desenho, o lápis continua a ter um peso grande no dia-a-dia da Viarco. Durante a visita à fábrica, foi possível constatá-lo. Parte da produção destina-se a empresas, museus ou outros clientes que procuram lápis para os seus projectos. “Todos os dias são produzidos aqui milhares de lápis.” Mas já não os da marca Continente.

Sendo centenária, a Viarco já passou por várias crises. Até 2008, os lápis da marca de hipermercados da Sonae eram fabricados em São João da Madeira, representando 30-40% da facturação da empresa. Com a crise financeira dessa altura, “As grandes superfícies cortaram connosco”. O abanão foi duro na empresa, mas levou-a numa espécie de introspecção e a virar-se para o portefólio disruptivo que hoje apresenta. Esta nova vida da Viarco arrancou em 2011, o ano da troika, quando José decidiu ficar com a fábrica do bisavô Manoel Vieira Araújo, o fundador da Viarco.

Foi em 1936 que Manoel comprou a Fábrica de Lápis Portugália, criada em 1907 em Vila do Conde. Nascia, assim, a Vieira Araújo e Companhia, ou seja, Vi-Ar-Co. Marca registada, a fábrica foi cinco anos depois deslocalizada de Vila do Conde para o espaço que ainda hoje ocupa em São João da Madeira. Em 1991, a família dividiu o negócio em dois: Viarco e lápis para um lado; Vieira Araújo e plásticos para outro. Depois veio o Espaço Económico Europeu, a liberdade de movimento de produtos e mercadorias e o primeiro abanão à Viarco; confortavelmente a produzir e a vender para Portugal, viu “chegar os alemães, os franceses e mais tarde todos os do oriente”. “Percebemos que tínhamos uma indústria obsoleta, com máquinas antigas, e a coisa começou a complicar-se. E isto começou a cair”, recordou Patrício.

“A ArtGraf surgiu da necessidade de encontrar outras vias que não apenas a produção de lápis porque não conseguíamos competir com os preços baixos. A matéria-prima era muito mais cara que os produtos que se encontravam no mercado. E começamos a ver outros produtos que fizessem sentido além dos lápis”, explicou. “A anterior https://staging2.shifter.pt/wp-content/uploads/2021/02/e03c1f45-47ae-3e75-8ad9-75c08c1d37ee.jpgistração não estava convencida [com a aposta], achava que seria para nicho e que ia vender pouco. Nunca apostou muito e nós andamos aqui um bocado a lutar.”

A partir de 2009, começaram a correr algumas feiras internacionais, que serviram sobretudo para validar os novos produtos e angariar potenciais clientes; lançaram uma loja online para tornar os produtos acessíveis além fronteiras; chegaram a vários mercados, do norte-americano ao asiático, sem esquecer o australiano. “Actualmente 50% é exportação. Quando lançamos um produto, é normal o mercado externo sugar logo as primeiras remessas.” Também aqui o ‘boca-a-boca’ ajudou. Em 2013, a televisão nacional da Coreia do Sul fez um documentário sobre a Viarco: “aquilo passou na Coreia e foi um boom, o que é certo é que vendemos e continuamos a vender para lá”. Em Portugal, a Viarco marca sobretudo presença em lojas dedicadas às artes ou ao saudosismo. “Com os produtos de belas artes, conseguimos arrastar tudo o resto [todo o outros produtos]”, até porque “até hoje o lápis não mudou de forma, o que muda é a mina, que pode ser mais fina ou mais grossa”.

Além das visitas à fábrica, a Viarco apoia uma série de iniciativas pelo país fora, como exposições de desenho, prémios e bienais de arte. E oferece o espaço a residências artísticas: de dia trabalham num atelier nas instalações em São João da Madeira, que é disponibilizado também à comunidade estudantil da zona a custo zero; de noite dormem na Oliva Creative Factory, também naquela cidade, “uma antiga fábrica de banheiras, maquinas de costura…, de fundição pura e dura, que chegou a empregar cerca de 4 mil pessoas”. “Aquilo foi caindo, foi caindo, foi caindo, até que fechou há muito muito tempo. Entretanto, as instalações foram ficando degradadas e a Câmara Municipal comprou uma parte, onde estão hoje empresas ligadas à área criativa, incubadas, em open space. Existem também lá exposições e há uma parceria com Serralves e também com o Núcleo de Arte aqui de São João. Era interessante de visitares também.” Fica para uma próxima visita. Para mais um dia Sem stress.

Autor:
1 Dezembro, 2018

Jornalista no Shifter. Escreve sobre a transição das cidades e a digitalização da sociedade. Co-fundador do projecto. Twitter: @mruiandre

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