À entrada para a conferência de Slavs and Tatars no Fórum do Futuro, no Porto, a curiosidade era muita mas as expectativas muito pouco concretas. Sabíamos que íamos assistir a uma apresentação especial promovida por um colectivo de artistas, mas arrisco a generalização de dizer que ninguém (ou pelo menos os comuns mortais) sabia muito bem ao que ia. O nome do colectivo — Slavs and Tatars — dizia pouco, o nome da apresentação — “Transliterative Tease” — ainda menos, e só no prospecto do festival surgiam as primeiras pistas: em foco estaria a linguagem e o seu potencial enquanto instrumento político.
A imagem que acompanhava e antecipava o evento mostrava uma cara estilizada em 3D, a de Ataturk, o primeiro presidente da República da Turquia, com a legenda “Who you callin’ a romanizer” e, sem que pudéssemos prever, era a pista mais concreta para aquilo que íamos ouvir. O representante do colectivo (que aqui não nomearemos para manter o espírito do grupo que evita identificações pessoais para que a sua obra fale sempre mais alto) assumiu a apresentação depois de uma breve introdução feita por Eduarda Neves, da Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto, e rapidamente nos sossegou. Não termos percebido grande coisa, fazia parte do plano; desde a escolha do nome – traduzindo, “Eslavos e Tártaros” – à do descritivo do grupo.
Slavs and Tatars is a faction of polemics and intimacies devoted to an area east of the former Berlin Wall and west of the Great Wall of China known as Eurasia.
No amplo espaço entre o Este do Muro de Berlim e o Oeste da Muralha da China, duas das barreiras mais icónicas que a história da Humanidade edificou, situa-se o foco do trabalho do grupo, que tem como sub-produto do seu trabalho artístico a reflexão e como matéria prima a linguagem e a linguística. É nesta contínua junção de opostos que se situa, como nos disse, a verdadeira modernidade: “modernista não é só o Elon Musk, como se ouve falar, mas são sobretudo pessoas como o Baudelaire”, que inovaram na linguagem fazendo-nos experimentar diferentes sensações. É por aí que os Slavs & Tatars seguem também.
Como ilustrou na sua apresentação com a imagem da lenda do mundo árabe Nasruddin, os Slavs and Tatars são o exemplo vivo de que a inovação e a modernidade nem sempre estão à nossa frente. Nasruddin montava o seu burro ao contrário; na mesma lógica com que os Slavs se alinham com a contemporaneidade mantendo um olhar sobre o passado, materializado no estudo de textos e formas de expressão antigas, muito antigas; tendo como especial foco as línguas turcomanas praticam aquilo que chamam de anti-modernismo com vista ao progresso, uma visão propositadamente desalinhada que se pode sintetizar numa pequena anedota explicativa da mania de Nasrudin montar ao contrário. Quando era questionado, diz-se que o sábio respondia “se vamos juntos, qual é a vantagem em estarmos a olhar os dois para o mesmo lado?”.
Nasrudin – em turco: Nasreddin Hoca, em turco otomano: نصر الدين خواجه, em persa: خواجه نصرالدین, em árabe: نصرالدین جحا; em urdu: ملا نصرالدین; em usbeque: Nosiriddin Xo’ja, Nasreddīn Hodja; em bósnio: Nasrudin Hodža; em português: Nasredin) – é uma uma lenda sobre um filósofo que terá vivido no século XIII, amplamente conhecido em todo o Médio Oriente, personagem de centenas de pequenas de histórias infantis e anedotas.
Slavs and Tatars desafiam com a sua visão desalinhada a linearidade do progresso que a contemporaneidade vai enraizando nas nossas cabeças. Servem-se de exemplos altamente singulares e, na maioria dos casos, com centenas de anos de história para criar novas leituras dos fenómenos presente – literalmente. O grupo começou como uma espécie de editora radical e independente, publicando livros de investigação sobre o progresso das línguas, dos alfabetos e até de sons como o khhhhhhh ou os anasalados, e mesmo quando é convidado a expor reflecte sobre esta vertente. A verdade é que as suas investigações chegam a pontos de curiosidade que só uma verdadeira obra de arte segue. Para dar um exemplo – e dos simples –, o artista falou-nos do povo da Madagáscar e da forma como a sua língua, o Malagasy, se expressa sobre o tempo de forma absolutamente diferente. Na sua forma de interpretar a realidade, exposta na linguagem, o futuro é representado como estando atrás e o passado como aquilo que está à frente – como se fosse o tempo a mover-se sobre nós e não nós sobre o tempo.
A apresentação partiu daí para uma série de exemplos mais complexos de como a linguagem pode ser estrutural e, sobretudo, estruturante de relações, ao ponto de se tornarem bastiões políticos. “Transliterative Tease” debruçou-se sobre as línguas turcomanas e países como o Azerbeijão e o Uzbequistão pela sua especial riqueza histórica e filológica, mas em abono do entendimento actual podemos pensar por exemplo no processo catalão, embora neste caso não acha disputa sobre um elemento importante, o alfabeto.
Viajou-se da Sibéria à Turquia, do Islão político a Marx, com várias nuances históricas, filosóficas e até humorísticas:
- “As grandes mudanças acontecem geralmente nas pontas das sociedades porque no centro é onde se concentra o poder.”
- Porque é que são os muçulmanos a ficar com os recursos todos? Porque não dar aos cristãos só para ver o que eles fazem?”
- “Um país, três gerações, predominância de três alfabetos diferentes geram um generational gap.”
- “Khlebnikov era tipo o Notorious B.I.G.”
O, laugh, laughers!
O, laugh out, laughers!
You who laugh with laughs, you who laugh it up laughishly
O, laugh out laugheringly
O, belaughable laughterhood – the laughter of laughering laughers!
O, unlaugh it outlaughingly, belaughering laughists!
Laughily, laughily,
Uplaugh, enlaugh, laughlings, laughlings
Laughlets, laughlets.
O, laugh, laughers!
O, laugh out, laughers!
Se a apresentação principal pode ser vista no YouTube, as perguntas e respostas no final ficaram no Fórum do Futuro. Ainda foram trocadas algumas impressões construtivas sobre a morte da filologia, sobre a importância de não acharmos que do nada podemos ser uma sociedade pós-religiosa depois de milénios de história, e sobre como a tecnologia e a internet são ferramentas extraordinárias por permitirem traduzir de uma variedade considerável de alfabetos com eficiência.
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