Se em Lisboa a conversa é sobre start-ups, entrepreneurs e investidores, a norte o mote é ligeiramente diferente; tanto que há espaço e tempo para que se oiça um filósofo anti-capitalista durante mais de uma hora seguida em monólogo. Maurizio Lazzarato foi convidado do segundo dia do Fórum do Futuro, a decorrer no Porto; e, sem suporte audiovisual nem um discurso estruturado, guiou-nos por entre as ruínas daquilo a que chama o “Império da Dívida”.
Pela proximidade temporal do fenómeno, a eleição de Bolsonaro foi o vector condutor de todo o discurso, mas pelo meio não faltaram lições mais transversais, aplicáveis a qualquer ponto do globo e explicações intemporais recuperadas, por exemplo, dos tempos de crítico ao regime nazi.
Com a moderação do arquitecto português Pedro Levi Bismarck, a palestra fluiu estabelecendo relações entre a dívida, própria do sistema capitalista – e de economias mais desenvolvidas –, e os fenómenos sociais que dela advém. É que ao filósofo e sociólogo italiano, actualmente a residir em Paris, interessa sobretudo analisar as micro-implicações do sistema, isto é, as mudanças provocadas em cada individuo e não nos fluxos de capital per se – uma ideia que se pode sintetizar na expressão “Capitalismo Cognitivo”.
Para nos introduzir a esta abordagem específica e não tão comum assim, Maurizio começou o seu discurso por nos pôr a pensar nas mudanças que o nosso vocabulário sofreu nas últimas décadas. Especialmente desde o princípio dos anos 2000, em que noticiários e afins foram invadidos por termos como “mercados”, “agências de rating”, “dívida” e “activos tóxicos” como justificativo para grande parte das políticas que iam regimentando os países. Ainda nessa introdução, Maurizzio aproveitou para re-frasear a famosa expressão de Pierre-Joseph Produhon, “a propriedade é um roubo”, substituindo “propriedade” por “finança” – aqui entendida como o exercício de gerar lucros a partir das transações de capital (exemplo: juros).
Feita a introdução, a conversa começou a encaminhar-se mais concretamente para uma crítica – no sentido filosófico do termo – aos nossos tempos e às nossas vidas. Ou melhor, àquilo que Maurizio descreve como A Criação do Homem Endividado (título da sua obra mais conhecida), uma definição que serve para grande maioria dos cidadãos em qualquer parte da sua vida. Como o filósofo nota, seja crédito para educação, para consumo ou para habitação, esta é uma realidade transversal e praticamente indissociável de um estilo de vida activo e “normal”, algo que sem nos apercebermos provoca mudanças extremas na nossa relação com o mundo. O trabalho é disso um bom exemplo, visto que para o homem endividado torna-se mais rapidamente uma forma de pagar as suas dívidas do que propriamente de gerar um produto útil para a economia ou para se realizar no meio social – e para Maurizio, “trabalhar para existir é uma desgraça”.
Dispostas as peças indispensáveis ao entendimento, o tema central atravessou o atlântico e o Brasil foi caso de estudo. Maurizio começou pela tirada controversa “a culpa da eleição do Bolsonaro é das políticas do PT”, que posteriormente se dedicou a esmiuçar. Não, Maurizio não embarcou no discurso simplista e maniqueísta de que uns são corruptos e outros não; por outro lado, ilustrou com exemplos reais o papel da dívida nas mudanças sociais.
Para o sociólogo, o que o PT fez nos últimos anos foi financiar os pobres em vez de estabelecer políticas sociais de correção das desigualdades. Com o aumento do salário mínimo e médio, o PT fez com que os salários duplicassem, o poder de compra aumentasse e o PIB crescesse cerca de 1/3, é certo, mas no período homologo fez com que o crédito ao consumo quadruplicasse, e é aí, nessa dívida que reside a grande questão.
Este tipo de políticas, que apelida de neo-liberais, estão na base do crescimento populista. Ao aumentar as condições médias da população sem apostar em serviços sociais com condições de acesso facilitadas, o PT acabou por dar aos pobres a possibilidade de aceder ao crédito, que, se por um lado pode parecer positivo, por outro gera uma dívida a cobrar no futuro.
“Em vez de socializar a riqueza, o PT financiou a pobreza. Em vez de reorganizar os serviços sociais, o PT deu dinheiro às pessoas para poderem pagar os seguros.”
– Maurizio Lazzarato
É o preço dessa dívida que, para o sociólogo, estamos a pagar agora com o surgimento de Governos neo-fascistas (como o próprio refere), capazes de capitalizar o descontentamento de quem se vê com a vida hipotecada pelo preço dos créditos e sem a economia ter evoluído as suas condições fundamentais.
Mas o processo é tudo menos simples ou linear. Para além desse descontentamento, Maurizio chama a atenção para outro ponto importante. Ao facilitar o acesso a dinheiro ou a crédito para que cada indivíduo resolva os seus problemas pagando, estamos a criar condições para a morte da política enquanto exercício de pensamento do bem comum. Cada cidadão, endividado, torna-se empresário de si próprio e responsável pelo seu próprio financiamento com os proveitos a ficar para quem concedeu o crédito. Por outro, caso as instituições de crédito acabem por falir, o Estado acaba por as compensar (como o exemplo português tão bem demonstra).
“Se a economia funcionar eles ganham, se falhar nós pagamos.”
– Maurizio Lazzarato
Todo este mecanismo de crédito e divida, a que é praticamente impossível escapar, gera na sua opinião um potencial de auto-ódio nos cidadãos, onde se nidificam os ideais neo-fascistas. É a ideia normativa de um futuro prometido, comprado a crédito, e da dívida que acompanha o cidadão toda a uma vida que se torna insuportável para os indivíduos, que vêm em qualquer discurso anti-establishment uma forma de escape à realidade onde se vem aprisionados – cá está, sem conceptualizarem os problemas como algo próprio do sistema mas antes como algo de que eles são as únicas vítimas.
Sem melhoria na educação, na saúde ou noutros serviços sociais, a mobilidade social decresce (referiu-se o exemplo dos Estados Unidos da América) e os indivíduos vêm que as promessas que compraram a crédito podem não se concretizar.
A partir daqui a conversa, descentralizou-se e o Brasil deixou de ser exemplo único com o neo-liberalismo tecnocrático a ser o alvo das críticas. No entender do filósofo, o ressurgimento do fascismo não será como anteriormente sob a forma de nacional socialismo mas antes com uma índole liberal, onde o racismo surge como uma das últimas formas de expressão da propriedade — uma ideia extremamente disruptiva em que Maurizio usou Sartre para expressar.
Sartre dizia que um racista (e no caso, um nazi, visto que reflectia sobre os anti-semitas) é uma pessoa com medo de tudo menos do judeus, que faz uso da retórica racista e discriminatória para se sentir proprietário de algo mesmo que seja de uma construção mental – “os nossos empregos”, “as nossas casas”, “os nossos valores”.
Como notas finais, Maurizio Lazzarato levou a sua crítica ainda mais a fundo explicitando a ideia de que a moeda desde a sua criação que promove as desigualdades – aconselhando o discurso de Foucault. E lembrou-nos de que as grandes conquistas no campo democrático, como o sufrágio universal, foram conseguidas pelo proletariado e não pelos intelectuais liberais.
“O rico tem uma voz, o pobre tem meia.”
– Maurizio Lazzarato
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