Às primeiras pessoas que publicavam nas redes sociais a oferecer convites para a IniativeQ dava para escapar com um simples scroll. Um dia ou dois depois, os posts com esse teor multiplicam-se e adensam a dúvida sobre o que é afinal esta Initiative Q criada por um dos fundadores do PayPal ou que, pelo menos, assim se apresenta nos vários posts nas redes sociais.
Uma coisa é certa, na semana em que a Bitcoin celebra os seus 10 anos, vimos emergir mais um viral com a promessa de ser um novo sistema de pagamento. Mas afinal o que define este novo sistema de pagamento e como é possível que sem nos pedir nada em troca possa vir a revelar-se como algo benéfico? Quem é este fundador do PayPal? O quê? Como? Quem?
A mensagem das partilhas é quase sempre a mesma: “A InitiativeQ está construindo uma nova rede de pagamento e distribuindo consideráveis somas de sua futura moeda aos primeiros adeptos. É necessário ter convite para participar, e eu tenho um número limitado de convites. Meu link pessoal de convite.” Cada registo tem direito a 5 convites, que pela escassez aparente levam os detentores a publicita-lós de forma efusiva como se se tratasse de algo único, fazendo lembrar por exemplo à loucura dos convites para a rede social Ello e dando popularidade nas redes a um esquema sobre o qual pouco sabem ou procuram saber.
.@InitiativeQ is a new currency built by ex-PayPal guys, currently given for free. If Q becomes a leading payment network, economic models estimate the reward would be around $130,000.
Just need name and email and your spot is reserved.
By invite only: https://t.co/zNu9r4HVvI— ♡ debbetje ♡ (@thisisdeborah) October 24, 2018
A arrematar tudo isto está a promessa de retorno futuro, como o seu fundador referia num email enviado à Financial Times “o equivalente a ter recebido bitcoins há 7 anos atrás”; nos primeiros e-mails surgia a menção a valores como 170 mil dólares, nos últimos o valor já baixou para metade.
Mas o que torna este serviço diferente ou credível dos esquemas, scams ou spams, e digno do investimento dos nossos dados são as perguntas que ficam quase sempre por responder, mascaradas pelo entusiasmo de poder estar a participar na next big thing da internet.
Fundador do PayPal? Quem?
Como se pode ler no site, a IniativeQ é uma empresa fundado pelo serial entrepreneur Saar Wilf. A sua ligação ao PayPal resulta de ter sido fundador da Fraud Sciences, uma start-up especializada em segurança de pagamentos que fora adquirido pelo PayPal quando este ainda fazia parte do eBay.
O outro elemento chave nesta equipa é Lawrence H. White, um economista proveniente da Universidade George Mason e com nome firmado com papers e livros publicados sobre teoria monetária e defesa da banca livre.
Os demais elementos são por enquanto desconhecidos e possivelmente inexistentes. Lê-se no ‘Sobre’ da empresa que só depois de criada a base de utilizadores que torne o negócio rentável a empresa contratará especialistas em sistemas de pagamento, macroeconomia e tecnologias da internet.
Therefore, our primary focus is to get millions of Q members registered, after which we will continue recruiting the world’s top professionals in payment systems, macroeconomics, and Internet technologies.
Convidar pessoas faz do esquema pirâmide?
Sempre que há o risco de a coisa ser burla surge-nos na cabeça o esquema da pirâmide e levantam-se as nossas defesas nesse sentido, levando-nos a limitar a nossa procura de elementos estranhos àqueles que possam indiciar a forma piramidal da coisa. Neste caso, onde a entrada é gratuita, é evidente que não estamos perante um esquema clássico de pirâmide; em vez disso, pelo que é possível perceber, estamos perante um modelo de lançamento semelhante ao das criptomoedas que procuram primeiro intervenientes na sua rede — early adopters — e só depois partem para o lançamento público.
A diferença aqui é substancial e prende-se com o tipo de moeda que estamos a falar. Apesar de as promessas serem várias no site não há uma explicação clara do que torna esta moeda ou esta rede de pagamentos especial. À partida parece uma moeda privada, detida e emitida pela empresa privada Iniative Q, portanto os early adopters não poderão ocupar outro espaço na rede que não o de consumidores ou traders.
O papel das pessoas na fase inicial do sistema parece ser simplesmente fazer número para que o negócio se torne credível e os seus responsáveis consigam assim convencer alguém a investir nele.
No buyer wants to join a new network with no sellers, and no seller will offer a payment option that no buyer uses.
As contas feitas ao sucesso da empresa partem dessa estimativa e todo o discurso o deixa bem claro: a plataforma precisa de milhões de utilizadores para arrancar.
Mais uma criptomoeda? Ou mais uma moeda normal?
Nop, a Initiative Q não é mais uma criptomoeda. Apesar de surfar a mesma onda de entusiasmo e ter todas as características que identificamos neste sector — até o nome pode soar como tal —, os Q não são cripto-tokens, isto é, unidades financeiras validadas e validáveis por um algoritmo numa rede descentralizada. Em vez disso, pelo que se pode perceber, são tokens controlados por uma entidade central. Mas isso não é estranho? Confiar numa empresa desconhecida para ser central num sistema financeiro? — podias perguntar tu. Yup, parece um bocado; e a informação disponível não é assim tão suficiente.
É como uma profecia auto-confirmatória. Enquanto milhões se juntam, as tecnologias de pagamento avanças são disponibilizadas, o sistema de pagamentos torna-se mais popular, a moeda Q torna-se valiosa e as recompensas dadas aos primeiros utilizadores atingem o seu valor potencial.
Ok, cool, mas no meio de tanta promessa continuam a surgir as dúvidas sobre quem garante a neutralidade do sistema, mesmo depois de garantir a sua independência dos estados. Se as cripto contribuíam positivamente para este avanço, ao delegarem as principais decisões à rede e ao envolver os utilizadores na mineração de novos tokens, a Iniative Q não parece tão user-based, nem algorhytmic-based, digamos assim.
A Iniative Q terá um comité monetário que será independente da empresa Iniative Q, aponta por voto dos acionistas da Rede de Pagamentos Q. O comité está encarregue de definir e gerir a política monetária: determinando quantos Qs devem se adicionais ou retirados da circulação e através de que mecanismo.
Tendo consideração pelo que se pode ler e apenas por isso, percebe-se que a gestão da moeda ficará a cargo de um grupo privado, escolhido pelos acionistas da empresa, que analisarão o mercado determinando se se deve criar ou queimar moeda para manter o seu valor. Quanto ao que distingue este sistema do tradicional, não há grandes dados concretos que permitam entender as promessas.
Now imagine this system created a dedicated global currency. Let’s call it Q. According to economic models, the value of all Qs would be several trillion dollars.
Os dados eram valiosos e agora damo-los de borla?
Este é mais um caso em que os nossos dados ganham papel central. Apesar de não nos ser pedido nada de extraodinário, a promessa desta empresa parece só ser viável se confirmar a criação de uma gigante base de dados.
Então porque não temos já um novo e melhor sistema? Porque há uma barreira do ovo e da galinha — nenhum comprador quer entrar numa rede sem vendedores, e nenhum vendedor vai oferecer um sistema de pagamento que nenhum comprador usa.
O próprio modelo de valorização da moeda recai sobre a criação de uma base de potenciais compradores e vendedores antes da criação do sistema. Esta prática é similar à dos ICOs, que, geralmente resolvem a ambiguidade e incerteza com um whitepaper onde explicam o que distingue a sua tecnologia e um roadmap objectivo que permita prever. Aqui, por mais que se leia, tudo leva à ideia de que se pretende criar uma moeda única, global e digital, governada por uma entidade central e que pela sua ubiquidade se tornará valiosa — resta saber como mantém a sua independência e evita viés políticos ou de outros tipos de poder.
O jornalista David Gerard, dedicado à análise do mundo das criptomoedas, vai mais longe e aponta a possibilidade de este esquema ser uma forma de aglutinar e-mails de quem cai na promessa do dinheiro fácil. De resto, a simples ligação entre o site e os track managers — lembrem-se que estão a seguir um link provavelmente do Facebook — pode dar pistas a estas redes de anúncios sobre o nosso comportamento digital e tendência para acreditar em promessas do género.
Apesar de a política de privacidade referir que os dados não serão utilizados por terceiros, existe sempre a sombria possibilidade de a empresa ser vendida e com ela as massivas bases de dados.
2,000,000 people from 180+ countries have signed up! With enough support a modern payment system could become popular globally. Still, millions more need to join to launch. We adhere to our privacy policy and will not sell personal data, even if this effort does not succeed. pic.twitter.com/dhXz0rpUSv
— Quahl (@getquahl) October 30, 2018
A conclusão possível
Atendendo à informação disponível, não é fácil tirar grandes conclusões. Certo é que este movimento de marketing da Iniative Q lhe valeu a viralidade e alguns soldados do spam a profetizar uma promessa que provavelmente não perceberam muito bem. Não é certo que seja um esquema mas também não é certo que seja a próxima grande cena — aliás, nada é certo neste negócio, nem mesmo a sua continuidade.
Initiative Q precisa de muitos utilizadores comprometidos para garantir uma rede significativa de compradores e vendedores. Se uma massa crítica não for atingida o projecto pode não ir para a frente.
A forma como o negócio — chamemo-lhe assim, sem conotação pejorativa — está pensado só funciona se atingir a tal ubiquidade. Só garantindo um volume de transações elevadíssimo nesta moeda única os seus criadores conseguirão criar retorno no sistema e tornar toda esta aventura lucrativa. E tudo isto faz sentido na teoria, precisando de se provar na prática… uma prática inexistente a menos que a escala seja atingida. A tal self-fullfiling prophecy.
O spam foi de tal ordem que nos vimos motivados a saber um pouco mais; acabamos a pesquisa sabendo mais ou menos o mesmo, mas com pelo menos mais evidências que permitem a cada um decidir com mais consciência se é este tipo de iniciativa que pretende apoiar e quanto valoriza a inclusão/exclusão dos seus dados pessoais em bases de dados do género.
Como termina o Digital Spy no seu artigo:
But the ultimate question on many people’s lips is: is Initiative Q real or fake?
Short answer – we have absolutely no idea.