Em 2013, Edward Snowden, ex-funcionário da NSA, denunciou o esquema de espionagem e vigilância em massa montado pelo Governo norte-americano e pela sua NSA. Já no início deste ano, Christopher Wylie contou tudo o que sabia sobre Cambridge Analytica, num escândalo que abalou pela primeira vez o império de Zuckerberg, usado num esquema escondido para elevar a ‘alt-right’ nos EUA. “Steve [Bannon] estava a tentar criar a sua própria NSA”, disse no palco principal do Web Summit, ao lado do jornalista do Channel 4 Krishnan Guru Murthy.
O que o whistleblower de 28 anos, que trabalhou na britânica SCL Group, empresa onde nasceu a Cambridge Analytica, contou em Lisboa não foi muito diferente do que já tinha dito anteriormente em entrevistas, no Senado norte-americano ou na primeira peça do The Guardian.
Steve Bannon – nome que Wylie mencionou múltiplas vezes ao longo da sua densa intervenção no Web Summit – esteve por detrás do nascimento, em 2007, do site de notícias Breitbart, fazendo dele um primeiro peão numa estratégia para desenvolver a ‘alt-right’ (ou direita alternativa) nos Estados Unidos. Uma estratégia da qual fez parte, mais tarde, a Cambridge Analytica (CA), empresa que fundou com o milionário Robert Mercer. Mais que puxar o eleitorado para uma direcção,“Steve procurava um novo conjunto de ferramentas para provocar uma guerra cultural”, “onde o arsenal de armas são dados e os sistemas de alvo algoritmos”, desabafou Wylie.
Uma guerra cultural usando desinformação
O canadiano que foi director de pesquisa na CA conta ter presenciado de perto ao nascimento da sucursal no seio da SCL Group e que o envolvimento de Steve e Robert nesta fez com que, de repente, projectos nos quais estavam a trabalhar num determinado sentido para o exército norte-americano tornaram-se “algo muito, muito, muito diferente”. Segundo Wylie, desde que foi criada, o propósito da CA era “criar o caos” e “atacar pessoas vulneráveis à desinformação”, criando perfis e fazendo campanhas segmentadas, “usando as mesmas técnicas e tácticas que os militares usariam contra o ISIS”. “Esta empresa começou a fraturar a sociedade norte-americana da mesma forma que se fractura uma organização terrorista” e a “tratar eleitores como terroristas”, acrescenta Wylie; tudo para dividir os EUA como Bannon queria.
O Facebook foi, para a CA, apenas uma forma de poupar trabalho. As fragilidades da rede social permitiram à firma britânica alinhar grupos de pessoas à ‘alt-right’ e criar bolhas ideológicas onde eles sentissem que tudo à sua volta estava alinhado com os ideais nos quais os fizeram acreditar. “Os algoritmos eram tão sensíveis que se trouxéssemos as pessoas para páginas e grupos de ‘alt-right’ o News Feed delas iria mudar” e “ao juntarem-se a essas páginas e grupos, as pessoas iriam desenvolver ligações com outras pessoas que podiam ou não existir sobre coisas que podiam ser ou não falsas”. Wylie não só descreve um processo aparentemente simples, mas que revela um conhecimento relativamente profundo do funcionamento do Facebook. “E isso foi usado para base para criar um movimento.” Quando esses grupos de ‘alt-right’ atingiam determinados patamares de membros, ”mesmo que poucos milhares”, eram promovidos encontros locais – em cafés, por exemplo – para cimentar o mundo que online lhes tinha sido criado. Tudo para que “essas pessoas pensem que toda a comunidade pensa como elas e que, quando olham para uma CNN, uma NBC ou o que for e não virem nada do que a sua comunidade está a falar, ou do que aparece no Facebook, o classifiquem como ‘fake news’”.
Zuckerberg assinou por baixo e tentou silenciar tudo
“O Facebook autorizou isto tudo. As aplicações que a Cambridge Analytica montou passaram pelo processo de aprovação do Facebook e o Facebook autorizou. Eles sabiam exactamente do que se tratava”, alertou Wylie, referindo também que os dados dos utilizadores recolhidos pela CA foram usados para fins de investigação (ou com essa desculpa) na Rússia.
Em 2016, com a eleição de Trump, Steve Bannon passou a dirigir o gabinete estratégico do novo Presidente norte-americano, cargo que manteve nos primeiros sete meses da Administração. “Vejo Steve Bannon, que é o meu antigo chefe, a chegar à Casa Branca com Donald Trump e oiço não só as coisas que diz em público mas ponho-me também a pensar nas coisas que diria em privado. E só penso: isto está tudo fodido.”
As revelações de 2013 de Edward Snowden mostraram ao mundo que, sem darmos conta, poderemos estar a ser vigiados em massa por Governos, de agências de inteligência e grandes tecnológicas, destacando que o nosso direito à privacidade não tem a ver com termos algo a esconder mas sim com o nosso direito à individualidade. Por seu lado, Christopher Wylie acrescentou, este ano, mais detalhes à mesma problemática. Afinal, as grandes tecnológicas – perante as quais, diz, temos uma atitude submissa – não só nos podem vigiar ou ser usadas como instrumentos de vigia, como são incapazes de proteger os dados que lhes confiámos e podem ser ferramentas de ataque, de guerra, de desinformação com poderes que nem elas sabem muito bem quais.
Tanto Snowden como Wylie dizem-nos que valeu a pena terem falado. “Estava sentado à frente de um dos maiores abusos éticos relacionados com inteligência artificial e senti que tinha o dever de contar às pessoas”, relatou, dizendo que, antes de bater à porta do The Guardian, do Channel 4 e do The New York Times para contar tudo o que sabia, falou com a Administração de Obama e com o Partido Democrata, que convencidos com a vitória de Clinton, desvalorizaram o que Wylie sabia. Contou também que, mal deixou a SCL Group/Cambridge Analytica, “fui processado por um multimilionário [Robert Mercer], fui processado pelo Steve Bannon, pela empresa toda. Fizeram-me assinar um NDA [Acordo de Não-Divulgação] com paradas muito altas se falasse”. “E a primeira coisa que o Facebook fez quando soube que a história ia sair foi ameaçar processar o The Guardian, o Channel 4 e o The New York Times dizendo ser difamatória e falsa. E escreveu-me uma carta acusando-me de ser criminoso.”
Regulação, precisa-se
Segundo Christopher Wylie urge ser criada regulação para a internet, o que é complicado quando nem sempre as autoridades policiais e os políticos compreendem como é que ela funciona. “Há coisas que me perguntam em privado e que são preocupantes. Por exemplo, já perguntaram onde é que na América é guardada a internet. E isto foi por uma pessoa que é responsável por regular estas empresas.”
Wylie não tem dúvidas: a regulação funciona. “Quando vais a um médico, sentes-te seguro? Quando vais a uma mercearia comprar comida, sentes-te seguro? Quando entras num avião e te sentas literalmente num tubo de metal que atravessa o ar, sentes-te seguro? A maioria das pessoas sim, porque a regulação funciona. Há regras em funcionamento”. E questiona: “porque é que não conseguimos regular uma merda de código? Porque é que não conseguimos instituir normas de design?” Acima de tudo, quem desenvolve uma rede social, programa uma app ou desenha uma plataforma deveria seguir um código ético como médicos ou advogados, que “têm de configurar as implicações éticas das suas acções e comportamentos”. Na verdade, se a tecnologia é algo em que “as pessoas tocam todos os dias”, porque é que engenheiros, designers e outras profissões não têm de considerar também a ética? – questionou.
Facebook, o colonizador dos novos tempos
No Web Summit, Christopher Wylie fez uma referência subtil aos Descobrimentos (não usou este termo, mas o caso português enquadra-se) para comparar as gigantes da tecnologia aos “antigos colonizadores”, inicialmente vistos com “mensageiros divinos, enviados pelos deuses”, mas que eram na verdade “conquistadores”, que chegavam às nossas terras para “explorar os recursos” se se preocupar em perceber como as comunidades locais funcionam. É o que, no entender de Wylie, o Facebook faz actualmente ao tentar “fazer um clone digital da nossa sociedade” e através das suas múltiplas iniciativas de expansão e de programas como o Internet.org, e que por vezes correm mal, como mostra o exemplo que Wylie recordou da Birmânia. “Se pensarmos, idealizamos muitas vezes os fundadores de tecnológicas como divinos, com toda a sua tecnologia brilhante em redor, e não damos um passo atrás para pensar. vamos deixar estas empresas colonizar as nossas sociedades?”
E vamos deixar a inteligência artificial divinizar a nossa sociedade? “O que acontecerá quando todos estes sistemas de IA começarem a falar uns com os outros, começarem a criar um ambiente em que perdemos controlo?”, disse, lembrando que estamos a deixar a IA entrar em nossas casas, nos nossos carros, nas nossas ruas, nos nossos escritórios. “E quando as coisas começarem a falar umas com as outras sobre ti, a pensar sobre ti, a tomar decisões por ti. Quando a IA a tiver intenções e motivações, o significado de ser humano disrupte-se. Um ambiente que pensa como nós, nos vê, toma decisões e procura corrigir o nosso comportamento… é quase divino.”
You must be logged in to post a comment.