Na audição pública promovida pelo Bloco de Esquerda sobre a legalização para fins medicinais – ou terapêuticos – da canábis, ouviram-se vozes de vários quadrantes com um ponto de vista comum: dar os próximos passos e criar um enquadramento legal favorável à possibilidade de dispensa desta substância. Não faltam motivos, nem estudos científicos, só falta vontade e coragem política.
Foi perante uma plateia bem composta e com uma percentagem de jovens assinalável – alguns vindos outros pontos do país – que os oradores, representantes de diferentes sectores interessados da sociedade civil, fizeram uma revisão de um argumentário que já venceu, e vai vencendo, esta batalha política há alguns anos noutros países.
É que, se Portugal é muitas vezes dado como exemplo pelas leis de redução do risco implementadas na viragem do século, é também aí que o sistema se começa a revelar a sua insuficiência e inoperância, como evidenciou o psiquiatra Luís Patrício. Embora o debate tivesse como foco a canábis, e misturar outras drogas possa potenciar a estigmatização negativa, o discurso incidiu sobre a marginalização deste debate e os perigos de uma sociedade que escolhe não fazer e fingir que não vê.
Passando em revista as propostas legais e comparado-as com a sua real aplicação prática, o psiquiatra – que esteve envolvido na concepção das mesmas – explicou que a legislação actual é insuficiente e, com alguma ironia, interrogou como só para o álcool continua a haver espaços de consumo próprios (tabernas, bares…).
Depois deste ponto contextual sobre a abordagem – ou o desprezo – dos sucessivos Governos às drogas, o debate voltou a centrar-se na disponibilização de canábis. Bruno Maia, neurologista e intensivista da Unidade Cerebrovascular e Gabinete Coordenador de Colheita e Transplantação do Hospital de S. José, foi sintético na sua intervenção, debelando mitos e preconceitos sobre as consequências da substância, através de uma série de comparações com outros fármacos aceites.
Ao argumento da potencial dependência, lembrou, em oposição, os números de consumo de benzodiazepinas em Portugal. À psicoactividade, opôs os anti-hístamínicos, usados para controlar alergias até em crianças e com comprovados efeitos no mesmo capítulo. À lista de exemplos aceites clinicamente e com efeitos potencialmente adversos, Bruno Maia ainda acrescentou o Fentanil e a Ketamina (que até serve uma música de Kate Tempest), notando que podem ser tomados fora do contexto médico para outros efeitos, e ainda o Paracetamol, que, apesar da aparente inocência, tem uma dose letal relativamente baixa.
“Não existe nenhuma razão científica objectiva para que não seja legal. Nem para desconfiarmos da substância, só se escolhermos desconfiar de todas”
Javier Pedraza, investigador espanhol com décadas de estudo dos seus efeitos, foi quem se seguiu no debate, pegando na deixa de Bruno Maia e reforçando a necessidade de cingir o discurso à marijuana, sem fazer confusão com outras drogas. Começou por salientar a ideia de que existe bastante pesquisa científica sobre o assunto, recomendando quem duvida a googlar “IACM Cannabis”, ir até ao site da Associação Internacional pela Canábis Medicinal e perder praí 2 anos a ler tudo o que já se investigou sobre a matéria.
Pedraza levou o ponto da dispensa da canábis medicinal ainda mais longe, dizendo que seria pouco produtivo tentar isolar todos os componentes da planta e que a venda da planta, da flor, de cabeços será a única solução em tempo útil. Foi com alguma ironia que deu sequência à discussão sobre os preconceitos iniciado por Bruno Maia, lembrando que uma pessoa a quem é diagnosticada cancro não quer erva “para apanhar umas mocas”. E continuou revelador da sua incompreensão perante os países que insistem em manter a proibição desta planta, apelidando a decisão de “atentado contra a saúde pública”. Num discurso vincadamente pró-legalização, Javier Pedraza fez questão de sublinhar o âmbito medicinal ou terapêutico que defende e as consequências a curto prazo de fumar canábis: baixa tensão, aumento da frequência cardíaca e surtos de psicose canábica.
Noutro ponto de salientar da sua intervenção, o investigador disse que a canábis não devia ser consumida por pessoas antes dos 23 anos, altura em que o sistema nervoso central está completamente desenvolvido, reservando as excepções a esta regra para casos em que é preciso controlar convulsões. “Uma convulsão pode fazer ainda pior ao sistema nervoso central.”
Feita a contextualização e a sustentação científica, o debate avançou para questões mais políticas com as intervenções que se seguiram. Dinis Dias, da Cannativa, uma associação pelo estudo da marijuana, e responsável de controlo de qualidade de uma plantação para fins medicinais no Canadá, trouxe para cima da mesa o exemplo do país onde trabalha. No Canadá, apesar das várias voltas legais que o assunto já deu, a canábis está acessível aos pacientes há cerca de 16 anos, depois de um utilizador ter processado o estado por não lhe permitir ter acesso a esta substância para efeitos terapêuticos. Foi a decisão do Supremo Tribunal Canadiano que determinou que a proibição se tratava de uma violação do direito de acesso à saúde a fazer jurisprudência para que passos firmes fossem dados e, garante Dinis, não foi por aí que o país colapsou. Pelo contrário, o português relacionou a necessidade de se conhecer as plantas até para que se possa estabelecer uma posologia recomendada e evitar abusos.
Andreia Nisa, da equipa de redução de riscos em ambientes festivos CHECK!N Viseu e o projeto INCLUS@ de prevenção e reinserção no estabelecimento Prisional da Guarda, para além de colaborar com a APDES – Agência Piaget para o Desenvolvimento, seguiu a mesma linha de discurso, focando-se desta vez nos paradoxos institucionais que este sistema promove. Lembrou que a ONU recomenda uma política não proibicionista nesta matéria e que permitir a grandes empresas que o plantem, impossibilitando pequenos agricultores de o fazer, também não é justo. Da sua experiência no terreno, relatou uma manutenção nos níveis de consumos e que, sendo esta a substância ilegal mais consumida, os custos para a justiça para fazer valer as proibições são enormes.
Depois do apelo de Andreia Nisa por uma perspectiva política mais humanista, dois sinais humanos de que isso é possível e preciso. A deputada socialista, Maria Antónia Almeida Santos, falou em nome próprio, mostrando-se comprometida em fomentar o debate e, mais do que pensar em linhas e cores políticas, trabalhar para uma solução que permita quem precisa aceder à canábis. Apesar do seu interesse longínquo pela temática, confessou-se surpreendida pelas intervenções antecessoras e deu sinais de querer preparar bem esta matéria para que possa sair regulada em 2018.
Para o final ficou a intervenção de João Santamaria e, talvez, o exemplo mais humano de todo este painel. O activista do GAT Portugal (Grupo de Ativistas em Tratamentos), falou da sua experiência pessoal e de como a marijuana foi mais do que uma droga de entrada (gateway drug) uma porta de saída para vícios mais pesados por onde passou. Servindo-se da experiência na primeira pessoa questionou os presentes sobre a lógica que tem alguém como ele, já avô, arriscar-se para comprar algo para consumo próprio e que lhe permite manter uma vida equilibrada. No fecho das intervenções e voltando a lembrar a lei de 2001, foi perentório e ilustrativo da essência da inoperância até aqui “nem a lei de 2001 foi a pensar nas pessoas, foi a pensar nas prisões cheias”.
Depois deste profícuo debate, a palavra voltou ao promotor na pessoa de Moisés Ferreira, que reforçou o empenho do Bloco de Esquerda e que todas as ideias discutidas seriam tidas em conta no desenho da proposta a apresentar no início de 2018. Da plateia surgiram as habituais questões, sintoma de um tabu que precisa de ser ultrapassado e que promove situações de marginalização e perigo todos os dias, por todo o país.
Deu-se, assim, mais um pequeno passo na discussão deste tema, dando mais matéria para que o Bloco de Esquerda – também bem representado na plateia – possa desenhar uma proposta sólida neste sentido. O debate, conforme havia sido anunciado, focou-se na vertente medicinal da canábis, algo que será mantido na primeira proposta a apresentar na Assembleia da República. Numa tentativa de acelerar o debate neste sector, sem dúvida, prioritário, o Bloco quer agora dividir a discussão e deixar a legalização recreativa para um segundo momento legislativo.
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