Haruki Murakami é um dos escritores contemporâneos mais conceituados do Japão, cujos bestsellers são traduzidos em mais de 40 línguas em todo o mundo. Só na primeira semana de lançamento, a sua obra A Peregrinação do Rapaz Sem Cor vendeu 1 milhão de cópias, no seu país. À sua escrita não pode ser atribuído um estilo narrativo específico devido à facilidade com que flutua entre ficção, ensaio e reportagem, mas se nos virmos forçados a ter de o aproximar de uma descrição, então Murakami é um exímio romancista do realismo mágico.
Desde cedo, com o lançamento de Norwegian Wood, preconizou-se que viria a ser um eterno candidato ao Nobel da Literatura – alcunha que acabou por pegar – mas foi com o romance Crónica de Um Pássaro de Corda que consolidou esse estatuto. Apesar de ainda não ter esse conceituado prémio associado ao seu nome, Murakami tem sido ano após ano apontado como um dos favoritos à conquista do galardão.
O autor nipónico, aos olhos dos críticos e dos seus fãs, até pode ser tudo isto, mas o próprio considera-se um romancista por obra do acaso, não tivesse ele decidido que iria escrever um livro depois de ouvir uma multidão aplaudir uma tacada bem sucedida num jogo de basebol, e, para aqueles que apreciam o seu trabalho, acaba por ser intrigante a forma como para ele se tornou tão natural escrever histórias fortemente influenciadas pela sua experiência de vida.
A construção dos protagonistas
No centro dos seus mundos vagamente descritos, encontramos sempre um protagonista introvertido e sensível ao ambiente que o rodeia. É difícil para estes personagens tão sui generis enquadrarem-se nas metrópoles para onde se sentem ter sido empurrados, ainda que seja sempre pela sua própria consciência. Damos por nós a ler extensos e entediantes monólogos, que despertam em nós um certo fascínio e alguma ansiedade.
Sumire (de Sputnik, Meu Amor) ou Hajime (de A Sul da Fronteira, A Oeste do Sol), são exemplos perfeitos dessa errante demanda por uma identidade própria. Ambos sentem um vazio interior imensurável, que não se preenche com o conforto e a despreocupação do mundo moderno – em Murakami, até um estado de guerra é tido como uma banalidade semelhante à de comprar de um mero bilhete de comboio – sendo que só na escrita do livro perfeito ou na satisfação de um desejo carnal irrefutável (respectivamente) poderá residir a razão que preenche uma fracção desse vazio que os acompanha ao longo da história.
A complexidade dos personagens é o que apaixona aqueles que lêem os romances de Murakami, pois em certa medida existe sempre algo com o qual sentimos uma vil relação. Porém o autor, com toda a sua mestria, faz questão de nos distanciar destes seus personagens, atribuindo-lhes características e defeitos – muitos deles relacionados com a vida sexual das personagens – nos quais preferimos não nos reconhecer.
A influência da música na sua narrativa
A obra Norwegian Wood deve parte do seu sucesso ao facto de Murakami se ter inspirado no tema homónimo dos Beatles para o seu título. Não é um caso único pois Dança, dança, dança também empresta o seu título à música dos Beach Boys e isso revela que grande parte da inspiração advém da sua ecléctica musicalidade. O próprio descreve a influência da primeira arte na sua vida, numa citação muito eloquente, no livro A peregrinação do rapaz sem cor:
As nossas vidas são como uma banda sonora complexa. Repleta de todo o tipo de escrita enigmática, notas musicais e outros sinais estranhos. É praticamente impossível interpretá-los de forma correcta, e mesmo que os consigamos interpretar, e transpor para os sons correctos, não há garantias que as pessoas entendam ou apreciem o seu significado.
As suas narrativas são bandas sonoras à espera de acontecer, mas isso é algo com o qual já não nos precisamos de preocupar, pois houve já quem se desse ao trabalho de compilar as mais de 3000 músicas que pertencem à colecção de vinil do autor e que podem ser encontradas ao longo das suas obras.
É certo que encontramos muitos outros autores que baseiam a sua escrita na música, não obstante o que separa Murakami do resto é não só a sua elevada obsessão – e para isso basta olhar para o seu mural de cerca de 10000 discos de vinil – como também a extensão do seu conhecimento musical. A sua fluência em jazz, folk, pop e música clássica é de tal forma avassaladora que chegou mesmo a publicar um livro de seis conversas que travou com Seiji Ozawa, um dos principais condutores orquestrais do mundo.
Um universo hipoteticamente mágico
O seu realismo mágico não se cinge apenas às personagens, albergando também o mundo onde elas se inserem. Murakami navega por entre mundos aparentemente distintos, sem recorrer a um vocabulário complexo ou narrativas demasiado abstractas. Tudo é questionável no seu universo, porém se existem (ou não) respostas, isso é algo que os leitores terão de procurar por si. Não se coloca a hipótese das histórias que conta estarem inacabadas, pois aquilo que procura fazer – e acaba por conseguir através da sua escrita crua – é incentivar as pessoas a ir além das suas palavras. Para si é fácil contar uma história através de um livro e dar o assunto por terminado, mas a forma como o faz transparece que cabe aos leitores completar a história da maneira que imaginar mais conveniente.
O que também facilita esta indagação mental é a forma algo vaga como retrata a sociedade. Apesar de todos os seus romances se desenrolarem maioritariamente em cidades japonesas, dificilmente almejamos alguma particularidade exclusivamente nipónica, como gueixas, quimonos, templos budistas e quartos forrados de tatame. Denota-se uma preferência pelo mundo moderno e ocidental, onde se veste calças de ganga, fuma-se cigarros ocidentais e come-se comida plástica. De certa forma, os seus mundos acabam por nos parecer familiares, ao ponto de não sentirmos necessidade de os contestar.
Esta descritiva permite encaixar sublimes elementos de fantasia que acabam por ser parte integrante daquelas realidades. Através destes, o autor dissolve não só as fronteiras entre culturas e lugares mas também entre a realidade e o sonho. De todas as obras, as que melhor ilustram esta fusão são Kafka à beira-mar, 1Q84 e Em Busca do Carneiro Selvagem. Nestas, os elementos fantásticos são de tal forma dissimulados na realidade narrada que o leitor não tem como desnudar a sua dimensão e o quão surreal seria se se deparasse com eles no mundo real. Podemos arriscar que estamos perante um Kafka dos tempos modernos? Acredito piamente que sim.
O homem
Rara é a obra (traduzidas para português) onde não exista pelo menos uma referência biográfica de Murakami, adicionada por outrem em rodapé. Regra geral, essas referências servem para associar determinados acontecimentos do romance à vida do autor. Por exemplo, na sua juventude Murakami costumava dar alguns concertos de Jazz, para ajudar nas contas da casa e mais tarde decidiu investir num bar de Jazz, no qual escreveu os seus dois primeiros romances, futuro esse que ditou à sua personagem Hajime (A Sul da Fronteira, A Oeste do Sol).
Outro exemplos são Kafka Tamura (Kafka à beira-mar) e Tengo (1Q84), dois personagens que ambicionam conseguir aproveitar a vida mundana mas acabam por ser empurrados para fora do status quo pelas circunstâncias da vida. Isto é um claro reflexo da juventude de Murakami pois, enquanto a generalidade da sociedade japonesa terminava os estudos, ingressava no mercado de trabalho e passado algum tempo casava, a sua vida tomou o curso inverso.
Para além destes acontecimentos pontuais, a grande maioria dos seus protagonistas partilha também da sua paixão pela música e da sua queda para a narração escrita. Mas para si o foco e o talento de nada servem se não forem trabalhados e para isso considera que a resistência física é de extrema importância para se ser um romancista.
Levando à letra a frase “corpo são, mente sã”, Murakami afirma que se após uma semana, a escrever 3 a 4 horas por dia, nos sentimos cansados, então podemos esquecer quaisquer intenções de criar um romance. Nesta corrente de pensamento, questiona-se: porque é que Murakami consegue consegue criar sucesso atrás de sucesso? Porque é um ávido maratonista, pois claro! O próprio começou a correr após ter iniciado a sua carreira como escritor – talvez por ter chegado àquela conclusão – e, como era de esperar, passou a incutir essa mentalidade desportiva aos seus personagens. Porém o desporto que tendem a preferir é a natação por considerarem ser uma modalidade mais completa e que requer uma coordenação dos 3 traços que, segundo o autor, prefazem um escritor de sucesso: foco, talento e resistência.
Sem dúvida que o interesse dos fãs deste romancista proveniente do país do sol nascente vão além das badaladas obras que cria e para os mais curiosos deixamos aqui um miminho biográfico, brilhantemente ilustrado por Ilana Simons.
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