Alexandra Lucas Coelho em dois actos: “Apocalipse é transformação”

Alexandra Lucas Coelho em dois actos: “Apocalipse é transformação”

25 Novembro, 2016 /
Fotografia de Vitorino Coragem

Índice do Artigo:

A segunda parte da entrevista do Henrique Mota Lourenço à escritora Alexandra Lucas Coelho.

Na segunda e última parte da entrevista com Alexandra Lucas Coelho, descobrimos Gilberto Freyre, escritor brasileiro, e Dirk Van Hogendorp, general de Napoleão Bonaparte, figuras históricas a descoberto em Deus-dará, romance editado em Novembro pela Tinta-da-China. Na reta final da conversa analisam-se as eleições para a prefeitura do Rio de Janeiro e o futuro de Marcelo Freixo na política brasileira.

Voltemos ao tópico dos personagens universitários em Deus-dará

A literatura não tem a ver com a representação estatística, isso seria uma coisa demasiado esquemática. Eu estava preocupada em convocar os vários mundos que conhecia do Rio: favela, morro, cracolândia, Cosme Velho, um Rio que aparece relativamente pouco, fora do Rio das praias. Interessava-me invocar todas as minhas experiências nestes lugares, e é aí que entra a parte autobiográfica, a experiência da cidade. Queria transportar isso para o livro, e foi o que aconteceu com as personagens: o Lucas trazia-me o universo dos sem-teto, a experiência do abandono, o choque de quem vem de fora e entra no Rio não sendo branco. É a personagem que abre o livro, e isso não acontece por acaso. Este livro passa-se no Cosme Velho porque eu morei lá. Tive a sorte de morar num anexo de um jardim, que não é exatamente o jardim deste livro, se inspira nele. Mas a casa daqueles irmãos [Zaca e Judite] só existe na minha cabeça.

No entanto, é dos espaços descritos com maior detalhe no livro.

Essa casa não existe. Morei numa casa de pedra normalíssima dos anos 40. As únicas personagens no livro diretamente inspiradas em algo são as duas cachorras e o jardineiro. Aquela ladeira não está sequer identificada. O lugar daqueles Irmãos, a “Oca”, é inspirado num lugar real, onde viviam esses meus vizinhos. O lado autobiográfico não está num personagem, mas sim na experiência da cidade. Já a história do general Hogendorp, é absolutamente verdadeira, parte de uma pesquisa biográfica.

Há duas grandes personagens históricas neste livro, que aliás interrompem a narrativa em vários momentos. São elas o general Hogendorp e Gilberto Freyre, autor de Casa Grande & Senzala. Em relação ao primeiro: descobriu-o mesmo assim, numa lápide de jardim, ou já conhecia a sua história antes?

Fui muitas vezes àquela casa dos Irmãos, e sempre me fascinou essa lápide. Um dia esforcei-me por decifrar o que ali estava escrito. Copiei tudo para um caderno, tirei fotografias. Só quando já estava em Portugal é que encomendei a biografia do general Hogendorp. Passei semanas a pesquisar coisas sobre ele, muito depois de ter saído do Cosme Velho.

Foi uma coincidência mágica o facto este homem estar ligado à história do Brasil?

Completamente mágica. Quando comecei a investigar a história dele, houve várias coisas que achei muito poderosas. Primeiro, a influência dele sobre D.Pedro I. Mas não só isso: o general Hogendorp tem a ver com uma questão importante deste livro, o esquecimento. Fiquei completamente fascinada por esta personagem. Pensei: “este homem morreu anónimo, sozinho numa casa, depois de ter sido um grande general de Napoleão, enquanto Napoleão lhe deixava uma fortuna, e de talvez ter influenciado a independência do Brasil”.

Era precisamente dessa interrupção que falava. Uma pausa para tributo.

Uma das questões deste livro é a dos mortos que não têm sepultura, não têm descanso. Isto também serve para os mortos da nossa História. O facto de Portugal ter o Padrão dos Descobrimentos e o Mosteiro dos Jerónimos sem, por outro lado, haver o contraponto de homenagear e prestar tributo aos milhões de pessoas que matou e escravizou, é crucial para que este livro aconteça. Hogendorp foi meu vizinho, embora tenhamos vivido em épocas diferentes, e é aí que entra o “buraco negro”, a coincidência de dois tempos. Talvez este homem tenha inspirado D.Pedro I a dar o Grito do Ipiranga — é um facto histórico que o Rei o visitava assiduamente, tendo-o honrado, sepultando-o no Cemitério dos Ingleses da Gambôa. Hoje é uma figura esquecida.

Quanto a Gilberto Freyre, como se cruzou com a sua história?

Fui a casa dele quando estive no Recife. A casa está cheia de objetos, livros, licores, imagens, amuletos, como se Freyre tivesse guardado uma espécie de pequeno mundo representativo do que estudou, do que lhe interessou. É importante no livro pela relação com o salazarismo. Cada parte, Freyre e Salazar, usou da outra o que queria. Casa Grande & Senzala não era a obra favorita de Salazar, mas houve livros posteriores em que o autor fixou a sua teoria do lusotropicalismo, conveniente na altura em, depois da 2ª Guerra Mundial, Portugal tinha de apresentar um discurso nas Nações Unidas, quando já não era possível defender a existência de colónias. As verdades não se excluem. Casa Grande & Senzala é extraordinário, basta lê-lo para ver como não iludiu os horrores do colonialismo português.

O livro distingue-se por não fazer a apologia do império e recusa-se a glorificar obras e feitos de quem matou milhões de pessoas, provocando até Os Lusíadas. Sentiu que era importante realçar este lado omisso do livro de Camões?

Há uma cutucada no Camões [risos]. Mas não se trata de fazer um julgamento histórico. Não gosto da palavra julgamento, até porque não se pode julgar os acontecimentos de 1500 à luz de 2016. O que interessa é trazer o passado para o presente, saber que o presente é o passado, que o futuro será esse passado, a forma como o enfrentamos. Interessa abrir os armários, tirar os esqueletos cá para fora, deixar os fantasmas e pôr toda a gente a falar. Nada me dá mais alegria do que pessoas da tua idade [o entrevistador anda pelos vintes] escreverem sobre o livro. Pensei muito quando estava a escrever, sobretudo quando parei para pesquisar. Pensei na tua geração, uma geração que tem ecrãs portáteis, que vive entre telefones. Pensei muito nisto, sobretudo porque queria convocar esse universo do passado. Os Lusíadas são uma obra prima suprema, mas Camões deitou água benta por cima de violências horríveis, como Vasco da Gama, que trucidou troncos, pernas e braços, os espetou em paus. Vamos falar disso, explicar o que aconteceu, porque os mortos estão vivos agora. Os mortos e os escravizados tiveram filhos, que tiveram netos, que tiveram bisnetos. São essas pessoas que estão debaixo dos pés do Brasil agora. Não se trata de substituir uma versão pela outra, mas sim de tudo ter acontecido. Eles [navegadores] foram bravíssimos, audaciosos, puseram os vários mundos a encontrar-se. Não vou contra isso mas já lhes prestámos tributo. Podemos olhar agora para os mortos e escravizados?

Cita, a dado momento, estatísticas que dizem que Portugal, sozinho, desterrou 5,8 milhões de africanos. Como lidou com a descoberta destes dados?

Portugal, que tem o tamanho que tem, foi o maior esclavagista da História transatlântica. Nem Inglaterra, Espanha, França e Holanda têm o passado de Portugal. Segundo Racismos, de Francisco Bethencourt, Portugal foi responsável por 47% de todo o tráfico colonial no Atlântico, enquanto que os rivais europeus ocupam os restantes 53%. Isto dá uma dimensão.

Muitas destas pessoas já eram escravizadas em África? Sim. Havia esclavagistas em África? Sim, e então? Portugal agarrou nestas pessoas e transportou-as em viagens absolutamente mortais para fazer a colonização de um país durante 322 anos. Isto é pouco? Dentro das universidades, nos departamentos de História, de Antropologia, de Sociologia, há muito que isto já é enfrentado, mas cá fora ainda existe a ideia do “isso já foi há muito tempo. O que temos a ver com isso?.” Mas qualquer português que tenha vivido um pouco do Brasil sabe que o modelo da sociedade escravocrata, nas suas hierarquias, nas suas tensões, vem daí. É uma das heranças.

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Fotografia de Vitorino Coragem

Império, uma das suas personagens femininas, tenta provar isso algures no livro, dizendo que a cultura da “gostosa” e do estupro remonta precisamente à colonização portuguesa.

O Brasil foi fundado no estupro da negra, que Portugal mitificou como o “português tão suave que não se importa de dormir com uma negra”. Estamos a falar de violação, seja ela mais cruel ou assente ela no padrão da mulher que simplesmente não tem alternativa. Isto é violação na mesma. Depois de ter a experiência do resultado do colonialismo espanhol, de ter coberto o colonialismo otomano, inglês, francês, fui para o Brasil para ser atravessada pela minha própria História, enfrentar os meus próprios fantasmas. Se não formos nós a escrever sobre isso, quem vai ser?

Ainda neste tópico da misoginia e abuso da mulher, pergunto-lhe se é a favor do fim do Baile Funk. Já abordou este fenómeno várias vezes, e neste livro volta a fazê-lo.

A questão do Funk é complexa. Respeito muito Hermano Vianna, um grande antropólogo brasileiro que tem um livro importante sobre esta questão [O Mundo do Funk Carioca], alguém que transportou o universo do Funk do gueto para o pensamento. Nesse tempo, o Funk não era o que é hoje, uma arma do tráfico. Voltamos à questão das realidades múltiplas: foi o Estado que permitiu e empurrou as coisas nesta direção, que guetizou o Funk. Mas não quero simplificar as coisas, contribuir para essa estigmatização. Ao mesmo tempo, também não quero ser paternalista e dizer: ”o Funk passa-se na favela. Tudo é bom no Funk”. Não, tenho horror ao machismo de boa parte do Baile, uma coisa de total subjugação da mulher.

Como é que este livro e os anteriores acabam ligados a Nelson Rodrigues, popular escritor machista brasileiro?

Nelson Rodrigues é o fantasma principal de O Meu Amante de Domingo [romance anterior da autora]. Aqui estão sobretudo os irmãos dele. Machado de Assis é importante para O Meu Amante de Domingo, mas Nelson Rodrigues é muito mais, o que aliás se inverte neste livro. O Machado aqui é mais importante porque é uma figura do Cosme Velho, e este livro constrói-se partindo de um jardim nessa zona do Rio. Tive uma enorme sorte: a figura central da literatura brasileira, e ao mesmo tempo o seu primeiro grande mestiço, era minha vizinha.

Sobre Machado de Assis ficam algumas dúvidas sobre a sua relação com o abolicionismo.

Machado optou por não ser um militante. Era a forma dele, o estilo, a personalidade. É uma figura muito enigmática, também por isso. Era um abolicionista, mas a forma como se exprimia não era direta. Eu quis transmitir essa complexidade, sem concluir coisa nenhuma. Quis também prestar tributo à mulher dele, a portuguesa Carolina Xavier de Novaes, bem como a seu irmão, Faustino. Os machadianos saberão com certeza, mas para os portugueses no geral as figuras de Carolina e seu irmão estão esquecidas.

Graficamente, Deus-dará muda também a forma dos seus livros enquanto objeto visual, com a questão das imagens e das palavras que formam figuras.

Deu-me muito prazer convocar todas as linguagens que me apetecesse. Deus-dará alimenta-se de muitas coisa, mas idealmente encontra a sua forma. As imagens foram acontecendo naturalmente: já tinha alguns postais, e houve um momento em pensei na imagem do trenzinho no morro do Silvestre, a caminho do Corcovado. Depois, a falar das pipas [papagaios de papel] lembrei-me de que os vários nomes para as pipas pudessem aparecer com a forma desse objeto. Aí nasceu o texto em forma de desenho.

Queria falar na questão do Apocalipse, que parece chegar a dada altura. Este Apocalipse prende-se com a descida do morro, que “vai partir essa porra toda”. Acha que este morro, descendo, seria o fim do mundo dos bacanas e do metro quadrado que é o Leblon?

Sempre ouvi dizer “o morro vai descer”, no sentido de as pessoas se juntarem e revoltarem contra a desigualdade. A questão do Apocalipse aqui é mais ampla: podemos pensar no livro como os sete dias do Apocalipse, como os sete dias do Génesis, ou ainda como as duas coisas ligadas. Apocalipse é transformação, o Génesis que sucede ao Apocalipse e o Apocalipse que sucede ao Génesis. Há um recomeço, uma espécie de movimento cíclico. A certa altura o Tristão fala no Apocalipse como “já estando aqui.” Esse clima vem da parte inicial do livro, o dia 21 de Dezembro, em que os maias tinham previsto que o mundo acabaria. Apocalipse é a vida diária do morro, de todos os que têm de acordar às cinco da manhã, pegar três transportes e fazer duas horas de caminho para trabalhar na outra ponta da cidade. É a vida de quem não tem saúde e o Estado abandona, empurra para guetos. Todos os dias se dança sobre as ruínas. Há em Deus-dará uma citação de Paulo Mendes da Rocha, prémio Pritzker de arquitetura, em que ele diz que: “manter as pessoas na periferia é mantê-las aflitas.” Tirar o direito à cidade é manter num estado total de aflição. Estas pessoas são excluídas de pensar a cidade, porque enquanto são mantidas em aflição não estão a pensar. O morro não desce porque está todos os dias ocupado em sobreviver.

Aproveitando o facto de tocar nesse ponto tão atual, pergunto-lhe se acha que as esperanças e as espectativas destas personagens — as lutas pela legalização do aborto, das drogas leves, contra a violação — não parecem mais distantes com a eleição do perfeito Crivella.

As pessoas estiveram a batalhar e por muitos poucos votos o Crivella ganhou. O narrador enumera a certa altura os vários “Brasis” que existem dando a ideia de um Brasil pendular. Ora se sai para a rua para lutar por todos estes direitos, ora vemos na rua os nostálgicos do Golpe Militar, da ditadura. O Brasil sempre viveu nessa pendulação e agora vai ter um retrocesso. É quase impossível imaginar como é que um “bispo” da Igreja Universal do Reino de Deus vai ser o prefeito de uma cidade como o Rio. Vai haver um momento de depressão, mas a reação a isso tem de ser a luta, a construção. E agora existem todas estas pessoas vindas da periferia que também estão no centro das coisas, a vivê-las.

Freixo poderá “voltar à superfície”?

A minha percepção, estando fora, é de que Freixo está mais maduro. Juntou mais gente, está com mais força. Não existe neste momento um político no Brasil que possa reunir algumas das características que Freixo reúne. É um homem com uma ficha “completamente limpa”, ninguém questiona a sua honestidade. Mesmo os inimigos, que o podem chamar de comunista, não o associam a esquemas duvidosos. Mas ele é mais uma figura do Rio, caberá ver ainda como é que se pode projetar a nível nacional.

A ideia da “terra sem mal”, um princípio antropofágico, sobrevive nos dias de hoje?

A “terra sem mal” é como que a tradução da ideia de utopia, aquilo que não se atinge mas que precisa de estar ao nosso lado. Se pensarmos nisso como um lugar a que aspiramos, em que a morte não será uma violência, em que a violência do Rio não existe, aproxima-se da ideia utópica. Acredito em tentar fazer tudo isso nesta vida terrena, neste planeta que temos. Para os crentes, há sempre esta ideia de que depois da vida terrena teremos acesso a um outro mundo maravilhoso. Gosto de acreditar que vale a pena lutar para que a maravilha possa existir em cada momento, em cada encontro. Os índios têm muito para ensinar, a curiosidade pelo outro, o cruzamento humano, vegetal, minera e animal neste planeta. Está tudo cá, e é assim que deve ser. É uma luta, como existe em todos os organismos que estão vivos.

Autor:
25 Novembro, 2016

O Henrique Mota Lourenço é redactor de cultura do Shifter. Estuda Jornalismo na Escola Superior de Comunicação Social, em Lisboa.

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