Fica na tua zona de conforto e não sejas empreendedor

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Foto de Austin Distel via Unsplash

Fica na tua zona de conforto e não sejas empreendedor

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Num mundo em competição, em que tudo acelera mais e mais, caminhar lentamente é um ato revolucionário.

Vivemos numa sociedade viciada na apologia do risco e da insegurança, talvez porque seja demasiado trabalhoso encontrar a segurança e o conforto. A dialética motivacional dos pasquins travestidos de livros é disso o exemplo máximo: as secções “espirituais” das livrarias estão contaminadas por letras garrafais que prometem mudar-te a vida, revolucionar-te o espírito, apresentar-te um caminho novo.

O primeiro problema desta lógica é supor que os autores, os “gurus” dessa mudança têm a autoridade moral para te guiar nesse percurso. Quase nunca falamos de profissionais com formação em psicologia, com abordagens psicoterapêuticas validadas, mas sim pessoas comuns a quem aconteceu uma sorte extraordinária ou um azar trágico. Frequentemente, no entanto, o discurso tem méritos. A motivação surge de quem conseguiu na vida alguns objetivos centrais – empresas bem sucedidas, viagens épicas, reconhecimento profissional e pessoal –, mas sempre caímos na falácia do exemplo individual, do “special one” que se destaca do grupo (por sorte ou por mérito ou por ambos).

Também raras vezes olhamos o lado de lá da história, o contexto em que o sucesso germina, como as famílias abastadas ou as heranças. A educação e o método. Bem mais interessante seria uma autoanálise franca e sem pudores acerca dos feitos que alcançamos: porque é que cheguei aqui? Teria aqui chegado se fossem outras as minhas condições de vida, se tivesse nascido noutro país, se tivesse nascido noutra pele ou noutro corpo?

Um livro que promete mudar-te a vida, revolucionar-te o espírito e apresentar-te um novo caminho acaba, na maior parte das vezes, a fazer-te perder tempo, dinheiro e a acumular frustrações novas em cima das frustrações que, em primeiro lugar, te tinham motivado a comprá-lo.

É que neste negócio da motivação e do empreendedorismo, fracos são aqueles que caem na infelicidade de uma relação tóxica, no azar de uma doença terminal, no infortúnio da perda de um ente querido. Neste negócio, o ónus é suavemente colocado nos ombros da vítima e, com esse peso em cima, grita-lhe que mude rapidamente, radicalmente, agressivamente. E como tudo isto se constrói em bases de barro, sem evidência científica, não é difícil que pessoas com maior stress emocional comecem a acreditar que é delas a culpa da relação violenta, que é delas o azar da doença, que é delas o infortúnio da morte. Porque não “acreditam” o suficiente. Porque não “saem da sua zona de conforto”.

É provável que esta seja a história mais antiga do mundo. A de quem, mergulhado em mágoa, procura sabe-se lá aonde uma luz que guie o caminho. Mas a nova sociedade da tecnologia e da velocidade transformou este processo numa asfixiante batalha pela despersonalização. O que se exige é uma mudança, sem rumo, uma mudança sempre violenta. Não existem as ferramentas para a mudança, mas apenas a culpa como estímulo para a imoralidade económica de quem se quer vender como salvador, aproveitando-se da fragilidade humana.

Este ambiente claustrofóbico promove na nossa sociedade a sensação de que nunca estamos no sítio onde devemos estar. Diz-nos que, independentemente daquilo que somos, poderíamos ser mais, deveríamos ser melhores. Esquecemos o “conhece-te a ti mesmo” e vivemos no “foge de ti mesmo”. Desejam-nos moldáveis, flexíveis, empreendedores, mas recusam-se a dar-nos o tempo e o espaço para encontrar dentro aquilo que queremos trazer para fora. E de tanto nos pedirem que abandonemos a nossa zona de conforto, de tanto nos exigirem sempre mais, estamos todos um pouco esquecidos daquele lugar interior onde deveríamos ir muitas vezes beber as nossas próprias amarguras e os nossos próprios medos. Olhar para dentro, através de uma janela qualquer (que apenas nós conhecemos), e reconhecer o perfil da nossa insegurança. A aceitação daquilo que nunca seremos é que permitirá atingir a tranquilidade que todos procuramos. Deitar fora esta ansiedade coletiva de andar atrás dos desejos que outros nos impõem.

Acho que o que quero realmente dizer é que talvez seja melhor viver tranquilo junto dos nossos próprios medos reais do que viver uma felicidade postiça à conta da vontade dos outros.

Por isso, fica na tua zona de conforto. Não sejas empreendedor. Valoriza os teus pequenos passos. O crescimento que conseguires será orgânico e real. Num mundo em competição, em que tudo acelera mais e mais, caminhar lentamente é um ato revolucionário.

Índice

  • Pedro Ramos

    Pedro Ramos estuda medicina. Tem interesse nos temas da saúde, política e sociedade, e na forma como essas vertentes se relacionam. Nas horas vagas vê filmes, tira fotografias e escreve poemas.

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