“Se não ocupares o teu lugar, ninguém to irá dar. O futebol é a metáfora disto tudo”

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Ilustração de Joan Negrescolor

“Se não ocupares o teu lugar, ninguém to irá dar. O futebol é a metáfora disto tudo”

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Subcapítulo "Um Bastão a Rachar", inserido no capítulo 19 "Corte ao Sexismo - O Futebol Feminino contra o Patriarcado Desportivo Francês" do livro "Uma História Popular do Futebol", de Mickaël Correia, publicado pela Orfeu Negro em 2020, com tradução de Luís Lima.

Em Novembro de 1991, após sete Campeonatos do Mundo oficiosos, o futebol feminino entrou na arena do futebol‐negócio com a organização, na China, do primeiro Campeonato do Mundo Feminino de Futebol, sob os auspícios da FIFA. A selecção dos Estados Unidos venceu com brio a final disputada com a Noruega diante de 63 000 espectadores, tornando‐se, depois, a melhor selecção internacional, ao conquistar os títulos mundiais de 1999 e 2015, além de quatro títulos olímpicos. Praticado nas comunidades italiana e latina, o soccer1 também se desenvolveu nos Estados Unidos como actividade desportiva escolar feminina ou mista. Enquanto o futebol americano, o hóquei no gelo ou o beisebol são considerados desportos autenticamente nacionais e inerentemente masculinos, o soccer tornou‐se particularmente popular entre as mulheres no final dos anos 1990: metade dos 8 milhões de jogadores de soccer americanos são mulheres. Um êxito impressionante junto das mulheres, que levou a uma média de 450 futebolistas por 10 000 habitantes na América do Norte, em 2014, contra apenas 71 na Europa.

Em França, foi preciso esperar por um quarto lugar no Mundial Feminino de 2011 para que a modalidade conquistasse timidamente o coração dos adeptos e das atletas. Depois do deplorável espectáculo desportivo e mediático proporcionado pela selecção masculina em 2010, durante o Mundial da África do Sul2, o público ficou encantado com a selecção feminina, tão calorosa e talentosa. Cerca de 2,3 milhões de telespectadores franceses assistiram à meia‐final entre as selecções de França e dos Estados Unidos, uma audiência recorde sem precedentes para o futebol feminino. «Tivemos um verdadeiro sentimento de simpatia, as pessoas identificaram‐se com esta equipa», disse Bruno Bini, seleccionador da equipa feminina durante esse Mundial. «É uma espécie de fenómeno sociológico. Numa sociedade onde os ricos estão a ficar mais ricos e os pobres cada vez mais pobres, onde não há muito trabalho, os Franceses viram 21 raparigas simples levar a sua avante. Viram 21 raparigas comuns com um treinador comum, e gostaram.»

No entanto, a partir de 2005, com a sua insistência em tentar governar os corpos das jogadoras, a FFF empenhou‐se numa verdadeira política de «feminização» das futebolistas. As francesas tiveram de posar nuas como parte de uma campanha de promoção do futebol feminino, em 2009; a modelo e esposa de jogador Adriana Karembeu foi recrutada como embaixadora da prática feminina, os «dias de saia» foram organizados nos grandes clubes para ensinar as jogadoras a usar um tailleur ou maquilhagem e o programa escolar da FFF para raparigas foi designado «Le Football des Princesses» («O Futebol das Princesas») em 2011, com um reforço intenso do cor‐de‐rosa.

Obcecada pela «feminilidade» das futebolistas, a Federação chega mesmo a tender para a lesbofobia. «Todas as raparigas que não eram suficientemente femininas eram suspeitas de serem homossexuais e algumas foram menos seleccionadas para a equipa francesa», diz Annie Fortems. Uma discriminação das jogadoras lésbicas que expressa toda a ansiedade da Federação, que teme ver a figura da futebolista – tal como a do jogador gay – vir perturbar as relações sociais tradicionais de sexo e de género. «Esta injunção à feminilidade, declinada no singular como se só houvesse uma forma de ser mulher, é permanente e atravessa todos os sectores da vida [das futebolistas]: ter o cabelo preso e comprido se possível, usar maquilhagem fora do campo, mostrar‐se na televisão ou em eventos com vestidos e saltos altos, etc.», diz, indignada, a socióloga do desporto Béatrice Barbusse. «As desportistas são primeiramente apreciadas pelo seu corpo visto, mais do que pelo corpo “para si”. Resumindo, estão a jogar futebol para si próprias ou para os olhos dos homens? Estamos diante de uma instrumentalização institucional e política do corpo das mulheres e, portanto, das futebolistas.»

Esse sexismo e homofobia sistémicos estão a levar os movimentos feministas a entrar no campo do futebol para melhor denunciar a dominação masculina na indústria desportiva. Um primeiro passo foi dado a nível europeu durante o Campeonato do Mundo de Futebol masculino, em 2006, na Alemanha. A abertura, em Berlim, de Artemis, um complexo gigantesco com 3000 metros quadrados para trabalhadoras do sexo, poucos meses antes da inauguração da competição, provocou a ira de alguns grupos feministas. Em Janeiro de 2006, a Coalition Against Trafficking in Women denuncia com estrondo esse hipermercado do sexo adjacente ao evento desportivo numa campanha mediática baptizada de «Comprar sexo não é um desporto!». Por sua vez, a associação alemã para a defesa dos direitos das trabalhadoras do sexo decide alertar a opinião pública sobre a exploração humana de 40 000 mulheres jovens oriundas da Europa de Leste. «Quando se vê que o próximo Campeonato do Mundo de Futebol masculino está associado à prostituição, sentimo‐nos duplamente afectadas, enquanto mulheres e enquanto ex‐jogadoras e pioneiras», insurge‐se Annie Fortems, na qualidade de presidente da associação Les Pionnières du Football Féminin. «Há 35 anos, eram as mesmas pessoas, com o seu sexismo absoluto, que tivemos de suportar e combater antes de nos podermos impor. Hoje, ainda, a dignidade das mulheres é sacrificada sem vergonha no altar do Deus futebol e do Dinheiro rei. Esta é a triste prova, se alguma ainda faltasse, de que o sexismo e o desprezo pelas mulheres são difíceis de abater no universo da bola.»

Em França, algumas militantes feministas vão‐se apropriando gradualmente dos relvados, cansadas das projecções sexistas ou homofóbicas dos jogadores, dos comentadores desportivos e dos dirigentes franceses. O ex‐campeão mundial de 1998, Didier Deschamps, então técnico da Juventus de Turim, disse, em 2007, a respeito da cor rosa da camisola da equipa: «Esta cor não me agrada, porque em França é a cor dos gays.» Quanto a Bernard Lacombe, dirigente do Olympique Lyonnais (cuja secção feminina é uma das melhores da Europa), em Março de 2013 arrotava o seguinte: «Não falo de futebol com as mulheres. […] Elas que tratem dos seus tachos e panelas e tudo correrá bem melhor.»3

Criada em 2012, em Paris, a equipa de futebol das Dégommeuses é uma formação politicamente empenhada nos relvados na luta contra o sexismo, as fobias LGBT e todas as formas de discriminação. «Tentamos lutar através do desporto e dentro dele, o que significa, em concreto, proporcionar um espaço sereno para que lésbicas e rapazes trans, sobretudo, possam estar tranquilamente num campo de futebol», explica Marine Romezin, uma Dégommeuse. E acrescenta: «A constatação é esta: se não ocupares o teu lugar, ninguém to irá dar. O futebol é a metáfora disto tudo, nós investimos o espaço em campo.» A equipa presta ainda uma atenção muito particular ao acesso ao desporto por parte dos refugiados e dos mais precários, apelando regularmente às instâncias dirigentes para que combatam a homofobia e o sexismo no futebol. Além das suas actividades desportivas e políticas, as futebolistas‐activistas convidaram, em Junho de 2012, uma delegação do Thokozani Football Club4, equipa feminina sul‐africana que reúne jogadoras lésbicas e transexuais oriundas dos townships de Durban, para participar numa semana de acção contra as violências sexistas e lesbofóbicas. Quatro anos mais tarde, à margem do Euro 2016 masculino, as Dégommeuses também organizaram os encontros baptizados de Foot for Freedom, que incluíram um torneio de futebol misto, com refugiados perseguidos nos seus países por causa da sua orientação sexual ou identidade de género.

Muitas equipas femininas já não hesitam em «ocupar o seu lugar», reunindo‐se em competições amadoras como a Coupe Bernard Tapine, um torneio parisiense de futsal5, que, desde 2015, reúne equipas como as Cacahuètes Sluts, o Olympique de Marcelle ou as Joga Bonitas. «[Jogar futebol] é uma questão política porque os corpos das mulheres, e das lésbicas em particular, foram objecto em todos os tempos de um tal controlo social e, de alguma forma, de uma tal reprovação, que ver agora essas raparigas reapropriarem‐se dos seus corpos é um verdadeiro prazer», acrescenta a Dégommeuse Veronica Noseda, antes de concluir: «Ainda existe um poder enorme exercido sobre nós.»

Desde os primeiros sulcos emancipatórios cavados pelas valentes pioneiras dos anos 1970 até a militância das Dégommeuses, o futebol feminino conseguiu rachar a fortaleza da virilidade e da heteronormatividade encarnadas pela FFF, e esboçar um imaginário em torno do futebol que está a léguas do modelo de feminilidade veiculado pelas instituições desportivas. É um trajecto de longo curso que continua cheio de armadilhas. «Trinta anos depois, a cidade de Reims pôs finalmente uma placa no Estádio Auguste‐Delaune com os nossos cinco títulos de campeãs francesas», suspira a antiga avançada‐centro de Reims Ghislaine Royer‐Souef. «Antes, só constavam os dos homens…»


1- A palavra é uma contracção de assoccer, que, no século xix, se referia ao jogador de futebol‐associação, tal como se designava rugger o jogador de râguebi.
2- Se os Bleus foram rapidamente eliminados do Mundial em 2010, viriam também a sofrer o estigma do público e dos meios de comunicação devido às suas escapadelas, sobretudo na sequência de uma greve aos treinos em apoio ao jogador Nicolas Anelka, expulso depois de ter insultado o treinador Raymond Domenech.
3- Três anos volvidos sobre essas observações sexistas, em Novembro de 2016, Nathalie Boy de la Tour tornar‐se‐ia a primeira mulher presidente da Liga de Futebol Profissional.
4- O nome presta homenagem a Thokozani Qwabe, jovem futebolista sul‐africana assassinada em 2007 por causa da sua homossexualidade.
5- O futsal é uma variante do futebol que se joga em equipas de cinco, num campo de andebol e com duas partes de 20 minutos. Nascido na década de 1930 na América do Sul, o futsal (contracção do termo espanhol fútbol de salón) começou por ser um desporto colectivo para os estudantes das Young Men’s Christian Associations (YMCA) latino‐americanas. A prática é regida por dois organismos, a Associação Mundial de Futsal (desde 1971) e a FIFA (a partir de 1989), que organizam as suas próprias competições.

Índice

  • Mickaël Correia

    Mickaël Correia é jornalista independente e vive em Paris. As suas reportagens e artigos incidem sobretudo nos movimentos sociais e na cultura popular. Nos últimos anos, esteve também implicado em momentos emblemáticos das novas práticas políticas autogestionárias em França. Colabora regularmente com o jornal Le Monde Diplomatique e o site de informação Mediapart. É ainda um dos co-fundadores da revista interseccional Jef Klak e membro da redação do jornal de crítica e experimentação social CQFD.

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