BTS, o seu ARMY e a reinvenção dos grupos de fãs no século XXI

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Imagem divulgação / BTS na ONU

BTS, o seu ARMY e a reinvenção dos grupos de fãs no século XXI

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Pensar em grupos de fãs, hoje, no universo pop, pressupõe olhar para os grupos com maior destaque nos Tops e Prémios a nível internacional, a sua presença em spots publicitários e, claro, nas manifestações que recebem dos seus fãs. E é aí que surge o ARMY, grupo de fãs do grupo de K-Pop BTS.

Pode um antigo lutador de wrestling norte-americano, que agora escreve livros de auto-ajuda, ter algo em comum com uma pré-adolescente que vive e estuda no Alto Minho, uma trabalhadora de software italiana e um jovem YouTuber indiano? Até há relativamente pouco tempo, talvez não tivessem, mas hoje encontram-se à distância a partilhar as mesmas músicas, o mesmo conteúdo exclusivo e, no limite, as mesmas causas. Pensar em grupos de fãs, hoje, no universo pop, pressupõe olhar para os grupos com maior destaque nos Tops e Prémios a nível internacional, a sua presença em spots publicitários e, claro, nas manifestações que recebem dos seus fãs. E é aí que surge o ARMY, grupo de fãs do grupo de K-Pop BTS.

O sketch do Saturday Night Live que serviu de objeto de análise a Henry Jenkins, mas também a outros autores que trabalham o fandom na Academia, “Get a life!”, é bastante representativo dos estereótipos que existem em torno do fandom de Star Trek, em particular (os Trekkies), mas que se aplicam aos grupos de fãs em geral. Pessoas “sem vida”, “feminizadas ou dessexualizadas”, “incapazes de separar a fantasia da realidade”. No caso do ARMY, alguns destes estereótipos também se aplicam à percepção que os outros, anti-fãs, têm de si — quem o diz são as próprias fãs, num questionário realizado para este ensaio, em maio do ano passado. Mas o ARMY resiste e vai demonstrando o seu apoio ao grupo, os BTS. 

Há múltiplos fatores que tornam BTS — Bulletproof Boy Scouts — um grupo pensado para chegar aos fãs. Antes de analisarmos o seu caso em concreto, importa fazer uma breve contextualização do estudo dos famosos e do fandom. Como lembra Ana Jorge no livro O que é que os famosos têm de especial?, “o indivíduo famoso é aquele cuja face é reconhecida por mais pessoas do que as que ele próprio reconhece”. No mesmo livro, a autora menciona que “a ideia de mérito e de ascensão social está subjacente à de celebridade, pelo que se identifica com o neoliberalismo”. A aquisição do estatuto de celebridade está também associada à conquista de algo que torna essa mesma celebridade alguém notável. 

Se, por um lado, essa conquista pode ter que estar relacionada com um talento “excepcional e inato”, por outro “também têm de se esforçar, e trabalhar, bem como mostrar‐se próximas das audiências, e ser capazes de parecer comuns” . Andrew Tolson, em “Being Yourself”: The Pursuit of Authentic Celebrity, refere que faz parte dos discursos das celebridades a ideia de se mostrar tal como é, apesar de “a projecção de uma imagem pública poder simultaneamente contribuir para uma forma de ‘ser autêntico’”. Por esse motivo, os fãs valorizam mais as celebridades que aparentemente não fazem o que fazem por dinheiro.

Se a celebridade existe num contexto neoliberal, é esse o mesmo motivo que faz com que a sua projeção e validação continue a existir. Para que existam na esfera pública, dependem da presença nos media, tradicionais ou alternativos, e “a sua vida privada também é tratada como parte da mercadoria cultural que é a celebridade” — como lembra Graeme Turner. Segundo Ana Jorge, “a capacidade de preservar e de gerir mistérios e silêncios é decisiva para escrever com melodrama a narrativa pessoal das celebridades numa cultura mediática concorrencial”. Esta visão de mercadoria foi o que fez com que a Big Hit Entertainment, agência e editora sul-coreana responsável pelos BTS desde o começo da sua carreira, investisse na aproximação ao fãs através de vídeos em estilo reality show, nos quais partilhavam um pouco sobre os seus dias e os seus processos criativos. 

Os “Beatles do século XXI”. O que há de especial nos BTS?

RM, Jungkook, V, Suga, Jin, Jimin e J-Hope juntaram-se em 2013 depois de se terem mudado de zonas recônditas da Coreia do Sul para Seul, a capital. Esta movimentação é bastante frequente no contexto sul-coreano, onde a indústria do K-Pop é uma das maiores e mais lucrativas. Nas academias de K-Pop que existem em Seul, formam-se jovens para serem performers, mas sobretudo para serem ídolos. E este é um dos pontos mais interessantes ao estudar o fandom dentro do K-Pop: estas bandas e estes artistas existem com e para os seus fãs. A visibilidade é conquistada em concursos televisivos, depois de formadas bandas — nas quais se pretende que exista diversidade nos membros, e que estes representem diferentes géneros musicais que se possam relacionar com diferentes pessoas, potenciais fãs. Foi num desses programas televisivos que os BTS se mostraram ao público, enquanto substitutos de uma banda que faltou à última hora. Na história que a Big Hit Entertainment conta, foi por terem poucos recursos económicos e pouca visibilidade que se começaram a filmar para chegar de forma mais direta aos fãs. 

Desde o seu surgimento que os BTS têm na narrativa que traça a sua História um percurso marcado por conquistas que, como Ana Jorge refere no seu livro, faz parte da construção da celebridade ou, neste caso, das celebridades. Desde 2013, o caminho tem sido sinuoso, o que tem representado uma motivação para o apoio do ARMY, mas a conquista do circuito norte-americano tem representado um crescimento exponencial. A conquista do território norte-americano significa a confirmação e validação do crédito da banda na música Pop, tornando-se maior do que o subgénero do K-Pop, mas o ARMY está um pouco por toda a parte. Existem grupos de fãs em todos os continentes, sendo que se identificam pela sua nacionalidade — ARMY Português, ARMY Indiano, ARMY Britânico, entre outros.

Pela sua capacidade de chegar a grupos de fãs heterogéneos, a uma escala mundial, e pelo facto de serem uma boysband cujos membros se apresentam também pela sua diversidade, os BTS têm sido apelidados de “Beatles do século XXI”. Numa entrevista concedida ao The Korea Herald, a propósito de um concerto que dariam no Wembley Stadium, Suga disse que “é uma grande honra” serem comparados aos Beatles, mas que querem “ser os BTS do século XXI”, ao que RM, líder do grupo, acrescentou que “todas as boysband populares na História da música foram sendo sempre comparadas aos Beatles” e que “é uma honra”. Enquanto grupo, vão mantendo um equilíbrio entre a demonstração de gratidão pelo que lhes vai acontecendo e os comentários positivos que lhes vão fazendo, e a afirmação de um lugar que querem que seja o seu, incomparável a outras bandas de sucesso.

E se no caso da Beatlemania (termo cunhado pela imprensa para se referir à euforia do fandom dos Beatles) os fãs surgem sempre como uma massa que corre atrás dos seus ídolos, no ARMY os fãs são parte integrante do grupo, e esse é um dos fatores mais distintivos que contribui para o seu sucesso mundial e para que os fãs queiram continuar a ser fãs. Há uma sensação de que não é uma relação unilateral. O estereótipo de alienação dos “fãs perturbados” (Jorge, 2014: 67) surge precisamente desse distanciamento e da ideia de que estas fãs, sobretudo mulheres, são “capazes de tudo para alcançarem os seus ídolos” (ibidem).  

ARMY + BTS = 💜

O nome ARMY foi criado pelos próprios BTS, em 2013, e é o acrónimo de Adorable Representative M.C. for Youth. O grupo tem um símbolo que o identifica (uma espécie de escudo), uma cor que o representa (roxo) e tem uma capacidade de mobilização em prol da banda ou das causas que esta apoia que tem chamado a atenção da imprensa internacional.  Num artigo de novembro de 2020 para a TIME, Kat Moon destaca essa capacidade de mobilização e um “nível de organização sem rivalidade, movido pelo desejo de ver os sete membros dos BTS deixar a sua marca em territórios inalcançados por outros grupos de Pop da Coreia do Sul” . A sua capacidade de mobilização deve-se à vontade e motivação de cada fã, é certo, mas também ao trabalho da Big Hit Entertainment, que criou uma das maiores ferramentas de organização de fandom alguma vez vista. Weverse é uma aplicação cuja utilização se destina exclusivamente aos fãs, e na qual os BTS vão comunicando com o ARMY. 

Ao contrário de grande parte das celebridades da indústria musical Pop, não possuem contas noutras redes sociais e canalizam todo o contacto e conteúdo exclusivo nesta mesma plataforma. Este é também o espaço para o ARMY, como um todo, poder comunicar e mobilizar-se. No conteúdo exclusivo, e pago, dos BTS no Weverse encontra-se merchandising, vídeos de aulas de coreano (Learn! KOREAN), o documentário sobre a história  da banda (Break the Silence), vídeos em que explicam os seus processos criativos ou de momentos de diversão uns com os outros (BTS behind e Run BTS!), um reality show que acompanha o seu dia-a-dia (BTS In The Soop), outro que acompanha as suas viagens (Bon Voyage), vídeos de tours, e outros tantos conteúdos exclusivos. Tinham, no momento da realização do questionário para este ensaio, em maio de 2021, mais de 10 milhões de fãs registados. Hoje contam-se já quase 15 milhões

Em Popular Music Fandom. Identities, Roles and Practices, Mark Duffet encontra um momento de viragem na relação dos fãs, entre si e com os produtos que consomem, no advento da democratização do acesso à internet. Para si, “a internet ofereceu novas e melhores formas de fazer mais facilmente” o que já fazia antes. No contexto do K-Pop, género que surgiu em 1992 na Coreia do Sul, os BTS entram em cena numa altura em que a internet já reunia as condições ideais para que os fãs se relacionassem entre si, mas também para que a sua música tivesse circuitos alternativos de distribuição e pudesse conquistar visibilidade sem dependerem da imprensa. 

Surgem também numa altura em que a indústria do K-Pop estava associada a ambientes de trabalho tóxicos, pressão e controlo, e as suas narrativas — até o seu nome “Bulletproof” — vieram contrariar todo esse lado negativo. Desde o começo do seu percurso que a suas músicas mostram a individualidade de cada ser humano, já que cada membro compõe músicas partindo da sua personalidade, falam sobre esse lado obscuro e os momentos em que não nos sentimos bem mas, acima de tudo, exaltam o amor próprio e a importância de cuidar da saúde mental. Este comprometimento ficou vincado no disco Love Yourself, composto por quatro partes, que lançaram em 2017 e que atingiu recordes de vendas. 

“Quem quer que sejas, de onde venhas, seja qual for a tua cor de pele, a tua identidade de género: fala por ti mesmo”

A ligação dos BTS a causas relacionadas com a saúde mental tornou-se bastante natural, à medida que a banda foi assumindo esse compromisso no seu trabalho. Também em 2017, lançaram a campanha Love Myself, que parte da premissa do disco Love Yourself, em parceria com a UNICEF para a campanha  #ENDviolence, cujo objeto é proteger crianças e jovens vítimas de violência. Nesta angariação de fundos, os próprios BTS e a Big Hit Entertainment doaram 500 milhões de Won Sul-Coreanos, uma percentagem da venda dos discos da série Love Yourself e a totalidade do valor do merchandising da campanha revertia a favor da mesma. No seguimento da campanha, RM discursou na Assembleia Geral das Nações Unidas e dirigiu o seu discurso a todos os que precisam de acreditar em si, utilizando técnicas discursivas que iam tornando claro que esta ação não era pelos BTS para si mesmos, mas dos BTS para o mundo:

“Depois de lançarmos o disco Love Yourself e a campanha Love Myself, começámos a ouvir histórias memoráveis de fãs nossos de todo o mundo, sobre como a nossa música os ajudou a superar dificuldades na vida e a começarem a amar-se a eles próprios. Essas histórias lembram-nos constantemente da nossa responsabilidade. Por isso, dêmos todos mais um passo. Nós aprendemos a amar-nos a nós próprios, por isso peço-te que “fales por ti próprio”. Eu queria perguntar a todos vocês. Qual é o vosso nome? O que te entusiasma e faz o teu coração bater? Contem-me a vossa história. Eu quero ouvir a vossa história, e quero ouvir as vossas convicções. Não interessa quem sejam, de onde sejam, a cor da pele ou a identidade do género: fala por ti!

Este discurso acaba por ser bastante representativo  da posição que têm adoptado enquanto grupo e do comprometimento com os fãs e o seu bem-estar. E foi também o motivo pelo qual novos fãs chegaram até ao ARMY. A partir desta angariação de fundos organizada pela UNICEF em parceria com a Big Hit Entertainment, uma jovem de 16 anos sugeriu na sua conta do Twitter que mais pessoas se juntassem a si para fazer uma doação e, em cerca de um mês, criaram “Once In An ARMY”, um projeto com perto de trinta organizadores e tradutores que dinamizam campanhas de angariação de fundos em prol de causas sociais e humanitárias.

Os BTS, o ARMY e o apoio a causas humanitárias 

A filantropia e preocupação com o outro não é exclusiva dos BTS nem tão pouco surgiu com o advento da internet. A diplomacia das celebridades tem contribuído para a construção da sua imagem pública que facilmente agradará ao grande público. Ana Jorge dá o exemplo do papel que Jane Fonda assumiu contra a guerra do Vietname, a mobilização de Bob Geldof para contribuir para a erradicação da fome na Etiópia através do concerto Live Aid, e todo o trabalho de aproximação da princesa Diana de Gales (Cooper, 2008 citado por Jorge, 2014: 46) como casos de sucesso que contribuíram para que organizações e associações “percebessem o potencial de chegar a audiências mais vastas, em discursos mais emocionais e susceptíveis de as sensibilizar e mobilizar através de celebridades e do entretenimento”. As Nações Unidas têm apostado nesse tipo de ação, inclusive através dos Embaixadores de Boa Vontade, entre os quais se encontram celebridades como Angelina Jolie, Catarina Furtado ou, mais recentemente, Milly Bobby Brown. 

As frentes de atuação dos BTS têm partido da premissa da campanha da UNICEF, o amor próprio, e vão desde a luta anti-racista à prevenção do suicídio, a garantia de condições dignas de vida, o cuidado com a auto-estima, a erradicação dos discursos de ódio. No fundo, os direitos humanos, de uma forma geral. O que diferencia este grupo de outros com ligações a causas filantrópicas e de preocupação com os direitos humanos é, por um lado, o facto de falarem sobre assuntos universais, que não dizem respeito a um território em particular e, por outro, a propriedade que têm a partir do seu lugar de fala. 

Por muito que na Coreia do Sul os BTS pudessem ser, inicialmente, apenas mais uma banda de K-Pop, noutros lugares a sua aceitação nem sempre foi fácil. Até chegarem à capa da Rolling Stone enquanto “a maior banda do mundo”, o percurso dos sete membros dos BTS foi (tem sido) desafiante. Enquanto o ARMY oferece o seu apoio incondicional, os media e os lugares institucionais têm sido mais resistentes. Apesar de a vontade ser chegar ao maior número de países possível, o objetivo principal do grupo parece ser um, que se tornou mais próximo com a conquista da capa para a Rolling Stone e com a primeira nomeação para os Grammys: chegar aos Estados Unidos da América. Apesar do sucesso na América, com idas recorrentes ao programa do Jimmy Fallon e uma participação no Carpool Karaoke com James Corden, um concerto no Tiny Desk, tops atingidos e nomeações para os Grammys, os BTS não chegaram a vencer nenhum grande prémio em concreto — facto que tem sido contestado pelo ARMY, que acredita estar relacionado com a nacionalidade da banda. 

Ao longo do último ano, a carreira de BTS tem sido pontuada com alguns momentos de confirmação do sucesso e recordes quebrados com a ajuda do ARMY, mas também têm sido vítimas de coreanofobia. Nos EUA, a Topps Company publicou uma série de cartoons “Garbage Pail Kids” dedicada aos Grammys, sendo que a única que apresentava violência física era a dos BTS — o que coincidiu com o movimento #StopAsianHate, criado em consequência de ataques violentos a asiáticos-americanos com a chegada da pandemia. Já no Chile, um sketch televisivo também colocava os BTS numa relação direta com a pandemia e com Kim Jong-un, líder da Coreia do Norte. Ao posicionarem-se contra estes ataques, os fãs posicionam-se publicamente contra o racismo e a sinofobia não tendo, necessariamente, de demonstrar o seu apoio aos BTS através de ofertas monetárias. Esta proximidade entre o que defendem e o que são é um fator relevante para que a relação perdure e para que cada membro do ARMY, na sua individualidade, encontre verdade e continue a mostrar o seu apoio. 

Outra forma de o ARMY demonstrar gratidão e tentar levar o grupo mais longe são os presentes enviados para os tais lugares institucionais que resistem ao fenómeno, que acontecem com pedidos para que se fale sobre eles ou se passe uma determinada música na rádio, mas que são replicados caso o pedido seja concedido. Serve de exemplo um ramo de flores enviado para a Kiss Fm, uma estação de rádio americana, com um cartão onde se lia a seguinte mensagem: “Thank you for Playing BTS for us. Your support means the world to ARMY! BTS ARMY” [Obrigada por passarem BTS para nós. O vosso apoio significa o mundo para o ARMY! BTS ARMY!”]. Desta forma, continuam a tornar possível que os BTS cheguem mais longe, sejam bem vistos e que o próprio ARMY seja visto como parte integrante da banda. 

Mas ainda que estes gestos do ARMY sejam de destacar por terem produzido algum efeito, os mesmos (ou semelhantes) não são exclusivos deste grupo de fãs. Em “O que é que os famosos têm de especial?”, Ana Jorge conta que sabe através de diretoras de revistas juvenis que, na altura do boom dos Tokio Hotel, as fãs escreviam e-mails para “pressionar as redações a dar mais destaque a essa estrela”, e combinavam a votação no top da MTV para garantir que os seus ídolos continuavam bem posicionados. 

Mesmo com todas as semelhanças que possam existir entre o fandom dos BTS e qualquer outro fandom, há questões que têm vindo a ser desconstruídas, e a capacidade de mobilização a uma escala mundial, assim como a preocupação com causas humanitárias, são os fatores que mais se têm destacado . No trabalho de jornalismo de dados “The Mobilizing Power of the BTS”, que Aditi Bhandari fez para a Reuters, vemos que o grupo de fãs dos BTS é bastante diverso e tem motivações pessoais para seguir a banda e juntar-se formalmente ao ARMY. Há jovens asiáticos que os vêem como um exemplo a seguir, empresários, jovens e não tão jovens adultos, e pessoas que garantem que para conseguirem o que o ARMY consegue não podem ser “apenas um grupo de miúdas histéricas”.

O engajamento com as causas que o grupo defende e o poder de mobilização espelham-se em ações como a apropriação de hashtags com imagens dos membros do grupo, para se sobreporem a conteúdo que incentive ao ódio, ou mesmo a compra de bilhetes para um congresso de Donald Trump em Tulsa, Oklahoma, que garantiram que, no dia em que se esperava que uma sala estivesse cheia de apoiantes do antigo presidente dos Estados Unidos — na altura novamente candidato ao mesmo cargo —, estivesse, afinal, quase vazia. A ação que serve de ponto de partida a Bhandari é a angariação de 1 milhão de dólares para o movimento Black Lives Matter, e o que torna o ARMY um grupo entusiasmante de ser estudado é a sua capacidade de responder a um apelo global tornando as ações locais. Foi por isso, e por uma questão de proximidade, que procurei o ARMY português para entender em que sentido é que os BTS podem ser um meio de contacto com a cultura sul-coreana e com causas humanitárias. 

ARMY Português: um caso de estudo

No ano de 2020, “Map of the Soul:7” foi o disco mais vendido em Portugal. Esta conquista fez com que os BTS atingissem um recorde nacional, sendo o primeiro projeto asiático a conquistar este feito. No principal lugar de encontro exclusivo para os fãs de Portugal, o grupo fechado BTS Portugal, há cerca de 5,3 mil membros que partilham e discutem ativamente as novidades do grupo sul-coreano, dão sugestões de restaurantes sul-coreanos, vendem e trocam merchandising e organizam angariações de fundos — estando entre essas doações os 803€ que reuniram para a União Audiovisual, um gesto que serviu de espelho à doação dos próprios BTS a um grupo de apoio a artistas coreanos que sofreram as consequências do paralisamento da cultura com a pandemia. Foi a partir deste grupo que surgiram os dados para esta análise do ARMY português, através de um questionário partilhado na página, que teve 100 respostas. 

O questionário dividia-se em três partes: a primeira tinha como objetivo recolher dados pessoais de cada entrevistado, como a idade, o género, a cidade onde reside e a ocupação atual; na segunda, com o subtítulo “Como cheguei até aos BTS”, as perguntas dirigidas aos fãs pretendiam traçar um perfil da sua relação com a banda e a presença que esta tem na sua vida; na terceira e última, as perguntas focavam-se na relação com a cultura sul coreana e a valorização do apoio humanitário por parte dos diferentes ARMYs. O anonimato foi garantido para que todos se sentissem à vontade para partilhar as suas experiências e motivações com total honestidade.

Entre as 100 respostas, as idades das pessoas inquiridas estava entre os 17 e os 53 anos, sendo duas destas menores de 18 anos, setenta e sete entre os 18 e os 30 anos, e dez maiores de 40 anos. Entre estas pessoas, 98% identifica-se com o género feminino e 2% com o masculino, sendo que existiam ainda as categorias “Não-binário” e “Outro” que não foram selecionadas por nenhuma das 100 pessoas inquiridas. Os lugares de residência são, além dos dados que dizem respeito à idade, os que nos permitem perceber que o ARMY se encontra em diversas zonas do país. Há uma grande predominância de Porto, Lisboa e Margem Sul, mas também lugares como Covilhã, Mirandela, Marco de Canaveses, Santa Maria da Feira, Praia da Vitória (Açores), Monção. Apenas com os dados que concernem à idade já é possível desconstruir a ideia de que o ARMY é “um grupo de adolescentes aos gritos” (Jenkins, 1998: 15).

Os dados da ocupação principal destas pessoas mostram que apenas 36% estuda apenas, e que a restante percentagem se destina a pessoas que trabalham ou estudam e trabalham em simultâneo, havendo também alguém que diz ser cuidadora dos seus pais. Algumas fãs chegaram até aos BTS a partir de outras e outros fãs, havendo casos interessantes como mães que chegaram até à banda através dos seus filhos (há pelo menos seis casos desses neste questionário), através de amigas, mas também a partir de outras celebridades que já seguiam e que partilharam conteúdo relacionado com a banda. Ainda que grande parte tenha chegado até à banda por “curiosidade” ou por sugestão de amigos e/ou familiares ou do algoritmo do YouTube, há respostas que vale a pena destacar como o discurso do RM para a Assembleia das Nações Unidas, o estudo do coreano e a visualização de uma série sul-coreana na qual V, um dos membros, dava voz à banda sonora. Grande parte das fãs confessa ouvir outras bandas de K-Pop além dos BTS, sendo as três mais mencionadas Seventeen (boysband), Black Pink (girlsband) e Stray Kids (boysband). Escolhem seguir os BTS e assumir-se como membros do ARMY por gostarem “das suas personalidades”, da “humildade”, das “mensagens que passam”, da música que criam e da dedicação para com as fãs. Há quem diga mesmo que a preocupação dos BTS com o amor próprio nas letras das suas canções a ajudou a ultrapassar desafios na sua vida:

O que te levou a seguir os BTS e não outro grupo de K-Pop?

O facto de serem a junção perfeita de 7 pessoas humildes, com personalidades cativantes, trabalhadores e todos, sem exceção, terem talentos incríveis. Além disso, promovem o amor próprio e pelo próximo, o que me ajudou muito na vida…

Resposta ao questionário

Cerca de metade das fãs que responderam ao questionário afirmaram não ter procurado logo um grupo de fãs. Uma das pessoas que respondeu que não, explicou que acabou por o fazer e juntar-se ao ARMY Portugal porque “poder partilhar emoções com pessoas que não conhecemos pessoalmente é muito mais fácil e libertador”. Acrescentou ainda que neste grupo não se sente “constrangida” e sabe que não será “julgada”, porque as pessoas do grupo “partilham o mesmo sentimento”. Para grande parte dos fãs, o caminho para chegar até aos BTS não foi o mais óbvio — sendo que não se deveu a uma grande visibilidade já existente — mas, também para grande parte, a língua nunca foi um obstáculo para se relacionarem com o conteúdo dos BTS. 

Gráfico de respostas do Formulários. Título da pergunta: A língua nunca foi um obstáculo?. Número de respostas: 100 respostas.
Fig.1 Dados sobre a relação com a língua coreana, a partir do questionário

Não sendo a língua um entrave, os três principais motivos que atraíram os fãs para este grupo e específico foram a preocupação com a saúde mental (76%), a relação com a cultura sul coreana (60%), o apoio a causas humanitárias (60%) e a música em si (93%). Para explorar melhor a relação entre os fãs e a cultura sul-coreana, questionei-os sobre o tipo de atividades que começaram a fazer desde que integram o ARMY. Apenas 23% disse que a sua relação com a Coreia do Sul se resume apenas à música dos BTS. 

Gráfico de respostas do Formulários. Título da pergunta: Seleciona as opções que se aplicarem à tua relação com a cultura sul coreana depois de começares a integrar o ARMY.. Número de respostas: 99 respostas.
Fig2. Dados sobre a relação com a cultura sul-coreana, a partir do questionário

As histórias sobre o impacto positivo que as letras das canções dos BTS, bem como o restante conteúdo produzido pela banda, multiplicam-se e não se cingem a pessoas de determinados contextos sociais e económicos, nem de determinadas faixas etárias. Um dos fãs mais inesperados, por todo o seu contexto envolvente enquanto lutador de wrestling, John Cena, disse publicamente que queria agradecer aos BTS por o terem ajudado num “momento de fraqueza”. John Cena e a fã que preencheu o questionário elaborado para este trabalho, acima citada, não se conhecem, há pouco que partilhem, mas ambos se sentem gratos pelo efeito BTS, num sentido abrangente, lhes ter mudado as vidas para melhor. Foi a pensar nas histórias de superação associadas ao universo BTS que surgiu a seguinte questão: 

Gráfico de respostas do Formulários. Título da pergunta: Numa escala de 0-10, sendo 0 nada e 10 completamente, quanto dirias que integrar o ARMY mudou a tua vida?. Número de respostas: 100 respostas.
Fig3. Dados sobre a relação com o ARMY, a partir do questionário

Uma vez que no estudo de caso do ARMY Português o principal objetivo era perceber qual a sua relação com as causas humanitárias que os BTS têm defendido; no fundo, quão profundo seria a sua relação com estes assuntos e em que medida é que a relação com a banda e dentro do ARMY é algo que acontece de dentro para fora. Xenofobia e Racismo foram os tópicos mais escolhidos, tendo 88,2% e 75,3% de respostas afirmativas, respetivamente. Cerca de 80 pessoas admitiram ficar mais despertas para estas causas desde que começaram a relacionar-se com o universo BTS, o que indica que, na prática, o discurso inclusivo e a preocupação de o incluir nas letras acaba por gerar consciência em grande parte das pessoas que os ouvem.  Em 100 respostas, numa escala de 0 a 10, 69% admitiu que esta dimensão é bastante diferenciadora dos BTS mas também do próprio ARMY (10), 14% considerou diferenciadora (9), 10% algo diferenciadora (8), 5% diferenciadora (7) e apenas 2% razoavelmente diferenciadora (6), sendo que ninguém selecionou os números abaixo de 5.

Gráfico de respostas do Formulários. Título da pergunta: Sentes que ficaste mais desperto/a/e para algumas das questões abaixo mencionadas desde que começaste a acompanhar os BTS?. Número de respostas: 93 respostas.
Fig4. Dados sobre a consciência pós-BTS, a partir do questionário

Era importante para o objetivo final deste estudo perguntar ao ARMY não só como se vê, mas também como sente que os anti-fãs o vêem. Como lembra Jenkins, falar enquanto fã é aceitar os rótulos que poderão vir na percepção de quem recebe as mensagens. Os gráficos seguintes mostram como é que o ARMY Português se sente visto — por ser um grupo de fãs, em específico de uma banda sul coreana:

Gráfico de respostas do Formulários. Título da pergunta: Sentes que existe preconceito por parte de pessoas que não ouvem BTS e não integram o ARMY?. Número de respostas: 100 respostas.
Gráfico de respostas do Formulários. Título da pergunta: E em relação a grupos de fãs, em geral?. Número de respostas: 100 respostas.
Fig5 e 6. Dados sobre como os não-fãs olham para o ARMY e os grupos e fãs, a partir do questionário

O que se observa, numa fase final do questionário é que por muito que o ARMY seja um grupo estabelecido internacionalmente e se tenha vindo a fazer uma desconstrução das características dos seus membros, as fãs portuguesas continuam a sentir os mesmos estereótipos que os fãs de Justin Bieber ou Tokio Hotel sentiam em 2014:

Quais dirias que são os maiores estereótipos dirigidos ao ARMY?

Que somos uma “cambada de miúdas histéricas” quando na verdade somos pessoas instruídas, com poder de compra, interessadas por causas importantes e em nome dos BTS ajudamos a tornar o mundo melhor.

Resposta ao questionário

O que parece ser comum ao ARMY português e ao ARMY dos restantes países é esta procura pela justiça e por “tornar o mundo melhor” com e pelos BTS. Através deste questionário, não foi possível entender com profundidade a motivação das fãs no que toca ao apoio a questões humanitárias e o quanto as temáticas do racismo, da xenofobia e das desigualdades sociais está presente nas suas vidas além dos BTS. Ainda assim, foi possível confirmar que a preocupação existe e que, em grande parte dos casos, advém das letras das canções dos BTS e das suas ações. 

O impacto do ARMY a nível internacional é, neste momento, indiscutível. Ainda que o fandom em Portugal ainda não tenha muita expressão, a comunidade está em constante crescimento e, provavelmente, esse crescimento resultará numa maior mobilização a nível nacional também. E no fundo, cada grupo é diverso e composto por múltiplas individualidades.

Bibliografia 
Jenkins, Henry (1998) «"Get a Life!” Fans, Poachers, Nomads», in Textual Poachers: Television Fans and Participatory Culture
Jorge, Ana (2014) O Que é Que os Famosos Têm de Especial?: A Cultura das Celebridades e os Jovens, Lisboa: Texto Editores
Tolson, A. (2001). «“Being Yourself”: The Pursuit of Authentic Celebrity», in Discourse Studies

Índice

  • Carolina Franco

    Carolina Franco tem escrito sobre cultura, juventude e direitos humanos. Cada vez acredita mais que está tudo ligado. É jornalista colaboradora no projeto de literacia mediática PÚBLICO na Escola, e co-editora do Shifter. Estudou Ciências da Comunicação no Porto, de onde é natural, tem pós-graduação em Curadoria de Arte e está a completar mestrado em Antropologia - Culturas Visuais com uma tese sobre a importância da representatividade trans* no audiovisual.

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