Bolsonaro reforça aposta na cloroquina como cura, enquanto Brasil vê crise se agravar

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O Presidente brasileiro, Jair Bolsonaro, exibe caixas do medicamento cloroquina durante direto transmitido online no dia 9 de abril (screenshot via YouTube)

Bolsonaro reforça aposta na cloroquina como cura, enquanto Brasil vê crise se agravar

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Saída de mais um Ministro da Saúde evidencia obsessão pelo medicamento; com má gestão, país arrisca isolamento internacional.

Com a saída de Nelson Teich do Ministério da Saúde, o Brasil aumentou a aposta na utilização da cloroquina como cura para o Covid-19. A prescrição do remédio foi um dos grandes atritos entre Teich e Jair Bolsonaro, que defende fielmente a medicação. Enquanto o país investe na suposta cura, sem comprovação científica e utilização massiva em outros países, as mortes acumulam-se. O Brasil já é o terceiro país no mundo com mais casos da Covid-19 e o sexto em números de mortos pela doença, dados vistos, com consenso, como subnotificados.

Após a demissão do ministério, Teich declarou: “Não vou manchar a minha história por causa da cloroquina.” Especialistas alertam sobre os riscos do uso do medicamento, capaz de causar arritmias cardíacas em determinados casos. Além disso, utilizada no tratamento de doenças como malária e lúpus, a cloroquina chegou a faltar em determinados lugares por conta de uma corrida pela suposta cura.

O agora ministro interino da Saúde, Eduardo Pazuello, é general do Exército e reforça a tendência de ocupar o ministério com militares. Para cargos relevantes, já são 17 os oriundos das forças armadas, nem todos com formação na área da Saúde. Em entrevista ao jornal Folha de S. Paulo, Luiz Henrique Mandetta, antecessor no cargo, se preocupou ainda com a falta de experiência no SUS, equivalente brasileiro ao SNS, dos novos contratados: “Não vi ninguém com experiência com o SUS na equipa nova. O próprio ministro não tinha experiência”. O SUS é a única forma de atenção na saúde para a grande maioria dos brasileiros. Numa parcela relevante das cidades, é o único sistema disponível.

Na mesma entrevista, Mandetta resumiu como vê a obsessão em torno da cloroquina por parte do governo: “A ideia de dar a cloroquina, na cabeça da classe política do mundo, é que, se tiver um remédio, as pessoas voltam ao trabalho. É uma coisa para tranquilizar, para fazer voltar sem tanto peso na consciência”. Mas indicou que não há “gente séria” a defender o medicamento, o que chamou de “panaceia”. “Se tivesse lógica de assistência, isso teria partido das sociedades de especialidades [não do presidente]”, avaliou.

Importados da Índia, os insumos da cloroquina já começaram a ter relevância na política brasileira. O país pagou seis vezes mais caro pela matéria prima do que há menos de um ano, compra que dispensa processo de licitação em virtude da pandemia. O Folha de S. Paulo avança com a informação de que o Exército, responsável pela produção dos comprimidos da cloroquina, prevê a criação de pelo menos 3 milhões de doses do medicamento. No Twitter, o Ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, anunciou a importação de uma tonelada da hidroxicloroquina da Índia, e que novos envios estariam por vir. O governo do nacionalista Narendra Modi é bem visto por Bolsonaro, relação que melhorou após uma visita do brasileiro à Índia no começo de 2020.

Tema de extrema particularidade técnica, a prescrição da cloroquina tomou conta das discussões do Brasil. Apoiantes de Bolsonaro passaram a automedicar-se no que vêem como um ato político, e a Secretaria de Comunicação do governo propaga que o medicamento é o “mais eficaz” contra o vírus. O auge da politização chegou com uma declaração do Presidente nas redes sociais, na qual brincou que “quem é de direita, toma cloroquina, quem é de esquerda, toma Tubaína”. O segundo produto, um popular refrigerante de guaraná, é possivelmente a única parte da declaração embasada em algum caráter técnico.

Repercussão internacional

A polémica no Brasil acontece numa altura em que também Donald Trump está no centro da actualidade por incentivar a toma de substâncias sem provas da sua eficácia ou conhecimento dos seus efeitos secundários.Depois de meses a promover a hidroxicloroquina, o medicamento que actua contra a malária, o presidente norte-americano começou a tomá-lo como prevenção para o novo coronavírus depois de terem sido detetados casos na Casa Branca. Isto acontece, mesmo depois de a autoridade responsável pela aprovação de novos medicamentos nos EUA, a Food and Drug Administration (FDA), ter alertado para os riscos do medicamento, que incluem, entre outros, problemas de coração. 

Com o tema na ordem do dia, a posição do Brasil também tem estado nas machetes internacionais. O New York Times classificou o Brasil como “antigo líder” na área da Saúde e lembrou importantes avanços do país, a exemplo da popularização do tratamento da SIDA. A excelência da Fiocruz, instituto de referência global nas Ciências Médicas, é outro ponto que demonstra outros tempos. Fontes ouvidas pelo jornal falaram em uma “ruptura” do Brasil com a comunidade científica atualmente.

Paraguai, Uruguai e Argentina, que no Mercosul compõem uma espécie de espaço Schengen junto do Brasil, sentem receios por conta dos níveis de contagio no país vizinho. No caso paraguaio, país que controlou bem a disseminação do vírus, grande parte das infecções ocorreram por contactos com pessoas vindas do Brasil. Quem tentar a travessia entre países, agora ilegal, tem estado a ser detido. Com fronteiras porosas, nos três casos é comum que pessoas morem de um lado e trabalhem do outro. Mas as autoridades vizinhas já se mobilizam para restringir a entrada dos brasileiros.

Donald Trump e Mike Pence declararam preocupação com o caso brasileiro e cogitam suspender os voos vindos do país. Dados citados pelo The Economist, mostram que o turismo mostrava mais força na recuperação em países que controlaram melhor o vírus, fator que deve se repetir no Brasil, a fazer com que viajantes evitem o país em um futuro próximo. Com a gestão da crise a continuar nestes moldes, o isolamento do Brasil pode estar apenas no começo.

Índice

  • Matheus Gouvea de Andrade

    Jornalista brasileiro, já colaborou com veículos como Folha de S. Paulo, Estadão e Piauí. Focado em questões internacionais, cursou RI no ISCSP por dois semestres. No período, apaixonou-se por Lisboa, pelas tascas, por Belém e Quim Barreiros. Esteve também em São Paulo, Buenos Aires e Juiz de Fora, cidade natal, e onde cobriu o atentado contra Jair Bolsonaro em 2018. De Literatura a futebol, pensa que o melhor é sempre saber o que se passa no maior número de cantos possíveis

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