“Imagens absolutamente impressionantes do caça russo a ser abatido por um MIG ucraniano” que afinal são de um videojogo; “um vídeo de um grupo de pessoas a correr para apanhar um voo em Cabul” que afinal se passa num estádio nos Estados Unidos da América; “a primeira foto de um dos grupos [de terroristas] que entrou em Palma” que afinal eram agentes da polícia de Moçambique — estes são apenas alguns dos exemplos que encontramos nas longas threads de verificação de factos de Luís Galrão.
Para quem anda pelo X/Twitter, a probabilidade de este nome não soar estranho e de já se ter cruzado com uma das suas verificações é elevada. Sem uma estrutura profissional por trás, foi nessa rede social que o seu trabalho se tornou mais visível, graças à forma persistente e abnegada com que desmonta narrativas, verifica factos e repõe a veracidade das histórias que vão circulando.

Para além das contas nas redes sociais, Luís Galrão não é presença assídua na televisão ou nos media — embora provavelmente todos tivéssemos a ganhar com isso — e nem sempre o seu trabalho é reconhecido, nem tem espaço para explicar o que faz ou partilhar as reflexões que décadas de experiência inspiraram. Numa conversa através de um documento partilhado, iniciada em março de 2022 e retomada agora em 2025, no espírito colaborativo da pesquisa de inteligência com recurso a ferramentas digitais, quisemos ir sabendo mais sobre as suas motivações, a sua abordagem e como vê os desafios presentes e futuros nesta zona de tensão permanente que é a verificação de factos.
Numa altura em que a paisagem global é marcada por guerras, e o nosso quotidiano pela sua transmissão quase em tempo real — seja com imagens reais, geradas por IA ou recicladas de outros conflitos —, em que se fala de um mundo cada vez mais polarizado e da ideia de verdade como um campo de batalha, e onde ideias como a pós-verdade ou o spin se consolidam, conversámos sobre o outro lado da moeda: desde as técnicas de OSINT (Open Source Intelligence) até aos princípios básicos da verificação de factos que todos devíamos ter.
Shifter (S.): Primeiro que tudo, como começou o teu interesse pela OSINT e pelo Fact-checking? Vemos nas contas que fazes frequentemente correções do que é dito nos canais mainstream, foi essa percepção de que estavam a ser passadas informações erradas que te motivou? Esta é a tua profissão?
Luís Galrão (L.G.): Pela verificação, que agora todos chamamos fact-checking, deve ter começado numa altura em que a nossa principal relação com a Internet passava sobretudo pelos e-mails. Lembro-me de, no final dos anos 90, já ajudar amigos e familiares a perceber que boa parte das histórias que recebiam na caixa de correio electrónico eram mitos urbanos ou esquemas fraudulentos. Estávamos na chamada web 1.0 e socorria-me de pesquisas em arquivos pessoais (sempre guardei muitos recortes de imprensa) e em sites como o Urban Legends e o Snopes (este ainda existe). Também aprendi logo no início que nem sempre os resultados iniciais ou mais frequentes nos motores de pesquisa eram os mais fiáveis, o que se mantém e até agravou. Além disso, entre a segunda metade dos anos de 90 e 2005 integrei várias ONG, entre as quais a Quercus, onde parte do meu trabalho passava por investigar denúncias e, sem saber, comecei a usar técnicas de OSINT, que no fundo são investigações através de fontes abertas. Num dos casos, numa investigação conjunta com a Greenpeace, e numa altura em que ainda não existiam serviços como o Google Maps, recordo-me que já usava imagens aéreas do Sistema Nacional de Informação Geográfica para localizar parques de madeiras exóticas na zona norte do país, por exemplo.
Algures nesse percurso, entre 2000 e 2006, também fiz vários cursos no Cenjor (centro de formação para jornalistas), incluindo o curso geral de jornalismo, e desde então trabalhei sobretudo nessa área, quase sempre como freelancer – colaborei com vários jornais locais em Sintra, onde também fui correspondente do Diário de Notícias e tive um projecto pessoal chamado TudosobreSintra.
A certa altura, quando boa parte dos jornais locais encerraram, fiz uma pausa de mais de dois anos numa experiência em assessoria de imprensa na Escola Nacional de Bombeiros, de onde saí para regressar ao jornalismo, desta vez no semanário económico angolano Expansão, onde estive até ao início da pandemia.
Nessa altura regressei e, desde então, tenho estado a trabalhar como gestor de conteúdos freelancer, a aprofundar a minha formação na área da verificação e OSINT e a tentar desenvolver um projecto de formação sobre literacia mediática que inclui a realização de sessões de formação em escolas.
A verificação que faço com maior regularidade desde 2010, sobretudo através do Twitter, resulta desta experiência e da capacidade (ou faro) que desenvolvi para identificar disparates, sejam partilhados por amigos ou os que infelizmente detecto sempre que abro um site de notícias ou vejo um noticiário. Importa aqui dizer que este tem sido um trabalho de fact-checking feito sobretudo a título individual, embora ao longo dos anos tenha já colaborado informalmente com jornalistas e projectos de verificação.
Apesar de também ter sido sondado para eventuais colaborações profissionais nesta área, só recentemente essa possibilidade se concretizou com um convite da Agência Lusa para lá desenvolver um projecto de verificação de factos. Terá o nome de Lusa Verifica e já deverá estar a funcionar quando esta entrevista sair. Está a ser um grande desafio pela responsabilidade que significa fazer este trabalho numa agência de notícias.
“Alguns modelos de fact-checking correm, por vezes, o risco de amplificar os disparates que pretendem esclarecer”
S.: Consideras que a ideia de fact-checking, como é operacionalizada nos mainstream media, se banalizou perdendo o seu valor? Talvez até por uma espécie de arrogância institucional – por exemplo, não veremos o Polígrafo a fazer fact-checking das afirmações do Nuno Rogeiro.
L.G.: Talvez, porque uma parte dos media (sobretudo nacionais) parecem fazê-lo mais pelo clickbait do que pelo jornalismo. E, como notas, deixam de fora a verificação dos seus próprios disparates, não apenas de jornalistas mas dessa crescente fatia de profissionais que ocupa as emissões: os comentadores. Mas já lá vou.
No caso do Polígrafo, foi opção editorial (e talvez comercial) verificar sobretudo declarações de políticos e alguma desinformação nas redes sociais. Não deixa de ser um trabalho importante, mas ignora muitos disparates e nem sempre contribui para o esclarecimento dada a forma como comunica nas redes. Alguns modelos de fact-checking correm, por vezes, o risco de amplificar os disparates que pretendem esclarecer, porque os temas não merecem esse destaque ou porque os leitores/espectadores podem ser enganados pelo ‘clickbait’, sobretudo quando não lêem a notícia integral.
Por cá, também foram surgindo departamentos de verificação em alguns media tradicionais, mas nada de muito ambicioso até recentemente, com o reforço da verificação de factos no PÚBLICO, com a rubrica A Prova dos Factos, por exemplo. Sinto que falta sobretudo uma maior aposta na qualidade do jornalismo que se produz, assim como disponibilidade para a auto-verificação (que implica correcção dos disparates) e para a verificação dos próprios media. Sem isso o principal inimigo dos Órgãos de Comunicação Social (OCS) serão eles próprios, ao colocarem em causa a sua credibilidade. Por vezes fico com a sensação de que há jornalistas que já se esqueceram que a verificação de factos é uma das funções básicas do jornalismo e deve acontecer antes da publicação de qualquer notícia, seja qual for a fonte, porque as agências noticiosas nacionais e internacionais também cometem erros e tudo o que circula nas redes não pode ser publicado sem verificação.
Estas críticas que faço frequentemente não significam que considere que não há bom jornalismo, porque ele existe em todos os OCS que têm o azar de ser visados pelos meus fact-checks.
No caso dos comentadores, nomeadamente do que referiste, o Nuno Rogeiro, é assumido pelo Polígrafo que não fazem verificação a jornalistas e comentadores, e a SIC também não se preocupa com as centenas de embustes que ele partilha quase semanalmente nas rubricas que tem na SIC: “Leste Oeste”, “Guerra Fria” ou “Jogos de Poder”.
É talvez o caso mais grave nos OCS nacionais porque persiste há muitos anos – a thread que tenho no Twitter só sobre o “Leste Oeste” já ultrapassa os 430 tweets. Resulta de uma análise não exaustiva de disparates e embustes desde Outubro de 2018, uns mais graves do que outros, entre eles a vez em que o comentador exibiu fotos de pessoas que apelidou de terroristas e que eu consegui verificar através de OSINT (e de outras técnicas) que eram agentes da Polícia da República de Moçambique. É um caso que remonta ao ataque terrorista a Palma, e as tais fotos foram exibidas no “Leste Oeste” e num noticiário da SIC Notícias. Infelizmente, a SIC nunca assumiu ou corrigiu esse erro, como não corrige 99% dos disparates que ele partilha em antena. Idem para a maioria dos outros canais. Encontram esses meus fact-checks no Twitter através das hashtags #aLesteOestedosfactos e #guerrafriaaosfactos, por exemplo.
S.: Para quem não está familiarizado, como descreverias o que é OSINT e como explicarias a sua importância crescente? Dirias que é uma ‘nova fronteira’ no que toca à recolha de informação e inteligência até para profissionais, investigadores, analistas de informação?
L.G.: A OSINT, que significa Inteligência a Partir de Fontes Abertas, não começou hoje, nem sequer começou com a Internet, pois já era feita por serviços militares de inteligência, por exemplo, através dos departamentos que recolhiam e analisavam a informação disponível em fontes publicamente acessíveis (jornais, revistas, emissões de rádio e tv, etc). Mas houve um boom com a evolução da web 1.0 para a web 2.0 (blogues e primeiras redes sociais), que democratizou a produção e difusão de conteúdos e, logo a seguir, com o crescimento das redes sociais, que fizeram com que os utilizadores passassem a publicar voluntariamente muita informação pessoal. Este salto e a revolução seguinte introduzida pelos smartphones trouxeram-nos de facto para uma nova realidade no que toca à OSINT (civil e das forças de segurança). Na área civil provam-no projectos como o Bellingcat (criado por ‘OSINTers’) e outros mais recentes como o Forensic Architecture ou o Lighthouse Reports, entre outros, cujas investigações têm revelado todo o potencial e importância da OSINT. Na prática, além da recolha e análise dos conteúdos disponíveis na web e nas redes sociais, estas investigações (muitas vezes colaborativas) recorrem a técnicas de pesquisa mais exaustivas de modo a chegar a conteúdos armazenados na deep web, como bases de dados cujo acesso não é possível através dos motores de pesquisa, por exemplo; à análise de redes sociais e das relações entre sujeitos e grupos; à geolocalização e análise de imagens de satélite; ao tracking de navios e/ou de aeronaves, por exemplo, conseguindo chegar a informações que estão disponíveis online mas nem sempre visíveis e interligadas naquela camada superficial da WWW a que acedemos habitualmente.
S.: Que tipo de desinformação ou que erros de verificação se cometem com mais frequência? Detectas um padrão mais recorrente?
L.G.: O principal erro que cometemos individualmente é partilhar sem ler só porque a história parece gira, porque vai ao encontro das nossas opiniões ou apenas porque confiamos em quem partilhou antes e também não leu, nem verificou. Nos media acontece o mesmo: publica-se sem se verificar apenas porque se viu publicado algures ou porque parece ser verdade, muitas vezes com a desculpa de que não há tempo/meios para grandes verificações, isto enquanto se empenham recursos jornalísticos em coberturas mediáticas absurdas com directos sucessivos sem notícias e sem jornalismo, como se vê diariamente. Nos conflitos e breaking news que tenho acompanhado na última década, o erro mais comum é a emissão de conteúdos não verificados, como tenho demonstrado no Twitter e agora também no BlueSky. Todos podemos cometer erros neste tipo de trabalho (eu já cometi, mas corrigi-os assim que os detectei), mas se eu consigo verificar boa parte destes disparates em poucos minutos os jornalistas que os partilham não têm desculpa para não o fazer. E também não têm desculpa para não assumirem e rectificarem o erro em antena, algo que já acontece, mas numa escala muito inferior à dos disparates. Porque o actual vale tudo é co-responsável por termos chegado à era da pós-verdade na qual os factos até podem ser ‘alternativos’.
S.: Por outro lado, focando no público, e no ambiente que vivemos online, achas que os princípios básicos da OSINT deviam ser mais divulgados? Isto é, deveríamos preparar uma nova geração de leitores para conseguir testar minimamente a veracidade das informações que encontra online? (Técnicas de OSINT como básicos da literacia mediática)
L.G.: Sim, no fundo temos todos de tornar-nos investigadores forenses da realidade, como escreveu o escritor Jorge Carrión em 2021. É inútil tentar combater a desinformação sem apostar fortemente na cidadania e na educação para a literacia mediática. Isto é consensual e têm surgido vários projectos nesta área, promovidos por organismos internacionais como a UNESCO, a Comissão Europeia, organizações da área dos media e fact-checking, instituições académicas e até empresas como os gigantes Facebook e Google, embora o cenário esteja a mudar com esta segunda eleição de Donald Trump.
E não é preciso inventar nada, porque os conteúdos existem em quantidade e qualidade. Sei do que falo porque na última década aprendi muito e actualizei conhecimentos através de workshops e cursos online maioritariamente gratuitos. Mas é preciso investir mais na formação curricular, profissional e informal, porque não são apenas as escolas a terem um papel essencial na capacitação dos jovens. É preciso chegar a todas as faixas etárias, dos nativos digitais, que na prática são ‘naives’ digitais, a pessoas que nunca tiveram um computador pessoal, mas que têm no bolso um ou mais smartphones, e a profissionais na área da comunicação, incluindo dos media, que ainda não sabem fazer uma pesquisa reversa, por exemplo.
S.: Com a emergência não só dos deep fakes mas de toda a guerra de propaganda, tens algum set de procedimentos que queiras partilhar para que qualquer pessoa possa de alguma forma tentar verificar algo antes de partilhar?
L.G.: Ui, deepfakes (manipulações com recurso a inteligência artificial, dito de forma simplificada) e propaganda são dois temas gigantes… Ambos têm desafios, alguns novos no caso dos deepfakes, mas importa perceber que muitos desses embustes continuam a não passar no crivo das técnicas de verificação que já são usadas e que todos devemos e podemos aprender através de um pequeno esforço de auto-formação para distinguir o trigo do joio mediático.
Quanto aos procedimentos, há várias checklists (e formações online gratuitas) que costumo partilhar nas redes e que passam por: ler mais, partilhar menos, não cair em clickbait e não ampliar a voz a imbecis. Se é um conteúdo que parece improvável, alarmista, infundado, contraditório, que explora as nossas emoções (o ragebait sobre o qual já escreveste) ou é bom demais para ser verdade, então é provável que haja algo de errado e que na maior parte dos casos se consiga esclarecer essas dúvidas numa pesquisa rápida que podemos e devemos fazer antes de partilhar. Outro passo prioritário é verificar a data, porque partilhar notícias antigas como sendo acontecimentos recentes gera ruído e desinformação.
Para imagens, uma das técnicas mais simples e úteis é a pesquisa reversa de imagens no browser (vários têm opção “pesquisar imagem”), através de uma extensão ou de um motor de busca após descarregar/copiar link da imagem. Entre outras, uso a extensão RevEye que funciona no Chrome e no Firefox e que com um simples clique procura uma imagem nos principais motores de pesquisa, como o Google Lens, o TinEye e o Yandex (sim, há WWW além do Google, e por vezes o TinEye e o Yandex até são mais eficazes). No caso do vídeo, o processo é ligeiramente mais complexo, mas também há ferramentas como o Youtube DataViewer ou o InVID (cuja versão avançada é um canivete suiço do OSINT) que permitem isolar cada fotograma e fazer a pesquisa reversa dessas imagens como nas fotos.
Nos smartphones recomendo que explorem o poder do Google Lens, a aplicação que permite pesquisar com a câmara do telemóvel. Aliás, muitas das minhas verificações começam à hora dos telejornais comigo a apontar o telemóvel para a televisão, tirar uma foto e perceber quase em tempo real se as imagens que mostram correspondem às notícias. Infelizmente, a realidade demonstra que erram demasiado.
“Essa é a grande força do fact-checking: tem de ser transparente e demonstrável para qualquer interessado poder seguir o processo e consultar as fontes”
S.: Acreditas que a OSINT, correlacionada com o jornalismo cidadão – mais descentralizado mas não necessariamente menos profissional – podem ser pistas para o que será o ambiente informativo no futuro, uma vez que, conforme tornas todos os dias claro mesmo os OCS mais profissionalizados cometem muitas vezes erros?
L.G.: Sim, provam-no projectos como os que já referi, o velhinho Snopes ou o Bellingcat, ambos criados por não jornalistas. Ou o Centre for Information Resilience (CIR), com o qual já colaborei numa entrada no mapa colaborativo sobre a guerra na Ucrânia. E provam-no as dezenas de contas de OSINT que continuam a fazer um trabalho permanente e de qualidade na recolha e avaliação de informação em breaking news, trabalho que é diariamente usado e frequentemente plagiado por OCS. Mas, como colocaste a questão, esse jornalismo cidadão ou fact-checking independente implica profissionalismo. Não basta desmistificar ou desmentir a má informação e a desinformação, é preciso trabalhar de forma ética e demonstrar como se chegou a essas conclusões – essa é a grande força do fact-checking: tem de ser transparente e demonstrável para qualquer interessado poder seguir o processo e consultar as fontes.
S.: Sentes que devia haver maior abertura para os OCS dialogarem com quem faz este tipo de trabalho?
L.G.: Sim, de certa forma já acontece a nível internacional, mas ainda há demasiados plágios. Por cá já noto alguma abertura, não propriamente dos OCS mas de alguns jornalistas.Lembro-me que, no início, há quase 15 anos, nem os OCS que tinham caixas de comentários, e botões ‘corrigir’ ligavam aos alertas como os meus e de outros cibernautas atentos. Com o passar do tempo noto alguma evolução e actualmente tenho um feedback mais positivo, já com alguma eliminação de conteúdos falsos ou enganadores e com aquilo que também é obrigação dos OCS: a publicação de correcções.
Por outro lado, sinto que este trabalho pode criar resistências e anticorpos por parte de jornalistas e de direcções de informação que se sentem atacados.
Deixa-me aproveitar para dizer que não me dá gozo ter de apontar tantos erros nos OCS. Há uma componente técnica que acho desafiante, mas há tantos e tantos casos tão absurdos que esta é uma actividade geralmente deprimente. Já agora, posso também revelar que por vezes alerto directamente os visados por mensagem directa e só publico as correcções quando percebo que o erro continua a ser emitido – já alertei pivôs em privado durante os noticiários, por exemplo.
De qualquer forma, a mudança necessária terá de ser interna, com a aposta na formação e em muito mais verificação. Se a pastelaria aqui da minha rua vendesse pães ou bolos com a falta de qualidade que vejo em muitos OCS, deixava de ter clientes e a ASAE ou as autoridades de saúde já a teriam encerrado.
S.: Outra questão que se alterou neste tempo foi a própria plataforma, sentes que o X/Twitter – que é uma das plataformas onde mais se vê o OSINT em tempo real – tem dificultado este trabalho? A plataforma foi “tomada de assalto”, isso dificulta todo o processo?
L.G.: Sim, muito. O Twitter (continuarei a chamá-lo assim apesar de já ser outra coisa) tem assistido a uma espiral descendente de degradação, sobretudo desde que Elon Musk assumiu as rédeas e alterou o funcionamento da plataforma.
Em relação ao OSINT, o actual algoritmo, a quase extinção dos mecanismos de moderação, a proliferação de bots (contas falsas automatizadas), o fim do Tweetdeck gratuito e de algumas das suas ferramentas, ou a imposição de limites diários (para consulta de tweets ou pesquisas, por exemplo) vieram dificultar o trabalho de quem usa a plataforma como ferramenta.
Outro factor tem sido a saída de contas de referência nesta área e noutras áreas, umas para outras plataformas, levando à dispersão das fontes, e outras abandonando mesmo as redes – algo que já ponderei fazer, mas ainda não fiz, embora no final de Fevereiro tenha suspenso a conta @SARwatchMED, um projecto pessoal que desde 2017 monitorizava o resgate de migrantes e refugiados no Mediterrâneo (e Atlântico), também com OSINT. Fi-lo devido aos factores que descrevi e também pelo desgaste de 8 anos de acompanhamento diário daquele drama incessante e cada vez mais vergonhoso para a Europa.
Mas adiante. O BlueSky está a fazer um percurso interessante, mas ainda não está ao nível do actual Twitter, que mesmo em decadência continua a ser uma ferramenta importante para quem o usa como eu – ainda não encontrei nada que substitua o ‘poder’ das minhas mais de 90 listas temáticas que me permitem ficar a par das últimas em poucos minutos sobre qualquer um daqueles temas/regiões.
Mas há outras plataformas em avançado estado de degradação, como o Facebook, que chegou a possuir um excelente motor de pesquisa de imagens por descrição do conteúdo, por exemplo, muito útil em OSINT, mas que entretanto já não funciona, e cujo sistema de moderação automática não correu bem e teve agora um desfecho que provavelmente terá os parcos resultados das notas da comunidade do Twitter, cuja utilidade é frequentemente nula.
“O panorama [dos comentadores] tem vindo a piorar nestes supostos canais de informação que enchem boa parte das emissões com análise e comentário, frequentemente assegurados por ‘tudólogos’ e não por verdadeiros especialistas”
S.: Quando iniciámos esta conversa pela primeira vez, tivemos de falar sobre os OCS mainstream e da forma como inadvertidamente partilham conteúdos falsos. Essa tendência não me parece ter-se alterado. A reação ao teu trabalho – visto que fazes bastantes correções ao que por exemplo o Nuno Rogeiro vai dizendo – está diferente? Ou pelo contrário, com novos canais como o NOW e o V+ o hábito expandiu-se ainda mais?
L.G.: Há de tudo. No caso da RTP, por exemplo, posso citar e saudar o interesse da Rita Marrafa de Carvalho, sempre disponível para diligenciar a correcção de erros quando os aponto a camaradas da estação pública.
Infelizmente, também há canais como a SIC/SIC Notícias que actualmente preferem ignorar-me e demonstrar que ‘o destino da informação’ – slogan da SIC Notícias – continua frequentemente a ser factos alternativos, ou a CNN Portugal (e o canal siamês), com disparates frequentes ‘em todas as frentes’ e poucas correcções.
Recentemente, a propósito de um erro do Polígrafo SIC que participei à Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC), fiquei a saber que a SIC Notícias “não atendeu de imediato às minhas correcções” alegando que “as fontes de verificação das histórias [da SIC] não podem ser contas no Twitter que nem sequer sabemos se são verdadeiras, verificadas ou desinteressadas” e a SIC não tem obrigação de responder no tempo que as redes lhes exigem, respondeu o então director de informação Ricardo Costa.
Noutra resposta relativa a um erro do Henrique Cymerman – que utilizou imagens de um videojogo para ilustrar o ataque iraniano a Israel – a SIC acusou-me de “um exageradíssimo extremar de cuidados e diligências que não eram nem podem ser exigíveis” à estação e ao jornalista. Neste caso, na deliberação (em forma de admoestação) que demorou mais de um ano a ser proferida, a ERC entendeu que a SIC e o jornalista violaram os deveres de rigor informativo e de rectificação, dado que nunca corrigiram o erro.
Deixa-me voltar a um aspecto que já aflorei mas que não desenvolvi, e que é o dos comentadores, onde o panorama tem vindo a piorar nestes supostos canais de informação que enchem boa parte das emissões com análise e comentário, frequentemente assegurados por ‘tudólogos’ e não por verdadeiros especialistas.
O Now Canal, por exemplo, cujo lema é ‘informação exata’, não destoa deste panorama deprimente. Há um ‘especialista’ em particular, o Ireneu Teixeira, que consegue competir com a surrealidade do Nuno Rogeiro, tal é o chorrilho de desinformação que partilha quase diariamente.
Atenção que não defendo qualquer tipo de censura. Estas e outras pessoas têm o direito às suas opiniões, mas não deviam poder difundir os seus próprios factos alternativos em espaços de informação. Isto parece-me básico, mas continuam a existir direcções de informação que permitem a estes comentadores exibir fotos e vídeos geralmente plagiados das redes sem qualquer processo prévio de verificação, acabando por difundir análises sobre histórias inventadas ou adulteradas. Quem coloca aquilo em antena não são os comentadores, é uma régie supostamente composta por jornalistas.
E não são casos isolados como o Nuno Rogeiro e agora o Ireneu Teixeira. Os canais de notícias (e os generalistas) estão cheios de comentadores que entraram a propósito da Guerra na Ucrânia ou da situação na Palestina, e que também partilham frequentemente desinformação devido a incompetência, viés ideológico ou mitomania, tudo com o beneplácito daquelas direcções de informação.
S.: Aliás, também tens feito participação dessas e de outras situações à ERC.
L.G.: Sim, em 2024 fiz várias participações à ERC, mas além de demorar meses a responder, a entidade reguladora optou por arquivar todas as minhas queixas sobre a desinformação partilhada por comentadores. Em várias deliberações, a ERC entendeu que a liberdade de expressão deve prevalecer porque aqueles são “conteúdos de opinião” e não lhe compete avaliar a factualidade do que é exibido em espaços de comentário, mesmo que sejam fotos manipuladas, vídeos falsos ou enganadores ou outros embustes.
Acreditam que a desinformação é um fenómeno externo aos OCS, porque estes “estão de boa-fé” e porque para haver desinformação teria de haver intencionalidade e uma vantagem financeira. Eu entendo que isso acontece: há a intenção de não verificar aqueles conteúdos e há dois ganhos: poupam recursos porque não fazem verificação e beneficiam das audiências que os próprios não se cansam de festejar.
As centenas de exemplos de falsidades que já desmontei atestam que há ali uma clara e reiterada violação do dever de rigor informativo, com ganhos evidentes, mas parece ser esse o modelo que podemos esperar de demasiados media nacionais: pós-verdade, com comentadores e direcções de informação inimputáveis, e com jornalistas que comprometem a sua credibilidade (em alguns casos já reduzida) naquelas conversas de café.
E atenção que não costumo participar ‘simples’ embustes e opiniões enganadoras nestas análises e comentários. Queixo-me sobretudo de espaços de comentário moderados por jornalistas que aceitem exibir como verdadeiros conteúdos alegadamente informativos que não verificaram – frequentemente os tais vídeos e fotos plagiados das redes. As opiniões podem ser alternativas, os factos não, e é aí que estes jornalistas e OCS violam o dever de rigor ao colocar em antena embustes que qualquer jornalista (ou comentador sério) despistaria em poucos minutos.
Incompreensivelmente não foi esse o entendimento da ERC até recentemente. Só no início de Abril, após ter recebido quase uma dezena de queixas sobre novos embustes do Irineu Teixeira (nenhuma minha), a ERC parece ter despertado para o problema da informação falsa difundida naqueles espaços de comentário. Nessa nova deliberação, o regulador considera finalmente “que, quando um órgão de comunicação social apresenta informação factual que apoia comentário, não se encontra dispensado da verificação da sua veracidade e dos requisitos de rigor informativo”.
Pela minha parte, continuarei a defender que os OCS que publicam e difundem informação enganadora reiteradamente porque não fazem verificação de factos estão, na prática, a fazer desinformação: enganam intencionalmente ou por negligência grosseira, retiram proveitos das audiências, poupam nos recursos profissionais mas prejudicam a credibilidade do jornalismo e enganam quem consome aquela desinformação.
Dito de outra forma, entendo que um jornalista que coloca em antena uma informação não verificada não factual porque não lhe apeteceu fazer verificação de factos, não está a fazer ‘misinformation’ (má informação de forma não intencional), como diz a ERC. Está a desinformar porque não verificou intencionalmente, teve uma poupança de tempo porque saltou essa etapa (geralmente de uns minutos) e o seu órgão de comunicação social lucra com as audiências desses espaços de baixa qualidade informativa.
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