Lola Lafon: “Porque é que querem que a Nadia Comăneci seja uma heroína?”

28 Maio, 2025 /
No centro da imagem está Lola Lafon, autora do livro A Pequena Comunista que Nunca Sorria. É uma mulher branca, com cerca de 50 anos, com um cabelo loiro comprido e franja. Veste uma blusa preta com colarinho branco, um casaco branco, e encontra-se no meio de uma rua vazia.
Lola Lafon, autora do livro A Pequena Comunista que Nunca Sorria, cresceu entre Sófia e Bucareste. | Fotografia de Lynn S.K.
A autora de A Pequena Comunista que Nunca Sorria passou por Lisboa para promover a tradução portuguesa do livro, publicada pela Antígona. Conversou com o Shifter sobre o peso de Nadia Comăneci numa geração e as ameaças atuais aos direitos das mulheres.

Numa altura em que qualquer pessoa pode tornar-se famosa, tendo as ferramentas certas ou apenas muita sorte, é estranho conceber que existiu um momento em que uma ginasta romena de 14 anos se tornou conhecida mundialmente pela sua prestação nos Jogos Olímpicos. Mais do que isso: que se tornou um ícone do seu país em tempos de ditadura e uma figura pop que foi capa de revistas de moda. Mas foi o que aconteceu com Nadia Comăneci, depois daquela prestação em Montréal no verão de 1976, que lhe valeu a pontuação máxima — a primeira na história dos Jogos Olímpicos.

A escritora Lola Lafon cresceu com este vulto na Roménia comunista, mas só quando se mudou para França é que percebeu que ser do país de Comăneci era um fator de coolness. O distanciamento fê-la olhar para a menina que existia além da ginasta e, anos mais tarde, acabou a escrever um livro a partir da sua história. A Pequena Comunista que Nunca Sorria inspira-se na vida de Nadia Comăneci para refletir sobre como o corpo como campo de batalha, os limites do auto-controlo, a objetificação feminina na adolescência, e outros tantos problemas estruturais. 

Num diálogo ficcionado com esta ginasta que foi obrigada a crescer cedo demais e perante os olhos do mundo, Lola Lafon viaja até um tempo que não viveu mas que de alguma forma lhe é familiar. Em véspera de eleições em Portugal, a escritora passou por Lisboa para promover a edição portuguesa deste livro que escreveu há 10 anos, e conversou com o Shifter

“Acho que escrever este livro foi uma forma de re-examinar a infância. A infância é uma fase tão estranha… quando nasces com um corpo feminino pensas que és dona do mundo e depois descobres que não. Esta tem sido uma obsessão minha: pensar sobre o momento da vida em que descobres que tens medo.”

Shifter (S.): Sei que por esta altura muita gente já te perguntou porque é que decidiste escrever este livro. Mas se há algo que percebemos na terapia é que a vida nos traz novas perspectivas sobre a mesma coisa; por isso gostava de te perguntar, ao dia de hoje, 10 de maio de 2025, por que é que decidiste escrevê-lo? 

Lola Lafon (L.L.): Acho que quando publicas um livro, só dizes o óbvio, que até pode ser verdade. Na altura em que foi publicado, eu costumava dizer que cresci na Roménia, que era bailarina, e que todas essas coisas estavam relacionadas. E eu acho que é verdade, porque tive esta experiência muito forte de um corpo competitivo e todos os problemas que vêm com isso. Agora, quase dez anos depois, para mim, este livro mudou realmente a minha vida porque foi um best-seller. Em França foi um impulso, e tenho muito carinho por ele, porque me fez pensar sobre uma outra forma de escrever. Foi uma experiência escrever sobre uma pessoa que está viva. Eu já tinha escrito inspirada por amigos meus, mas neste caso ela estava ali. Isso ensinou-me muito, e acho que ao escrevê-lo descobri como é que a empatia funciona. Porque durante dois anos, enquanto o estava a escrever, tive tanta empatia por ela que quando acabei fiquei deprimida. Mesmo. Foi como: oh, ela já não está mais aqui. Acho que escrever este livro foi uma forma de re-examinar a infância. A infância é uma fase tão estranha… quando nasces com um corpo feminino pensas que és dona do mundo e depois descobres que não. Esta tem sido uma obsessão minha: pensar sobre o momento da vida em que descobres que tens medo. Tens um corpo de criança e, de repente, alguém olha para ti na rua, e do nada és objetificada. No caso da Nadia, isso aconteceu à escala mundial; era o universo. Portanto, hoje, acho que escrevi a pensar nesta sensação de perda de poder. 

S.: E escreves sobre a Nadia Comăneci, mas na verdade não é só sobre ela. Tudo o que está escrito neste livro repete-se em vários lugares e representa problemas estruturais. Não é só sobre a Roménia, não é só sobre a Nadia Comăneci, nem só sobre o treinador Béla Károlyi ou o Ceausescu. Um desses temas é a sensação de ser estrangeiro. Como é que foi para ti cresceres na Roménia com essa interseção? 

L.L.: Estranhamente só tive consciência disso em França. Antes da Roménia eu já tinha vivido na Bulgária, e a Roménia acabou por ser a minha terra natal. Não tenho dúvidas nenhumas quanto a isso. Embora o meu pai fosse francês e a minha mãe fosse russa-polaca falante de francês, durante a minha infância eu não tinha essa sensação de ser uma estranha. Quando tinha 9-10 anos e comecei a ser capaz de ver as coisas com outros olhos. Eu conhecia a realidade do regime e os meus pais diziam-me: “Não deves falar sobre política lá fora.” Isto era crescer na Roménia durante os anos 70 e 80. Mas quando fui para França, foi um choque. Durante o comunismo, nunca vi publicidade com mulheres despidas, por exemplo, isso não existia de todo.  Ver toda essa nudez e as mulheres objetificadas pela publicidade foi um choque. Isso e perceber que para os miúdos franceses, na escola, a Roménia não era nada. Era um “país pobre”, era “comunismo”. Era a Europa pobre. Eles estavam do lado bom, o francês, e isso foi uma surpresa para mim. 

S.: É curioso porque ao longo do livro, a Nadia vai deixando claro nos vossos diálogos que existe um “nós” e um “eles”. E que tu fazes parte “deles”. Mas há experiências, como esta que me contas sobre a publicidade, que se assemelham muito às dela. É como se a identidade nacional dela fosse maior do que as vossas experiências partilhadas enquanto mulheres. 

L.L.: Ela foi muito importante quando fui para França porque era um passaporte para ser mais cool. Ela era a única pessoa da Roménia que toda a gente conhecia, o hype dela era mesmo importante na altura. Então, eu costumava dizer: “Oh, tu conheces a Nadia Comăneci? Somos do mesmo país” (risos) Quando estava a escrever o livro, eu senti, a certa altura, que era advogada dela. Porque quando comecei a ver toda a violência na imprensa, a crítica que surgiu quando ela cresceu, tive vontade de a defender e, ao mesmo tempo,  percebi que o que lhe aconteceu também me estava a acontecer a mim e a outras meninas, só que não estávamos nas notícias. A experiência foi nossa

S.: E fizeste alguma espécie de pacto feminista com esta personagem da Nadia? Tinhas linhas vermelhas quanto aos temas sobre os quais sentias que podias ou não escrever acerca da vida dela? 

L.L.: Havia uma. O assunto que me deixava mais preocupada era a relação de controlo e poder que existiu com o filho do Ceausescu, o Nico Ceausescu. Esta era a parte em que sabia que tinha de ser muito cuidadosa, porque para mim era óbvio que aquilo não tinha sido uma relação amorosa, mas sim abuso. Ele era o superior dela, era o filho de um ditador; para mim, não era sequer uma questão. Mas é curioso porque quando andei a promover o livro em França, vários homens me disseram: “Sim, mas ela dormiu com o Nico Ceausescu”. E eu dizia que não. Ao escrever, decidi que o narrador não quereria entrar aprofundadamente nesse assunto, porque acho que para a verdadeira Nadia é uma grande ferida. Na altura em que o escrevi, não sabia dos abusos sexuais na equipa dos Estados Unidos da América, porque o caso só se tornou público mais tarde, mas se eu soubesse penso que teria pesquisado mais sobre esse tema. O caso do Larry Nassar não se passou nos anos 70 nem na Roménia, mas estou certa de que algumas coisas aconteceram. Quando estou a escrever, faço muita investigação e se não tenho um documento não posso escrevê-lo. 

S.: Embora não seja uma peça jornalística, não deixa de ser sobre alguém que está vivo. 

L.L.: É sobre alguém que está vivo e é sobre factos que podes pesquisar. Então, não vou dizer “acho que isto aconteceu, mas não tenho a certeza”. Eu posso escrever sobre abuso de uma forma literária, e penso que é isso que acabo por fazer — o abuso sobre os corpos, o poder do controlo —, mas não posso fazer uma afirmação que não tenha provas para fazer.

S.: Há um capítulo em que escreves algo como “ela não gostou deste excerto, mas decidi incluí-lo na mesma”. Porque é que o fizeste? Porque é que trazes esses momentos de tensão para a ficção? Mesmo que não tenhas falado com a verdadeira Nadia, havia uma parte de ti que gostava que ela se sentisse representada caso o lesse?

L.L.: Num romance, há partes que escreves e achas que encaixam e que vão ajudar o leitor a ver a pintura completa. E há momentos em que pensamos que é demasiado. Ao escrever sobre esta relação entre uma narradora e uma ginasta, foi interessante para mim imaginar que talvez ela não fosse gostar de algumas partes, mas o que é biográfico, é biográfico. Na verdade, acho que A Pequena Comunista é muito sobre como é que podemos contar a história de vida de alguém; e de certa forma é impossível porque há demasiadas versões. Para ela, é muito espetacular, claro. Desde logo, há duas visões, a de leste e a do ocidente. Ao longo da minha pesquisa li sobre algumas competições do ponto de vista francês e americano, depois fui para Bucareste e li outra história. E todas são verdade. 

“Já há uns anos se dizia que as pessoas não liam, e que esse poder da linguagem tinha acabado, e agora vemos com o Trump o quão falso é esse argumento. As palavras têm poder; as palavras são gatilhos e ele sabe disso.”

S.: As relações de poder atravessam todo o livro. Mas há uma mais subtil que me interessa particularmente: a linguagem. A linguagem como uma ferramenta de poder. Como é que não saberes a língua de um lugar te diminui,  ou até como é que uma má tradução intencional pode mudar a tua perspetiva sobre algo que te aconteceu. Hoje tudo isso se complexifica se pensarmos que uma pesquisa no Google feita na mesma língua, mas em países diferentes nos vai dar resultados diferentes.

L.L.: Já há uns anos se dizia que as pessoas não liam, e que esse poder da linguagem tinha acabado, e agora vemos com o Trump o quão falso é esse argumento. As palavras têm poder; as palavras são gatilhos e ele sabe disso. Pelo menos ele acredita que se palavras como “género” forem banidas, que o conceito que representam vai deixar de existir. É aquilo que em francês chamo de le pensée magique: oh, se não disseres mais esta palavra, puff, deixa de existir. Claro que não é assim. Numa ditadura continua a ser verdade que os tradutores não traduzem tudo. É algo que também nos acontece quando viajamos enquanto escritores e dependemos totalmente de alguém que nos traduza — conseguimos perceber que o que dissemos foi muito mais longo do que a tradução. Nos países comunistas, a linguagem era um teatro porque algumas palavras eram proibidas e toda a gente sabia disso, então dávamos a volta e contávamos a mesma história sem A Palavra. E toda a gente representava para fazer parecer que era normal. Era um pouco como na Alemanha de Este. 

Tudo isto pode ser complexo. Ontem estava a falar com uma pessoa que dizia que a Nadia Comăneci não era uma heroína, porque ela tinha participado. E eu disse que sim, ela tinha 14 anos, e não nos podemos esquecer disso. Além do mais, era uma atleta, o dia-a-dia dela era treino-casa-treino-casa. E era muito difícil ser um herói no comunismo, porque toda a gente era incentivada a questionar, acabavas a ir até à polícia e a dizer coisas sobre pessoas que eram bastante próximas de ti. Toda a gente era culpada, é assim que funciona numa ditadura. Portanto fico sempre muito envergonhada quando alguém me diz que ela não era uma heroína. Não, não era. Era uma ótima atleta. Porque é que querem que a Nadia Comăneci seja uma heroína? Se ela fosse uma vítima, seria vista como uma heroína, mas ela não queria ser uma vítima. 

S.: E porque é que ela tem de ser uma das duas, heroína ou vítima?

L.L.: Exato, ela tinha de lidar com muitas coisas. Ela era extraordinária e, ao mesmo tempo, muito normal. 

S.: Parece-me que ela sempre quis acreditar que tinha o controlo.

L.L.: Parece ser muito importante para ela ser capaz de contar a sua própria história; o que não foi possível. Nas barras, na mesa… aí ela tinha verdadeiro controlo. Na vida, tinha todos estes homens poderosos à volta dela — o Béla, o Ceausescu. 

S.: E o male gaze também foi algo que não conseguiu controlar.

L.L.: Isso foi uma outra coisa. Algo que ainda me fascina é a forma como isso estava desavergonhadamente por toda a parte. Há uns dias conheci um grupo de adolescentes numa escola secundária e quando estávamos a falar sobre este assunto, disse-lhes que hoje o cenário era mais positivo, mas eles disseram-me que era muito pior por causa das redes sociais. Hoje em dia qualquer pessoa, uma mulher ou rapariga anónima, pode ser slutshamed ou abusada. No caso da Nadia Comăneci, ela era uma estrela.

S.: Eu desconhecia a Sugar’n’Spice da Playboy, a sessão fotográfica da Brooke Shields com 13 anos e mesmo o caso da Jodie Foster, até ter lido o teu livro. É curioso que para mim foi precisamente uma confirmação de um problema que com as redes sociais é amplificado, mas que já existe há muito tempo de uma forma deliberada. É um problema tão antigo quanto a fotografia e o cinema…

L.L.: Ou mesmo quanto a pintura. Podemos pensar no Gauguin, que ia para as ilhas do Pacífico e pintava adolescentes muito bonitas que estavam “dispostas a serem pintadas nuas” — será que estavam? Claro que não. Ele era branco, mais velho, um artista. Este não é um problema novo, de todo. Mas agora existe uma consciência e falamos sobre isso, é muito diferente. No entanto, até há dois anos eu ter-te-ia dito que caminhamos na direção certa, mas agora estou certa de que a reação está aí. Em França, o movimento Me Too começou, algumas coisas aconteceram, e tivemos de nos preparar para uma retaliação muito violenta. Não sei como é que é cá em Portugal. 

S.: Ainda não existiu um movimento com essa força. Algumas pessoas têm vindo a fazer denúncias, mas não tivemos um momento Me Too. E em alguns casos, houve uma força que contrariou as denúncias.

L.L.: Também passámos por isso em França, com o [Gerard] Depardieu. Houve algumas consequências, mas temos um presidente que, perante tudo o que sabemos sobre o Depardieu, disse que a França devia ter orgulho nele. Foi um escândalo. 

“Para mim, o paradoxo é que na altura da Guerra Fria de repente o produto do comunismo torna-se o poster de algo pop e de repente todas as meninas mais novas se tornam fascinadas por ela e querem ser como ela, o que é uma espécie de soft power.”

S.: Algo em que penso muito no feminismo contemporâneo é na forma como o capitalismo se apropria de mulheres como a Nadia Comăneci e as torna posters de um movimento. Ao escrever A Pequena Comunista que Nunca Sorria era importante para ti mostrar as contradições, os paradoxos, de que as mulheres também são feitas? A Nadia é o 10 nos Jogos Olímpicos, mas não é só o 10 nos Jogos Olímpicos. 

L.L.: Quando ela se torna o 10 em Montreal, eram outros tempos. Não havia redes sociais e ser famosa ainda era extraordinário. Não havia muita gente famosa. Acho que na altura em que ela se tornou um poster, na Roménia ela era uma atleta e na Europa ocidental torna-se um símbolo pop. Não apenas a sua ginástica, mas o seu rosto tornou-se famoso. Encontrei algumas revistas Elle com fotografias muito engraçadas dela, em que está a morder a unha, e é fácil percebermos que ela não estava preparada para isto. De todo. Mas ninguém estava. Para mim, o paradoxo é que na altura da Guerra Fria de repente o produto do comunismo torna-se o poster de algo pop e de repente todas as meninas mais novas se tornam fascinadas por ela e querem ser como ela, o que é uma espécie de soft power

S.: É um contra-senso. Há um mito em torno de uma pessoa que pode representar empoderamento e fragilidade ao mesmo tempo.

L.L.: Eu conheci tantas pessoas graças a este livro, fiz tantos encontros em vários países e o que me toca sempre é quando vês uma mulher de 50 ou 60 anos que diz: “Ela mudou a minha vida porque quando a vi, quis ser poderosa como ela era”. Não a fazer ginástica, só a correr, ser rápida. Isto é algo que eu não previ e acaba por ser bonito. 

S.: De facto há representações que hoje podemos até achar problemáticas em certos aspetos, mas que podem ter um impacto positivo em alguém. 

L.L.: Este é um tema sobre o qual penso muito porque a minha geração adorava a Madonna, ela foi muito importante para mim enquanto estava a crescer. Eu lembro-me que os meus pais, os adultos, costumavam dizer: “Ela é muito vulgar”. Então agora, quando vejo fotografias de cantoras ou atrizes, penso sempre que elas são importantes porque têm a capacidade de ser um pouco mais de algo que gostamos de ver. E ao mesmo tempo são um produto do capitalismo. São ambas as coisas. 

S.: Uma parte disso ser ambíguo é que o capitalismo era o inimigo para a Nadia, e para toda a gente num regime comunista, e acaba por a capturar. Até o Bela foi para os Estados Unidos. 

L.L.: Mas sabes que nos anos 80 as pessoas na Roménia sonhavam com o capitalismo. Sonhavam com a liberdade, com a Europa ocidental, para escapar. Era complicado. É curioso que tivemos eleições na Roménia há pouco tempo e 40% dos votos foram para a extrema direita…

S.: Cá em Portugal não será muito diferente.

L.L.: Estou cá há dois dias e tenho visto o mesmo tipo de declarações que em França — “Cinquenta anos de liberdade para quê?” E também é isso que vejo na Roménia. 

S.: Há uma socióloga que entrevistas para o livro que te diz que “vivas ou mortas” as mulheres eram úteis na ditadura, a propósito do aborto. E eu dei por mim a pensar: estamos a falar de História, foi há algum tempo, mas parece que a história se começa a repetir a si mesma e é assustador. 

L.L.: A religião é muito forte na Roménia e a extrema-direita tem-na usado muito aliada a argumentos anti-LGBT. Também dizem que o mundo ocidental está corrompido… eu confesso que não era algo que eu achasse que fosse acontecer. Há uns anos achei que a ala de extrema direita iria focar-se no discurso anti-imigração, mas o anti-feminismo e a transfobia vieram tão violentamente. Tornou-se uma obsessão. 

“Em França sou muito identificada como feminista e tenho uma coluna no Liberátion, onde o que escrevo é muito político. Ser conhecida por isso, e ter a possibilidade de escrever, é um luxo. Mas pela primeira vez questionei-me por quanto tempo é que seria totalmente livre. Eu sinto que nos próximos anos vai ser diferente, por isso acho que é importante estar junto de outras escritoras, de nos unirmos.”

S.: Um dos grandes desafios é que também há movimentos de esquerda que são transfóbicos, inclusive grupos feministas. Quando têm muito mais valores em comum com pessoas trans do que com o inimigo comum

L.L.: Exato! Há uns anos lembro-me de ver uma feminista trans-excludentes a ser muito estranhamente transfóbica e eu disse-lhe: “Tem cuidado, porque vais ser amiga de pessoas que não desejas ter entre os teus amigos”. É um medo do desconhecido que é horrível e tem consequências.

S.: Enquanto mulher e escritora, a escrita continua a ser um campo de liberdade, sobretudo a ficção? Uma ferramenta para ser livre mesmo quando o mundo está a desmoronar. 

L.L.: Absolutamente. De uma forma muito concreta de ver as coisas, em França sou muito identificada como feminista e tenho uma coluna no Liberátion, onde o que escrevo é muito político. Ser conhecida por isso, e ter a possibilidade de escrever, é um luxo. Mas pela primeira vez questionei-me por quanto tempo é que seria totalmente livre. Eu sinto que nos próximos anos vai ser diferente, por isso acho que é importante estar junto de outras escritoras, de nos unirmos. Nós não podemos mudar o mundo com a ficção, seria pedir demasiado. Mas podemos propor outras histórias e mostrar outros enquadramentos. Isso é importante. Acho que escrevo sempre para colmatar as falhas que encontrei enquanto leitora, à medida que ia crescendo. Não tinha muita literatura escrita por mulheres à minha disposição, portanto queria ter personagens femininas ou pessoas que se parecessem mais com as minhas amigas.

Autor:
28 Maio, 2025
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Carolina Franco

Carolina Franco tem escrito sobre cultura, juventude e direitos humanos. Cada vez acredita mais que está tudo ligado. É jornalista colaboradora no projeto de literacia mediática PÚBLICO na Escola, e co-editora do Shifter. Estudou Ciências da Comunicação no Porto, de onde é natural, tem pós-graduação em Curadoria de Arte e está a completar mestrado em Antropologia - Culturas Visuais com uma tese sobre a importância da representatividade trans* no audiovisual.

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Carolina Franco tem escrito sobre cultura, juventude e direitos humanos. Cada vez acredita mais que está tudo ligado. É jornalista colaboradora no projeto de literacia mediática PÚBLICO na Escola, e co-editora do Shifter. Estudou Ciências da Comunicação no Porto, de onde é natural, tem pós-graduação em Curadoria de Arte e está a completar mestrado em Antropologia - Culturas Visuais com uma tese sobre a importância da representatividade trans* no audiovisual.

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