Os meses que passaram foram ricos em recomendações. Costuma ser assim a cada rentrée: é como se a vida tivesse estado em pausa e, em setembro, tivéssemos de receber o alvoroço com novas estreias, novos lançamentos, novos projetos a acompanhar. Setembro traz sempre novidade. Mas nem sempre ser novo é critério de interesse ou relevância. E nem sempre os algoritmos nos trazem referências que permitam alargar os nossos horizontes. Na newsletter Notas da Comunidade partilhamos mensalmente referências de artigos e alguns livros que andamos a ler, mas desta vez quisemos alargar o âmbito, recolher mais recomendações e abri-las a todos os que nos lêem.
Foi a pensar nos desafios do agora — e não temos poucos — que pedimos a pessoas que acompanhamos, algumas que já colaboraram com o Shifter, outras que estão no nosso radar, que elegessem um livro cuja leitura recomendassem. São pessoas das áreas das artes, do humor, da ciência, da educação, da acessibilidade, da literatura, e, para abrir a lista, as recomendações da equipa editorial.
Eye of the Master: The Social History of Artificial Intelligence, de Matteo Pasquinelli | Sugestão de João Gabriel Ribeiro, ensaísta e director do Shifter
Quando a Inteligência Artificial não é apresentada como se fosse algo completamente desprovido de história, é apresentada como resultado de processos de intenções lineares que resultaram ao final de muita insistência numa espécie de tecnologia mágica. Em Eye of The Master, Matteo Pasquinelli, Professor Associado em Filosofia da Ciência na Universidade Ca’ Foscari, Veneza, desafia essa narrativa e conta-nos uma história completamente diferente. Ou melhor, conta-nos a mesma história vista de outra perspectiva. Em vez de se focar nos avanços tecnológicos e na camada técnica da história, Pasquinelli foca-se na camada social, e na forma como as relações moldaram a evolução da computação. Para isso traça uma cronologia que começa nos primeiros algoritmos, que situa num período histórico muito antes dos computadores ou qualquer outro aparelho electrónico, e que vai demonstrando como a computação foi sendo moldada por relações sociais. Afinal de contas, como nos lembra, em tempos, computador era o nome de uma profissão — habitualmente desempenhada por mulheres em condições precárias — e só anos mais tarde o termo migrou para denominar este conjunto de aparelhos
Raving, de McKenzie Wark | Sugestão de Carolina Franco, jornalista e editora do Shifter
Pode a prática raver ser política? Para McKenzie Wark não há dúvidas: é. Se em Reverse Cowgirl a autora se lançou numa espécie de auto-etnografia, ou “poligrafia” como lhe chamou Paul B. Preciado, a partir das suas memórias e da descoberta constante de si mesma através do seu corpo e das suas movimentações, em Raving convida-nos a entrar com ela nas festas underground para pessoas queer e trans* que começou a frequentar em Nova Iorque. E qual é o género litérario em que encaixa Raving? Essa discussão não lhe interessa: “Quero uma prática da escrita que seja mais adaptada à situação raver, mesmo que tenha de ser adaptada de outras das minhas práticas. A disciplina da indisciplina, como dizem os anarquistas” (tradução livre). Fala-nos do que sente quando está na pista de dança, do espírito de comunidade, das raízes negras do tecno, do sexo e das drogas, da tensão constante entre ser-se amada e rejeitada.
Superior, de Angela Saini | Sugestão de José G. de Almeida, pessoa que faz investigação em deep learning e imagem clínica
Aquilo a que apelidámos de ciência foi, ao longo dos anos, sofrendo alterações – apesar do enquadramento ser de objectividade e permanência, a tendência é ver a ciência em constante mudança, por vezes a dobrar-se para agradar certas ideologias. Em Superior, Angela Saini relata um caso particular dessa deturpação — a chamada “ciência da raça”. Esta prática nasce com obsessão pelas estatísticas humanas (e, como nota Stephen Jay Gould em A Falsa Medida do Homem, uma boa parte da estatística nasce com motivações de ordenar artificialmente pessoas) e procura legitimar racismo através de uma lente alegadamente científica. A metodologia é pobre e os resultados fáceis de desmontar, mas a crença de que há algo científico no preconceito chegou para manter viva esta prática. Através de entrevistas e extensivo trabalho de campo, Saini pinta um retrato sobre as maneiras como a “ciência da raça” se manteve viva até aos dias de hoje e sobre quem são os seus profetas. Um livro fundamental para prestarmos atenção à maneira como pensamos a ciência enquanto prática dogmática, numa altura em que falsas objectividades nos tentam convencer de que há hierarquias sociais imanentes da nossa biologia.
The Country Of The Blind, de Andrew Leland | Sugestão de Tiago Fortuna, co-fundador da Access Lab
Foi a melhor surpresa deste ano na literatura. Descobri esta autobiografia sobre o que é perder a visão nos melhores do ano de 2023 da revista The Atlantic, gostei da review e comprei. Sinto sempre que me falta informação sobre a deficiência visual. O livro foi surpreendentemente envolvente e revelador: os números da deficiência nos Estados Unidos da América são impressionantes, tal como o movimento associativo num país com mais de 300 milhões de pessoas; também perceber que o audiolivro surgiu para as pessoas cegas no século XX; e, claro, sorrir ao recordar-me que, depois de cegar, o escritor Jorge Luis Borges tinha um colaborador cuja única função era ler-lhe obras em voz alta. Tantos momentos de proximidade, humildade e humanismo. Voltei a recordar o quanto ainda quero aprender e como somos capazes de mundividência, independentemente das nossas capacidades, quando a vontade interior persiste.
Entre mim e o mundo, de Ta-Nehisi Coates | Sugestão de Carlos Pereira, humorista, guionista
Após a sua leitura, Entre mim e o Mundo rapidamente se tornou um dos meus livros favoritos. Facilmente o recomendo a quem se interessar por temas como o racismo, o medo, a violência sobre corpos negros, o sonho americano. Neste livro, Ta-Nehisi Coates trata destes temas a partir da sua experiência enquanto pai, que decide deixar, por escrito, o retrato de um mundo que conhece bem, ao filho adolescente. Ta-Nehisi Coates relata a sua adolescência nas ruas de Baltimore dos anos 90 e o fator do medo constante. Medo de ser uma presa fácil dos seus pares. O medo numa sociedade onde muitas vezes se sentia perdido e dominado por ela. E por fim, o medo de que o seu filho passasse pelo mesmo. Ao longo do livro, o autor conta-nos como teve de se afastar do lugar onde cresceu para se encontrar a si próprio. James Baldwin – citado no livro; Malcom X, e Luther King, todos disseram: cuidado que o teu inimigo está perto de ti. Nehisi Coates diz-nos o mesmo através de uma missiva profunda e potente ao seu filho.
Um mapa para a porta do não retorno: notas sobre pertencimento, Dionne Brand | Sugestão de Hilda de Paulo, artista, curadora independente e pesquisadora
Este é um ensaio autobiográfico em que a autora nos permite entender que a narrativa diaspórica é localizada no plural, de forma inexata e em constante reconstrução, mostrando, ao longo de sua obra, que o caminho de volta para a ou através da Porta do Não Retorno é uma impossibilidade, uma vez que o mapa necessário para chegar a essa porta também é inatingível. Brand aborda, dessa maneira, a impossibilidade de encontrar o caminho de volta para aquela porta – a porta para uma conexão de cura com origens ancestrais, raciais e geográficas –, mesclando, assim, arquivo, memória, esquecimento e trauma a partir de sua régua de experiência para apontar como esses elementos são importantes para a condição de pertencimento e, pensando com a bell hooks, também para a autoestima, amor e espiritualidade.
Eu sou uma rapariga sem história, Alice Zeniter | Sugestão de Rosa Azevedo, editora e livreira da Snob
Alice Zeniter escreveu um livro estranho, Eu sou uma rapariga sem história, que não se lê levemente, nem avidamente. Procuramos nele algumas âncoras de leitura e não encontramos nenhumas. Partindo de algumas ideias sobre o conceito de história, pessoal e literária, mostra o poder da ficção e da escrita quando esta opta por ser agregadora e ser início de algo e não um fim. É um livro que nos desloca de muitos lugares de conforto para nos obrigar a tomar posição nas ideias que nos apresenta, mostrando no próprio resultado da leitura do livro aquilo que defende. Mostra-nos que uma ideia e um livro podem ser pensados de diferentes ângulos. Edição da BCF, tradução de Maria João Madeira.
Mecânica da Ficção, de James Wood | Sugestão de Alex Couto, escritor
É fascinante como palavras escritas numa página podem, na verdade, ter um nível de profundidade quase infinito. Isto torna-se deveras óbvio em livros que parecem ser sobre uma coisa e revelam, como num truque de mágica, serem sobre outra coisa qualquer. Um exemplo recente que me tem acompanhado é a certeza de que o romance Battle Royale do autor japonês Koushun Takami, não trata apenas de uma competição até à morte por um conjunto de colegas de turma, mas sim a falta de agência que parece caracterizar a juventude japonesa face ao peso da tradição.
Na Mecânica da Ficção de James Wood (com uma tradução brilhante de Rogério Casanova para o termo original How Fiction Works), vamos assistir à aplicação de sucessivas camadas de decapante, que, através do colorido dos seus exemplos, nos permite descobrir muita da profundidade que se disfarça na página. A secção sobre discurso indirecto livre pode ter mudado a minha vida.
Hillbilly Elegy: A Memoir of a Family and Culture in Crisis, de JD Vance | Sugestão de Miguel Herdade, especialista em desigualdades na educação, diretor associado do Ambition Institute (UK)
O autor é candidato a vice-presidente de Donald Trump na corrida à Casa Branca. O livro é uma memória autobiográfica, de quem cresceu nas profundezas da América branca, trabalhadora, e empobrecida. Dá-nos um importante testemunho vivido de uma classe social sofrida, da polarização, e da ideia de “nós” contra “eles”:
— “Os americanos chamam-lhes hillbillies, rednecks ou white-trash. Eu chamo-lhes vizinhos, amigos e família.”
Mas a narrativa vai além da tradicional diferença entre ricos e pobres, das separações sociais e regionais. Há também divisões fundamentais dentro da própria classe trabalhadora: por exemplo, entre os “pobres que trabalham” e “os pobres que não trabalham”, que, nessa perspectiva, vivem de subsídios e não querem trabalhar. Depois das eleições em Portugal, França, Reino Unido, Áustria e em vésperas de mais umas eleições americanas, o livro de JD Vance permite uma reflexão sobre o voto em partidos populistas de direita e extrema direita.
Políticas do Encanto: Extrema Direita e Fantasias da Conspiração, de Paolo Demuru | Sugestão de Maribel Sobreira, ensaísta, professora, investigadora e curadora expandida, co-fundadora do Colectivo FACA
Porquê ler Políticas do Encanto: Extrema Direita e Fantasias da Conspiração de Paolo Demuru? Vivemos numa época de desencanto calculado, em que o imaginário, longe de alimentar o pensamento crítico ou o ócio criativo, foi capturado pelo ciclo incessante de produção e consumo. O espaço dedicado à imaginação simbólica e mitológica agora serve para construir uma aura de poder encantatório, que oculta a racionalidade a favor das narrativas simplificadas e polarizadas. Neste teatro político, o líder assume a figura de um messias apocalíptico, encenando uma batalha definitiva entre o bem e o mal. Somos chamados a participar como crentes, não como cidadãos críticos. As emoções são manipuladas e a realidade distorcida, levam-nos a uma fé incondicional, onde a razão se dissolve. Paolo Demuru convida-nos a reflectir sobre como a política se tornou uma magia moderna, onde o encantamento é arma de controlo social, e propõe formas de quebrar esse feitiço, oferecendo resistência ao avanço da extrema direita. O livro reforça a ideia de “transe” como um processo insidioso que se infiltra na vida política, ao mesmo tempo que destaca a importância de oferecemos resistência e resgatar o estarmos juntos.
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