Angela Davis e Gina Dent: “Não há como separar o racismo das práticas de encarceramento”

Angela Davis e Gina Dent: “Não há como separar o racismo das práticas de encarceramento”

23 Novembro, 2022 /
Captura de ecrã do vídeo via Youtube/LEFFEST'22 ABOLICIONISMO Conversa com Angela Davis e Gina Dent
via Youtube/LEFFEST'22 ABOLICIONISMO Conversa com Angela Davis e Gina Dent

Índice do Artigo:

Do Linhó para o Leffest, depois para a Cova da Moura — Angela Davis e Gina Dent passaram por Lisboa para falar sobre abolicionismo. O Shifter publica algumas notas sobre esta passagem.

Houve quem não desse pela venda de bilhetes para a conversa de Angela Davis e Gina Dent no Leffest – Lisbon & Sintra Film Festival. Os bilhetes esgotaram a uma velocidade relâmpago. A procura levou a que a organização passasse o evento para uma sala maior, o Tivoli, mas assim que mais bilhetes ficaram disponíveis, esgotaram novamente. A reação imediata à vinda de Angela Davis e Gina Dent, teóricas abolicionistas e figuras centrais no pensamento negro contemporâneo, podia denotar várias coisas: por um lado, são vozes referenciais para quem pensa o abolicionismo, e há muito eram aguardadas em Portugal; por outro, é impossível ignorar o crescendo da popularidade de Angela Davis nos últimos anos, que se deve não só à ampla partilha do seu nome e das suas obras com a ampliação do movimento Black Lives Matter a uma escala global, desde a morte de George Floyd em 2020. 

Enquanto no Tivoli uma sala se enchia para ouvir Angela Davis, no outro lado do Atlântico um livro seu aparecia numa telenovela. Jussara, personagem da produção da Globo “Todas as Flores”, agarrava no livro “Mulheres, Raça e Classe” e dizia a Oberdan, o seu marido, que estava a ler livros que a estavam a fazer pensar — e que ele devia ler também. Uma celebração a Davis num plano mainstream corroborando a ideia que no estado de consagração atual, as ideias da autora não circulam só em nichos. 

Já no espaço público português, a tradução portuguesa de “A Liberdade é uma Luta Constante” terá permitido que mais pessoas tivessem acesso à obra de Angela Davis. As que não conheciam o seu trabalho de todo, as que não tinham acesso às edições brasileiras que já existiam e que aguardavam por uma tradução para a compreender melhor, as que precisavam de se cruzar com um livro seu entre os milhares de títulos da Feira do Livro ou de uma livraria. 

Davis foi editada em Portugal 46 anos depois de ter escrito a sua biografia — na altura uma jovem de 28 anos com uma vida cheia o suficiente para ocupar as páginas de um livro, e para se manter relevante tantos anos depois. Veio pela primeira vez a Portugal 51 anos depois de ter publicado “If They Come in the Morning: Voices of Resistance”, um livro que reúne textos sobre julgamentos e prisões nos Estados Unidos. E que é  sobre o seu próprio encarceramento, mas não só; é também um registo da reflexão abolicionista nos anos 70 através da sua voz e de outras pessoas que faziam parte da sua rede, de James Baldwin a Huey P. Newton e Erica Huggins, membros dos Black Panthers (Panteras Negras). 

Foi já em 2022 que Angela Davis e Gina Dent publicaram, juntamente com Beth Richie e Erica Meiners, “Abolition. Feminism. Now.”, um livro que expande as reflexões em torno do abolicionismo e que propõe um recorte de género na análise. Essa foi a razão pela qual vieram juntas ao Leffest a propósito do ciclo “Romper as Grades”. Quando pisaram o palco do Tivoli, estavam apenas há um dia em Portugal, mas já tinham ido visitar o Estabelecimento Prisional do Linhó, em Cascais, onde tiveram a possibilidade de ver um filme de Charles Burnett numa sala “cheia de homens negros” — disse mais tarde Gina Dent. 

À porta do Tivoli, os ecos de outra prisão também se faziam sentir. “Danijoy — Daniel—Miguel. Entraram vivos, saíram mortos. Queremos justiça já!!!”, lia-se numa faixa. As vidas de Danijoy Pontes, Daniel Rodrigues e Miguel Cesteiro, três homens encarcerados que apareceram mortos na prisão no último ano, eram reclamadas ao megafone, reinvindicando que pensar o sistema prisional em Portugal tem de passar pelas suas histórias. 

“Justiça! Abaixo os muros das prisões” 

“Uma pessoa nunca sabe quando é que vai precisar do apoio de um movimento em massa”, disse Angela Davis no Tivoli. Foi o que aconteceu consigo em outubro de 1970, quando foi presa por acusação de sequestro seguido de assassinato, depois de quatro ativistas ligados aos Black Panthers terem invadido o tribunal de San Rafael para libertar os Soledad Brothers, três adolescentes negros que iam a julgamento, com uma arma registada em nome de Angela Davis. Veio a provar-se que a ativista não estava no local, mas esteve presa durante cerca de dezasseis meses em que nunca parou de pensar sobre as prisões. Agora com uma nova perspetiva: a partir de dentro. 

O pensamento abolicionista já vinha dos tempos em que saía em defesa dos presos políticos, mas terá sido então que percebeu diversas questões relacionadas com o género nas quais nunca tinha pensado. Vivências que não tinham sido perceptíveis através da observação de estabelecimentos prisionais masculinos. O abolicionismo tornou-se uma resposta transversal para todos os problemas que ia encontrando. Antes de tudo: chama a atenção para a força estrutural das prisões, e de todas as instituições que as servem, nas sociedades contemporâneas. Que aprisionam corpos, pensamentos, e outras possibilidades de existência além das cis-coloniais. 

“A demanda da abolição da prisão não está separada de outras formas de punição do Estado”, disse a certa altura Angela Davis.

Na sala de espetáculos na Avenida da Liberdade era evidente que toda a gente que ali estava sabia quem era Angela Davis. Mas, após a ausência de introdução por parte da moderadora, a curadora do festival Inês Branco Lopez, Gina Dent acabou por se apresentar a si mesma, aproveitando o pretexto para explicar o seu contacto com o abolicionismo. Professora de Estudos Feministas, História da Consciência e Estudos Legais na Universidade da Califórnia, Gina Dent é também uma das maiores vozes do movimento na contemporaneidade. Contou que como jovem ativista que estudava a História afro-americana, a prisão era “um tema inevitável”. O seu pai era psiquiatra e trabalhou sempre com pessoas em condições de vulnerabilidade. Depois de trabalhar num hospital, mudou-se para uma prisão  mas cedo percebeu que o que sempre quis fazer lá dentro “não era possível”. “Não havia conversas terapêuticas, só medicação e restrições”, recordou Gina.  

Um dos pontos importantes a reter, desde logo, é que “o abolicionismo é um processo de construção”, nas palavras de Dent. “É sobre fazer o mundo de que precisamos.” Esse é um mundo sem prisões? Sim. Um mundo sem justiça? Não, pelo contrário. 

Antes de dar pistas sobre o que pode ser esse mundo, Gina Dent e Angela Davis mostraram como aquele em que vivemos atualmente é altamente marcado pelo sistema de encarceramento. E como esse sistema é altamente desigual. “Nem todas as pessoas que cometem o mesmo crime têm o mesmo castigo”, disse Gina Dent, “Não há como separar o racismo das práticas de encarceramento”, prosseguiu. 

Angela Davis diz também ser impossível descolar a realidade que se encontra nas prisões, que estão repletas de jovens negros, das consequências do capitalismo global. Relembra que muitas  das pessoas que acabam atrás das grades vão lá parar por não terem meios de sustento, e por serem “completamente atiradas para fora do sistema”. E reitera que é por isso que, para si, o abolicionismo é sobre “reimaginar a forma como vivemos uns com os outros”.  No abolicionismo, é possível imaginar um mundo que não depende da polícia para (tentar) manter a serenidade. E para o desencadear faz sentido pensar o que significa, para cada um(a), um mundo “seguro” — já que nos estados securitários a manutenção dessa ideia de segurança depende da polícia e do encarceramento de quem comete crimes. “Para mim, significa não ter armas”, disse Davis. 

Tanto para Angela Davis como para Gina Dent, importa também deixar claro que não vêem o abolicionismo como uma substituição de uma instituição por outras. A ideia não passa por criar novas instituições que castiguem e que tenham como base a violência; Dent diz mesmo que as prisões não diminuem a violência porque são instituições violentas. A sua proposta é dar uma reviravolta completa e gerar modelos de empatia nos quais o primeiro instinto seja uma tentativa de compreensão. “Podemos viver com criatividade, podemos viver com justiça”, sustentou Dent. 

Enquanto isso, no público, alguém gritava, de punho levantado: “Justiça. Abaixo os muros das prisões”. A voz que se erguia chamava de novo à conversa Daniel Rodrigues, Danijoy Pontes e Miguel Cesteiro. 

Pode uma pessoa local tomar a palavra?

Apenas uns dias antes da conversa no Tivoli, a artista Hilda de Paulo recordava, no Museu do Aljube,  o momento em que Angela Davis disse no Brasil: “Porque é que precisam de ir buscar uma referência [para o feminismo negro] aos Estados Unidos? Eu aprendo mais com Lélia Gonzalez do que vocês poderão aprender comigo”. Esta passagem também surge no documentário “AmarElo”, do cantor Emicida, que resgata algumas das figuras incontornáveis do movimento negro no Brasil. No contexto português, na conversa de Angela Davis e Gina Dent no Tivoli em particular, foram sendo feitos alguns comentários que levantavam a mesma questão, nos dias que se seguiram. Foi o caso da ex-deputada Joacine Katar Moreira, que partilhou o seu descontentamento através de uma publicação nas redes sociais na qual dizia que teria sido importante ter uma mulher negra a moderar — “Das mais moderadas e conciliadoras às abertamente radicais qualquer delas pensaria e trataria as convidadas com as vénias que merecem”, disse. Havia várias pessoas do movimento negro na plateia, mas houve quem lembrasse que muitas outras não tiveram a oportunidade de estar ali. 

Ao longo de toda a conversa, não era possível desligar da manifestação que decorrera no início da noite e da possibilidade de ouvir Angela e Gina falarem sobre Daniel Rodrigues, Danijoy Pontes e Miguel Cesteiro. A partir das histórias destes três homens que entraram vivos e apareceram mortos na prisão, Angela Davis disse: “Mantemos as suas memórias vivas ao fazermos o tipo de ativismo que tenta garantir que isto não acontece a mais ninguém”. E ainda citou John Berger, depois de ter feito um paralelo com as movimentações que a morte de George Floyd desencadearam, dizendo que “as demonstrações em massa são ensaios para a revolução”. Os aplausos do público sentiram-se particularmente nesse momento, assim como a vontade de apropriar e alargar este debate para a realidade nacional.

Se há conversas e debates em que o momento de perguntas e respostas é constrangedor — porque ninguém no público quer questionar — não foi o caso nessa noite, em que só faltou tempo para todas as questões poderem ser colocadas. No ar, pairava alguma expectativa em ouvir Angela e Gina falar sobre soluções concretas, algo que rapidamente se percebeu que não seria justo dado que falavam sobre um contexto que não é o seu. A primeira intervenção foi de uma pessoa de 16 anos que perguntava o que é que a sua geração podia fazer para impulsionar o abolicionismo. Num tom visivelmente entusiástico por ter alguém tão jovem na plateia, Angela Davis devolveu-lhe a pergunta e Gina Dent disse-lhe para “nunca subestimar o que tem a dizer”, denotando que mais do que soluções vieram até Lisboa dar esperança e inspiração.

Minutos depois, Alexa Santos, ativista transfeminista e dirigente do INMUNE – Instituto da Mulher Negra, levantava-se para mais uma intervenção. Começou por referir que certamente haveria muita gente na sala que podia pegar no microfone e dizer coisas importantes porque via na plateia tantas pessoas que fazem um trabalho importante em Portugal. E aproveitou o seu espaço de fala para apontar algumas falhas, no mínimo simbólicas à organização. Alexa disse que esperava que tivessem tido uma mesa para pousar os seus copos e que teria sido importante haver uma tradução da conversa para que parte das pessoas ali sentadas não tivessem de apanhar apenas metade do que foi dito. A partir daí, fez o seu comentário em português e inglês, como tomada de posição e forma de reinvindicar a real democratização de debates como este. 

Numa das entradas da sala, estava uma banca com livros de Angela Davis, como “A Liberdade é uma Luta Constante” e “As Prisões estão obsoletas”, e edições de outras autoras como “Memórias da Plantação” de Grada Kilomba e “Pode a subalterna tomar a palavra?” de Gayatri Spivak. O livro de Spivak comunicava subliminarmente com o comentário de Alexa e com um outro que viria a ser feito, de Sara: “quando vocês participam em conversas não ficam surpreendidas que grande parte do público seja branco, em cidades em que historicamente temos uma grande predominância de pessoas negras? Qual é o conselho que podem dar ao Leffest e a outro tipo de eventos, sobre representatividade?” 

Das respostas de Gina Dent e Angela Davis ficou a mensagem de que “quando a mulher negra se movimenta, toda a estrutura da sociedade se movimenta com ela”. 

“Uma vinda simbólica para nos dar persistência para continuarmos a lutar e não desistirmos” 

Dois dias depois da passagem pelo Tivoli, surgiram imagens de Angela Davis e Gina Dent na associação Moinho da Juventude, na Cova da Moura, com pessoas do movimento negro português. Ao lado delas estavam Cláudia Simões, uma mulher negra que foi brutalmente agredida por um agente da PSP na noite de 19 janeiro de 2020, Alice Santos, a mãe de Danijoy Pontes e Cristina Roldão, a socióloga que as viria a entrevistar para o PÚBLICO e que tem sido responsável pelo resgate de nomes e projetos da história negra em Portugal.

Na zona circundante à sede do Moinho da Juventude, encontra-se um mural com o rosto de Amílcar Cabral. Foi nele que Angela Davis reparou quando chegou à Cova da Moura, como viria a contar na entrevista com Cristina Roldão. “(…) no encontro em que lá participei alguém discutia o impacto do seu pensamento. Para mim, o que era especialmente impressionante era o modo como ele reconhecia a importância do envolvimento das mulheres na luta”, explicou. No movimento das forças de libertação, e do PAIGC em particular, as mulheres guerrilheiras, como Carmen Pereira, Titina Silá, Teodora Gomes, Lilica Boal, Amélia Araújo, assumiam um papel preponderante na luta pela liberdade — mas também no imaginário de um futuro melhor, a metáfora perfeita para o seu modo de agir. 

Neusa Sousa, fundadora do projeto “Chá de Beleza Afro” e produtora de conteúdos no programa “Bem-vindos” da RTP África, era uma das mulheres presentes na sala da associação da Cova da Moura. Angela Davis era uma das suas grandes referências e nunca pensou que seria possível conhecê-la: “Sabes aquele imaginário tão distante de ti, em que conheces alguém que tu lês, que te inspira, que te abre os horizontes para muitas coisas que não sabias expressar, que dá um nome às coisas e te faz ver que o teu posicionamento e aquilo em que pensas e o que defendes faz sentido?”.

Numa das fotografias que Neusa partilhou no Instagram, o entusiasmo no seu rosto é bem visível. Foi “um momento histórico” que, nas suas palavras, muitas das pessoas presentes nunca pensaram que viveriam. Este encontro foi a confirmação de que apesar de ser mundialmente aclamada, Angela Davis “não é assim tão inacessível” e que “quer efetivamente estar na periferia, quer efetivamente saber as problemáticas das pessoas negras noutras diásporas”. “[Ela] quer ouvir, quer sentir, quer abraçar, e saber que nós temos acesso [a conversar consigo], que conseguimos trazer as pessoas negras que têm impactado milhares de vidas para [que exista] outra realidade”, continua. 

Depois de partilhar fotografias do encontro, Neusa Sousa começou a receber mensagens de amigas e seguidoras que vibraram consigo por ter estado presente “neste momento”. Para quem vem de um país tão pequeno, São Tomé e Príncipe, foi simbólico estar com “alguém tão grande”, diz. “Fez-me acreditar que nada é impossível e que quando menos esperamos conseguimos ver um momento que ficará na história. Este, sem dúvida, ficará na história da comunidade negra em Portugal; ficará na minha história enquanto ativista, mulher negra feminista anti-racista são tomense”. 

Das partilhas de algumas das pessoas presentes, como Neusa Sousa, Paulo Pascoal, Vitor Sanches, transpareceu um ambiente de partilha e união. Neusa conta que, como Angela Davis disse naquele final de dia no Moinho da Juventude, a sua passagem “não serviu para ela nos dar respostas para as nossas problemáticas”. “O encontro com ela serviu para fortalecermos ainda mais os nossos laços dentro da comunidade negra. Para fortalecermos ainda mais a luta e percebermos que só juntos podemos lutar contra a discriminação racial, a discriminação contra a mulher negra e a discriminação social. É mais uma vinda simbólica, uma espécie de uma lufada de ar fresca que veio iluminar, energizar, dar-nos mais energia e persistência para nós continuarmos a lutar e não desistirmos”, explica ao Shifter

E quando lhe perguntamos que ecos se pode esperar, depois desta passagem de Angela Davis e Gina Dent por Portugal, Neusa é peremptória: “[O] que eu tiro desse encontro é que a comunidade negra não tem que se unir apenas quando tem dor, também podemos unir-nos nos momentos de alegria. Os momentos de alegria também podem fortalecer-nos, esse encontro veio mostrar-nos isso. Não nos unimos para chorar a morte de alguém ou para chorar uma situação de racismo, unimo-nos para reforçar o nosso laço, para celebrarmos o ser negro, para fazermos intercâmbio de culturas, de saberes, de experiências. Esse encontro surgiu para mostrar que a comunidade negra é muito mais do que dor e sofrimento.” 

A conversa de Angela Davis e Gina Dent no Leffest pode ser ouvida na íntegra no YouTube.

Autor:
23 Novembro, 2022

Carolina Franco tem escrito sobre cultura, juventude e direitos humanos. Cada vez acredita mais que está tudo ligado. É jornalista colaboradora no projeto de literacia mediática PÚBLICO na Escola, e co-editora do Shifter. Estudou Ciências da Comunicação no Porto, de onde é natural, tem pós-graduação em Curadoria de Arte e está a completar mestrado em Antropologia - Culturas Visuais com uma tese sobre a importância da representatividade trans* no audiovisual.

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