A guerra não é tempo de literatura

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Ilustração de Lourenço Providência / lourencoprovidencia.com

A guerra não é tempo de literatura

"Mas isto também não significa que a literatura se desvanece completamente. É no momento extremo, no momento de tragédia, no momento de ameaça que a literatura provém dentro de nós, pois todas as histórias e livros que lemos explicam-nos o mundo em nosso redor."
Este texto é da autoria do escritor ucraniano Andriy Lyubka e foi traduzido pela Ana Martins; a versão na língua original pode ser encontrada aqui.

A 10 de Março, duas semanas após o início da guerra, uma das livrarias ucranianas retomou o seu trabalho. Seria a primeira. Esta livraria em Lviv, a livraria da «Editora Staroho Leva», é mais que uma simples loja de livros, é um lugar onde se vende o conforto: aqui podemos beber um café, sentarmo-nos numa confortável poltrona e ler algum livro. É precisamente isso que faz hoje falta a centenas de milhares de deslocados internos, que fugiram das zonas de maior conflito para a parte ocidental da Ucrânia, mais calma.


Passados uns dias, ou seja, na terceira semana desde o início da guerra, a maior cadeia de livrarias da Ucrânia «E» anuncia o retorno à actividade de dez das suas lojas que se encontram em cidades ocidentais da Ucrânia. Isto não significa uma retomada completa do mercado livreiro, até porque os consumidores não andam agora com muito dinheiro e as principais gráficas e armazéns, em Kharkiv e nos arredores de Kyiv, estão bloqueadas.


O retorno ao trabalho das livrarias não tem em vista qualquer sucesso comercial, mas antes algo bastante mais importante: dá às pessoas uma sensação de normalidade, a sensação de uma vida normal e comum. Isto é importante para que os pais que queiram comprar algum livro bonito e colorido aos filhos apavorados e ansiosos, que os mergulhe num qualquer mundo mágico e alegre, tenham essa possibilidade. Afinal, o nosso país luta também pelo direito de escrever, editar e ler livros em ucraniano.


Em tempos de guerra, os escritores e tradutores ucranianos empenham-se na defesa da Ucrânia em papéis completamente distintos, mas sempre bastante proativos. Alguns, como o Artem Chekh, o Borys Humenyuk, o Serhiy Pantyuk, o Bohdan Kolomiychuk, o Oleksandr Mykhed ou os irmãos Kapranov, pegaram em armas para resistir ao invasor na frente ou nas suas cidades. Outros, como o Serhiy Jadan, a Yevheniya Zavaliy ou a Kateryna Kalytko, intensificaram o seu trabalho de voluntariado: arrecadam fundos e bens essenciais para o exército, coordenam o transporte de bens de ajuda humanitária para leste e sul do país. Dezenas de escritores ucranianos escreveram, já durante o período de guerra, inúmeros textos de grande qualidade para os media ocidentais, deram dezenas de entrevistas importantes, traduziram centenas de páginas relevantes de ucraniano e para ucraniano.


Não há um escritor ucraniano que grite pela capitulação e paz a qualquer preço. Em particular, é preciso sublinhar que até mesmo os escritores ucranianos que escrevem em russo se opõem categoricamente à agressão criminosa de Putin e apoiam a Ucrânia. Na prática, hoje, todos os escritores, sem excepção, ocupam-se com algo: combatem, defendem, lutam na frente de informação, descarregam camiões com ajuda humanitária, ajudam no realojamento de refugiados, dão aulas de arte-terapia para crianças que fugiram das cidades bombardeadas. Ou seja, tentam todos ser úteis, mas ocupam-se com tudo, excepto com a sua vocação – a escrita das suas obras artísticas. Porque agora não é o momento.


Porém, para esta regra há as notáveis excepções: recentemente, o crítico ucraniano Yevhen Stasinevych visitou uma muito conhecida intelectual ucraniana, autora de vários livros importantes de história da Ucrânia, Nataliya Yakovenko. Parece que mesmo nestes dias tenebrosos, em Kyiv e debaixo dos tiroteios, a historiadora, já com alguma idade, trabalha numa tradução da obra de Tito Lívio. Sobre o seu trabalho, explica ela: «Consegues perceber, Genya? A História não começa com o Heródoto, isso é tudo contos de fada. A verdadeira História é a partir de Lívio. Não há ainda uma tradução para ucraniano de Ab urbe condita e, há pouco tempo, lembrei-me que até sei bem latim. Outros planos exigem trabalho em arquivo, mas saúde já não há, por isso, decidi debruçar-me sobre o Lívio». A partir de hoje, Nataliya Mykolaiyvna começará a tradução do vigésimo nono livro de 45 sobre a «História da fundação da cidade», trabalha agora na guerra com Aníbal.


As editoras ucranianas, que interromperam quase a 100% a sua actividade editorial com o início da guerra, o avanço da linha da frente, os problemas logísticos e a falta de procura comercial, tentam adaptar o seu papel às novas circunstâncias. A tarefa básica é, pelo menos, pagar o salário aos trabalhadores, pois, sem isso, e em condições de guerra, as pessoas passarão por tremendas dificuldades. A tarefa já mais extrema é tentar vender os seus livros no mercado estrangeiro, já que o interesse hoje pela Ucrânia e, consequentemente, pela sua literatura é extremamente elevado.

Para além dos vários acordos que já existem para uma representação sistemática da literatura ucraniana na Europa, os membros da associação de editores da Ucrânia têm ainda apelado ao Ministério da Cultura para a compra de livros ucranianos para bibliotecas estrangeiras. Até porque já vivem actualmente centenas de milhares de ucranianos em muitos países europeus, que procurarão para si e para os seus filhos livros na língua materna. Os maiores operadores do mercado livreiro ucraniano disponibilizaram gratuitamente os seus e-books para download durante o período de guerra.


Vale também a pena recordar o papel do PEN Club, pois, ao fim de três semanas de guerra, esta organização tornou-se numa espécie de Ministério dos Negócios Estrangeiros da Cultura Ucraniana. O PEN tem orientado alguns projectos internacionais importantes, apoiado a publicação de ensaios de literatos ucranianos nas principais edições internacionais e organizado entrevistas com escritores ucranianos, traduzindo-as activamente para as línguas-chave do mundo. Além disso, o PEN tem dirigido uma série de vídeo-encontros entre escritores famosos da Ucrânia e as suas contrapartes estrangeiras, incluindo alguns laureados com o Prémio Nobel, onde se informa um público-alvo, oriundo de países democráticos, sobre a guerra em curso na Ucrânia. Um dos projectos mais interessantes do PEN é a iniciativa que se denomina «Diários de Guerra» – uma documentação artística da realidade feita pelos escritores ucranianos. Em alguns anos este arquivo tornar-se-á uma valiosa fonte de verdade sobre a agressão russa e, para muitos autores, uma base de escrita de romances e outras criações artísticas.


Mas o mais tocante são mesmo as posições tomadas pelos leitores, que, naturalmente, provêm de todos os segmentos e categorias populacionais. Em baixo de cada publicação e foto de muitos escritores, deixam comentários como: sonhamos com a vitória e oramos pela paz, para que vocês escrevam de novo e que nós voltemos de novo a ler. E é verdade que todos sonhamos com isso, porque em tempos de guerra há coisas mais importantes que a leitura.


Temos que reconhecer que, em tempos de guerra, a literatura passa para segundo plano. Ela até pode levar à guerra ao incitar nas pessoas a raiva e o ódio (como os livros do nazi russo Priliepin), pode também analisar o homem e o mundo depois da tragédia do conflito, mas no grosso da guerra, quando mesmo debaixo de disparos, ela perde a sua função primordial. Quando caem as bombas, as pessoas preocupam-se em fugir e esconder-se, em proteger os seus ou mesmo em enfrentar o inimigo, mas não em alcançar um livro. Debaixo dos sons das explosões, não é possível manter a concentração, por isso é que não consegues ler grande coisa numa situação destas.


Mas isto também não significa que a literatura se desvanece completamente. É no momento extremo, no momento de tragédia, no momento de ameaça que a literatura provém dentro de nós, pois todas as histórias e livros que lemos explicam-nos o mundo em nosso redor. Conheço pessoas que só puderam levar de Kyiv uma pequena mala de coisas – e no meio de tantas outras mais importantes trouxeram consigo algum livro. O mais comum é mesmo uma colectânea de poemas. Porque esse pequeno livro devolve-nos uma sensação de casa, com ele sentimo-nos sempre mais seguros; e mesmo o facto de termos livros nas bagagens testemunha que nem mesmo a guerra destruiu o humano, o sensível, que temos em nós, não nos arranhou sequer a dignidade.
É no momento de maior aflição que de repente surge uma palavra, uma citação de um dos nossos poemas favoritos, lido numa aula ainda nos tempos de escola, e parece que é agora ainda mais apropriado aos tempos. É algo inexplicável, mas é precisamente no momento das mais grandiosas angústias que a poesia se torna a mãe de todas as artes, um código que se verte ao coração. Como se restaurasse a sua mais primitiva essência, quando os sussurros dos xamãs em torno das fogueiras curavam a alma e livravam-na de espíritos malignos.


Nunca na minha vida entendi tão bem poesia como durante a revolução e a guerra. É nestes momentos que ela pode acalmar, ajudar a chorar, e também inspirar à luta, ensinar a cerrar os dentes e a lutar pela vida. Não é por acaso que a 9 de Março, aniversário de nascimento do maior poeta ucraniano, Taras Shevchenko, todos nós – do presidente ao cidadão comum – citámos os seus versos, partilhámos nas redes sociais citações, filmámo-nos a declamar as nossas estrofes preferidas. Nesse dia, toda a gente percebeu que a palavra é uma forte arma motivacional, embora nos tempos de paz uma afirmação como esta nos pareça uma banalidade completamente patética.
Pode-se odiar a guerra por uma infinidade de coisas, mas nós, gente dos Livros, odiamo-la por nos roubar a possibilidade de escrever e ler, ou seja, de fazer aquilo que mais gostamos. A guerra torna a vida numa luta primitiva pela sobrevivência, em que todas as supercontruções civilizacionais passam para segundo plano e os escritores tornam-se simplesmente num alvo para as bombas inimigas.


Afinal, um escritor é, primeiro que tudo, carne, ossos e sangue que pode ser destruído por balas, e só depois uma pessoa que trabalha com palavras. E eu odeio a guerra precisamente por de pessoa me ter transformado num saco de carne e sangue, num alvo entre milhões de alvos na mira dos soldados russos.

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Índice

  • Andriy Lyubka

    Poeta, prosaísta, tradutor, ensaísta e balcanológo ucraniano, nasceu em Riga em 1987, mas vive há já muitos anos em Ujhorod, uma cidade nos transcarpátos ucranianos. Com uma extensa bibliografia, infelizmente ainda não traduzida para português, que conta com as colectâneas de poesia Вісім місяців шизофренії (2007) (Oito meses de esquizofrenia), ТЕРОРИЗМ (2008) (Terrorismo), Сорок баксів плюс чайові (2012) (Quarenta bucks e umas gorjetas), os livros de contos Кілер (2012) (Killer), Кімната для печалі (Um Quarto para o Luto) (2016), Саудад” (2017) (Saudade), os romances Карбід (2015) (Carbide), Твій погляд, Чіо-Чіо-сан (2018) (O teu olhar, Chio-Chio-san), Малий український роман (2020) (Pequeno romance ucraniano) e o livro de ensaios Спати з жінками (2014) (Dormir com mulheres). Como tradutor tem traduzido grandes nomes do polaco, sérvio, croata e inglês. Vencedor de vários prémios literários dentro e além-fronteiras.

  • Ana Martins

    Nasceu em Lisboa em 1994. Depois de se ter perdido durante cinco anos num curso de Engenharia Mecânica (diz-se que por um gosto enganador por matemática e desafios), decidiu seguir a sua paixão e ingressou no Mestrado em Estudos Portugueses, que concluiu com a dissertação “A palavra ganha pelo silêncio – diálogos peregrinos entre Herberto Hélder e Paul Celan”. Nos últimos tempos, tem seguido com a aprendizagem de línguas e explorado o gosto pela tradução, concentrando-se, especialmente, na tradução de literatura de línguas ucraniana e neo-helénica, e encontrando novas pequenas obsessões em Yánnis Rítsos, Mykhail Kotsiubynskyi e Oleksandr Dovjenko.

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