O regresso do inverno nuclear?

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O regresso do inverno nuclear?

A democracia precisa de quem pare para pensar.

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O “fim da história” foi anunciado no momento em que deixamos de ter bombas nucleares a pairar ameaçadoramente sobre as nossas cabeças. Quando parecia ter-se eliminado a possibilidade da iminente destruição total da humanidade, a história, aparentemente, chegava ao fim. Dir-se-ia que o fim deste sequestro do amanhã, abriria o horizonte para o crescimento de outras ideias e outras formas de agência política no plano internacional, mas, afinal, era o contrário. Com o fim da “guerra fria”, e a dissipação da ameaça nuclear, foram muitos os que se renderam incondicionalmente à armadilha que assumia que o mundo tinha tomado um caminho irreversível de estabilidade e paz globais. Mas nada do que aconteceu nos anos que se seguiram sustentou a tese de que vivíamos numa “ordem mundial” próspera e pacificada. A guerra apenas deixou de ser “fria” e passou à temperatura ambiente, continuando por outros meios, igualmente difusa mas mais longe dos nossos olhares.


Nestes dias, uma frase lapidar de Josep Borrell, Alto Representante da União Europeia para os Negócios Estrangeiros e Política de Segurança, parece anunciar o fim desse ciclo e um regresso ao passado: “precisamos de perceber que para fazer a paz são precisos dois mas que para fazer a guerra basta um(itálico meu). Voltamos a acordar subitamente com a ameaça de uma guerra nuclear. Afinal, as bombas continuavam por aí. Só tínhamos esquecido que a guerra podia ser feita por apenas por um lado.


A ideia de que a bomba nuclear era um símbolo da esperança, e o garante de um mundo de paz e liberdade, começou a disseminar-se nos anos 40 do século XX. Gordon Dean, presidente do Comité de Energia Atómica dos Estados Unidos da América, anunciava orgulhosamente, em 1951, que “hoje, os Estados Unidos afirmam-se perante o mundo com a tocha da liberdade numa mão e a bomba atómica na outra”. Os ataques a Hiroshima e a Nagasaki, anos antes, não foram suficientes para alertar para os perigos da bomba nuclear. Pelo contrário, no Ocidente, a apreensão inicial desapareceu rapidamente e gerou-se uma adrenalina de poder, movida pela aparente invencibilidade e capacidade de subjugação humilhante do inimigo, que preparou o terreno para o crescimento exponencial dos arsenais nucleares, primeiro nos Estados Unidos, depois na União Soviética.


No longo século XX, até ao “fim da história”, nem todos seguiram exactamente a força dos dois pólos em que se dividia o mundo. Sem tomar parte na chantagem dissuasora de um lado e do outro, milhões de pessoas, durante décadas, mobilizaram-se, organizaram-se e protestaram para que o que parecia impossível se mantivesse como condição inevitável para encontrar outro rumo. Vern Partlow, um jornalista norte-americano, escreveu aquela que foi, provavelmente, a primeira música anti-nuclear, “Old Man Atom”, e expunha a lógica perversa por trás da normalização nuclear: “We hold this truth to be self-evident:/ “That all men may be cremated equal.” A música seria gravada em 1950 e imediatamente tirada de circulação sob o argumento de que “a canção seguia a ‘linha de paz’ do Partido Comunista”. O desvio do consenso era um perigoso sinal de anti-patriotismo.


Algo tão determinante para o destino do mundo, como o uso das armas nucleares, foi afastado do controlo democrático e daqueles que mais poderiam sofrer com as suas consequências. A história, contudo, nunca teve apenas dois lados e a agencialidade política nunca teve que estar condenada a escolher os interesses dos grandes leviatãs que parecem fazer sozinhos as regras do jogo. O movimento pelo desarmamento nuclear foi crescendo nas décadas seguintes e desafiou o consenso de que a paz era inseparável da possibilidade da destruição massiva da humanidade. Com a queda do “muro”, infelizmente, muitos daqueles que integraram esses movimentos esqueceram-se que para fazer a guerra bastava apenas um lado e viraram-se para outras preocupações. Mas a tese da “dissuasão nuclear” nunca foi abandonada e os arsenais de destruição total foram mantidos (ainda que reduzidos).


O presente coloca-nos perante a nossa impotência e incapacidade de lançar as bases de um mundo diferente. O pacifismo intransigente parece levar-nos à demissão de intervir na destruição de vidas humanas, a curto ou a longo prazo; e a necessidade de defender essas, e as nossas, vidas parece obrigar-nos a aceitar uma guerra feita por pessoas e organizações que, no fim de contas, são apenas um mal menor, mas sempre um mal. Este momento parece deixar-nos num beco sem saída: para parar um acto bárbaro, é preciso espalhar e intensificar a barbárie. Parar piorar, adensam-se os sinais de que estamos a voltar a um tempo em que a procura de outros caminhos, diferentes daqueles para que tudo parece impelir-nos, correm o risco de se tornar, novamente, sinais de “irresponsabilidade”, “dissidência” e “anti-patriotismo”. Se estás contra “nós”, significa que estás com “eles”. A história, contudo, fez-se sempre por múltiplos caminhos. As dicotomias em que tentam encerrar-nos não nos impedem de escolher o nosso próprio lugar. Deixemos, por isso, os senhores da guerra saltar à fogueira. A quem quer a paz cabe fazer o que parece impossível: apagá-la.

Índice

  • Diogo Duarte

    Diogo Duarte destapou o horizonte pelo punk-hardcore e fez-se ao caminho. Formou-se em antropologia, escreveu uma tese de doutoramento sobre a história do anarquismo em Portugal e é investigador no Instituto de História Contemporânea/ NOVA-FCSH. Trabalha sobre o passado das culturas populares e das culturas políticas e conhece o presente pela mão de pessoas em situação de sem abrigo. Nas horas vagas, escreve sobre música.

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