Miles Greenberg: “O que nos move quando não nos estamos a mover?”

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© Jasper Richen

Miles Greenberg: “O que nos move quando não nos estamos a mover?”

A democracia precisa de quem pare para pensar.

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Num espaço com um acabamento quase fabril, quatro pedestais espelham oito corpos em pares. Fundem-se, distanciam-se, voltam a fundir-se. Movem-se na frequência em que se encontram , e encontram equilíbrio na tensão que pesa para cada um dos seus lados. Tornam-se um mantendo a individualidade. É fim de tarde, em Lisboa, mas por ali o tempo parece, de certa forma correr em círculos. Podemos sentar-nos num banco e ficar por ali durante uma, duas, três, quatro horas. Podemos até ficar 5 minutos. Mas é provável que o olhar difuso de algum dos performers nos encontre no espaço e nos faça querer ficar.

“Water in a Heatwave” é uma performance de Miles Greenberg, artista canadiano que se estreou em Portugal pela BoCA – Biennial of Contemporary Art no passado entre setembro e outubro do ano passado. Nestes cubos em espelho surge o próprio Miles, performer duracional, em algumas das sessões, e bailarinos e performers portugueses. Nenhum deles, à excepção de Miles, havia feito uma performance de longa duração antes. Pela primeira vez, testavam os limites dos seus corpos durante quatro horas por vários dias seguidos. 

Gerson Sanca, Danilo da Matta, Rolaisa Furtado, Débora Njoko, Valdo Sá, Pierre Kwenders, Joãozinho Costa, André Cabral, Sall Lam Toro, Lola e David Amado, vindos de backgrounds bastante distintos, partilharam a sua força e as suas fragilidades com Miles Greenberg. Semanas depois, Greenberg viria a explicar-nos que só mais tarde percebeu que muitos deles já se conheciam, alguns já tinham partilhado intimidade, e havia “uma sensação de comunidade” no grupo à priori. “Quando estás a trabalhar em cidades pequenas, cuja cena artística também não é muito grande, acontece perceberes que na tua equipa há muita gente que se conhece, alguns até muito bem. Mas não é algo que eu escolha deliberadamente”, explica. 

Nas suas performances de longa duração, Miles Greenberg transcende os limites da escultura e centra os nossos olhares no seu universo. Com a banda sonora de personaljjesus, nome artístico de Julián Jesús, criou um universo sci-fi que rompe a noção de tempo e de espaço que se teria antes de entrar nas Carpintarias de São Lázaro. E se em longas durações a solo Miles se testava a si mesmo – como aconteceu em “Oysterknife”, onde caminhou numa passadeira durante 24 horas, parando apenas por 25 minutos por perda de consciência, no Phi Centre, em Montreal, ou em “Lepidopterophobia”, onde, fechado num cubo transparente, enfrentou uma das suas maiores fobias durante cinco horas: borboletas – , em grupo há uma outra sensação de controlo do que poderá acontecer. 

“Penso que o maior constrangimento com o qual eu trabalho, em geral, tem que ver com os limites do meu corpo e dos corpos de outros performers. Penso sempre mais ou menos desta forma: esta peça que vai existir será como uma espécie de negativo de todas as coisas ao seu redor, que a agarram à realidade, em oposição à fantasia e à ficção. Para ‘Water in a Heatwave”, imaginei algo semelhante a dois lutadores de luta livre, e isso aconteceria de forma intensa ao longo de 4 horas, mas acabou por não ser o caso porque são pessoas diferentes que reagem de forma diferente umas às outras”, conta. 

A relação das suas performances com a escultura pode não ser, desde logo, evidente, mas este é o seu referencial desde que Miles Greenberg, de 24 anos, começou o seu percurso enquanto artista. Começou a perceber que queria algo que juntasse as esculturas clássicas greco-romanas a um universo sci-fi e, ao mesmo tempo, que vivesse as efemeridades de corpos humanos. Percebemos as tensões entre as referências do passado e as projeções de um futuro que está por vir nos corpos quase nus e nas lentes de contacto esbranquiçadas. Mas há algo de muito humano ali, a exaustão — é aí que “a poesia entra” em cena, acredita Greenberg. 

Um embate contra o expectável 

Com as lentes de contacto que tem usado em quase todas as suas performances, “consegue sentir-se as sombras à volta e a presença física do público”. Se em “Oysterknife”, performance transmitida online para o Marina Abramovic Institute, se sentiu “completamente sozinho”, em “Water in a Heatwave” os seus movimentos dependiam sempre de quem estava em cima do pedestal sozinho e podiam ser analisados por quem se sentasse nos bancos em torno da delimitação do espaço performático. “A sensação foi completamente diferente, [quando estava sozinho em “Oyesterknife”] foi muito mais introspetivo”, conta. “Ao trabalhar com um parceiro, que foi algo que fiz em cinco das oito apresentações em Portugal, recebes muito a energia da outra pessoa”. 

De uma colisão entre corpos, como tinha imaginado, “Water in a Heatwave” passou para “uma espécie de dança energética” onde os corpos se equilibram mutuamente. O que mais fascinou Miles Greenberg neste processo foi o quão ligadas as pessoas acabaram por ficar umas às outras depois de se juntarem no pedestal. Era como se a vida de ambos dependesse dos dois lados, e como se a energia de cada par fosse a garantia de uma energia do coletivo. “Há algo muito bonito em criar uma forma com teu corpo que é construída para tentar segurar o de outra pessoa”.

Também Personal Jesus criou uma certa expectativa para aquilo que viria a ser a performance que musicou. Miles conta-nos que o seu amigo lhe disse que esperava “algo mais violento”, mas que “sem que te apercebas estás a olhar para duas pessoas que estão apaixonadas”. 

O performer canadense deixou o ensino regular quando tinha apenas 17 anos. Desde então tem feito formações que dão corpo ao trabalho que hoje em dia vai apresentando pelo Mundo. Não quer ser representativo de uma geração, mas o seu olhar é (também) fruto dos tempos em que nasceu. Miles Greenberg cresceu no tempo e na velocidade da internet, encontrou possibilidades de um futuro como quem navega num scroll e vai absorvendo o que mais lhe apraz. No entanto, estica o tempo e cria universos paralelos para os quais nos convida a entrar. Cria de dentro para forma, a partir do íntimo mas com uma dimensão universal. Os seus gestos têm o rigor de quem se faz performer na cidade do Cirque du Soleil. Vê-se como agente das suas criações, mas quer também que os espectadores tenham agencialidade.

Numa entrevista dada ao Document Journal em novembro do ano passado, explicou que não está interessado em discutir “a subjugação dos corpos no seu trabalho, ou a ideia de que estas pessoas negras estão a fazer uma performance para pessoas brancas” já que ele próprio foi “capaz de ver e entender questões sobre o amor, sobre a vida e o universo através de arte expressada exclusivamente por corpos brancos” e é assim que espera que olhem para o seu trabalho, sem estar relegado a uma dimensão política ou decolonial. Prefere “usar a negritude como pincel, e não como tema”. Na mesma entrevista cita Rhea Dillon, que cunhou o termo Afrofuturismo Humano, que acredita resumir, em parte, a relação entre o seu trabalho e este assunto: “ela fala-nos de uma versão do futurismo na qual tu, enquanto pessoa negra, estás a fazer trabalho que não requer que decidas o futuro e o destino de toda a diáspora negra”. 

A relação que espera que os espectadores tenham com o seu trabalho é, também, ausente de grandes expectativas. Quer que se relacionem com a performance como lhes fizer mais sentido, que fiquem o tempo que quiserem ficar. “Tem que ver com a possibilidade de tirares uma fotografia, olhares para o telefone, ires buscar um café, voltares, ficares por cinco minutos ou cinco horas e saberes que foste agente da tua experiência. Esse formato, para mim, é inevitável quando falamos de longa duração. Os espectadores devem sentir-se no direito de experiências o meu trabalho não como uma linha, mas como um circulo. Não é uma narrativa, não há ponto A até ao ponto B. Não vais dar a lado nenhum, não vais parar a lado nenhum, a performance não vai para lado algum. Portanto, fiques 5 segundos, 5 minutos ou 5 horas, podes não ter a mesma experiência, obviamente, porque há pressupostos diferentes, mas deves ter a possibilidade de ter experiências comparáveis”

“O que é que nos move quando não nos estamos a mover?”, pergunta Miles Greenberg. São as múltiplas e complexas respostas à sua questão que enformam a nossa experiência quando vemos o seu corpo em decadência.  

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  • Carolina Franco

    Carolina Franco tem escrito sobre cultura, juventude e direitos humanos. Cada vez acredita mais que está tudo ligado. É jornalista colaboradora no projeto de literacia mediática PÚBLICO na Escola, e co-editora do Shifter. Estudou Ciências da Comunicação no Porto, de onde é natural, tem pós-graduação em Curadoria de Arte e está a completar mestrado em Antropologia - Culturas Visuais com uma tese sobre a importância da representatividade trans* no audiovisual.

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