Kanye West, o rapper da vida moderna

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Kanye West
CC BY 4.0 Kenny Sun / via Flickr

Kanye West, o rapper da vida moderna

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Não é sensato reduzir Kanye West ao estatuto de quasi-personagem de reality show que a cada ciclo de lançamento de um novo álbum gera controvérsia nos media. West foi uma pedra angular no desenvolvimento da cultura mais mainstream do rap.

Kanye West é, hoje em dia, uma personalidade bastante divisiva. Amado por muitos, odiado por tantos outros, West atingiu o patamar mais elevado do mundo da música graças não só ao seu génio inconfundível mas também à sua capacidade de se adaptar aos media digitais — factor determinante para o sucesso (ou insucesso) de qualquer um no século XXI.

Apesar de ser obviamente um disco musical, o seu trabalho mais recente, Donda, não se restringe apenas a esse campo. Em torno deste cresceu uma mística que foi muito além do que é esperado de um artista musical. Memes, beefs e clout são palavras que viram disseminado o seu sentido no século XXI e são também a única forma de descrever os eventos dos últimos meses e a forma como Kanye West trouxe a público o seu mais recente projeto. 

Ainda antes de ter sido lançado, Donda já tinha rendido cerca de 7 milhões, apenas na venda de material promocional durante uma das três listening parties. Um valor bem revelador do estatuto de celebridade — para lá de músico — que Kanye West atingiu. Ye passou de produtor a rapper, de rapper a celebridade e nesse estatuto não tem deixado de assumir como um fenómeno global talhado por e para a Internet. Se Kanye não é mais estrela do que estrelas do passado, é-o num novo meio que determina novas dinâmicas da relação entre si e o seu público ou, se quisermos, os seus seguidores (literal e figurativamente). 

De resto, a envolvência dos lançamentos em enormes acontecimentos não são de todo novos, nem a sua tendência para alavancar a sua popularidade na sua persona polémica. Desde cedo que West mostrou não ter medo de dizer o que pensa, independentemente do que pensa, e do impacto que as suas palavras possam ter. O caso mais célebre remonta a setembro de 2009, durante os MTV Video Music Awards, no momento em que Taylor Swift recebeu o prémio de Best Female Video pela música You Belong With Me. Kanye West dirigiu-se ao palco, pegou no microfone e disse que o vídeo da música Single Ladies de Beyoncé é que devia ter ganho. 

Nos últimos anos, West tem vindo a migrar a sua presença extravagante para as novas plataformas, com especial atenção para o Twitter. É lá que exprime as suas opiniões controversas em rants longos (e por vezes dolorosos), lança a confusão com séries de tweets difíceis de decifrar ou anuncia planos extravagantes, muitas vezes aparentemente descolados da realidade. Durante o ano de 2018, o artista entrou num discurso muito longo de apoio a Donald Trump, que culminou num encontro entre ambos na Oval Office, em Washington D.C. E em 2020 anunciou que se ia candidatar à presidência dos Estados Unidos da América pelo seu próprio partido, Birthday Party, nome que escolheu porque nas suas palavras “quando ganharmos, será o aniversário de todos”.

Ainda assim não é sensato reduzir Kanye West a este estatuto de quasi-personagem de reality show que a cada ciclo de lançamento de um novo álbum gera controvérsia nos media. West foi uma pedra angular no desenvolvimento da cultura mais mainstream do rap naquilo que é hoje e sem ele, a música que consumimos atualmente seria certamente bastante diferente. 

Em 2007, o panorama do Rap era muito diferente do que é atualmente. O Gangster Rap era o sub-género mais consumido e o Rap como um todo, não tinha a dimensão mundial que tem atualmente. Curiosamente, um dos catalisadores da mudança foi uma disputa acesa entre West e 50 Cent, um dos rappers mais emblemáticos dos anos 2000. 

De um lado tínhamos 50 Cent, com Curtis, o seu terceiro álbum que se iria manter no mesmo registo de Gangster Rap e do outro, tínhamos Kanye West, com Graduation, o capítulo final da sua trilogia colegial, munido de sintetizadores e de uma arquitetura sónica bastante mais comercial, acessível e fora do comum para a altura.

Feitas as contas, Graduation vendeu cerca de 900.000 cópias enquanto que Curtis vendeu à volta de 700.000 cópias, coroando Kanye West como o vencedor da competição e abrindo possibilidades para uma nova onda de artistas até então não tinham tanto espaço para brilharem por não fazer música que se encaixasse no sub-género mais popular. 

Como todos estamos fartos de saber, os algoritmos na web estão talhados para beneficiar as emoções sensacionalistas, e o perfil de Kanye parece ter assimilado como poucos esta dinâmica, num fenómeno ambivalente que diz tanto sobre si como sobre o momento actual. 

Para muitos, este legado teria sido suficiente, mas Kanye West não se deixou ficar por aqui. Com o passar do tempo, continuou a alimentar todos os que o queriam ouvir e a criar projetos disruptivos e memoráveis. Chamo especial atenção para o álbum de 2010 My Beautiful Dark Twisted Fantasy, uma festa extravagante que mistura elementos de R&B e eletrónica com rock progressivo, e para o álbum de 2013, Yeezus, que muito simplesmente representa o pináculo da produção eletrónica ao serviço do rap, onde tudo é puxado ao limite mais extremo.

Em 2021 não temos a genialidade de um My Beautiful Dark Twisted Fantasy nem a sónica estridente de um Yeezus, mas temos um Donda que, apesar de não ser o álbum mais avant garde do artista, tem todo o potencial de se tornar no seu mais mediatizado, devido precisamente ao seu lançamento confuso e atribulado, que muito deu que falar durante os últimos meses. 

A data de lançamento do álbum foi alterada várias vezes ao longo do verão, o álbum sofreu várias alterações ao longo das três listening parties que foram feitas pelos Estados Unidos (alguns participantes foram inclusive removidos ou adicionados), e last but not least, na última listening party, West trouxe ao palco Marilyn Mason, alvo de acusações alegações de abuso sexual, e Da Baby, protagonista de comentários homofóbicos. Os dois artistas aparecem no álbum, incluindo na faixa Jail Pt2, com o no mínimo irónico verso “Guess who’s goin’ to jail tonight?”. 

Todos estes eventos culminaram no lançamento do álbum no dia 29 de agosto de 2021, alegadamente, para surpresa do próprio artista, que ainda não estava pronto para o lançar (algum dia estaria?) 

Com um total de 27 músicas, estendendo-se por 1 hora e 48 minutos, Donda é o álbum mais comprido da carreira artística de Kanye West. Neste lançamento, West descarta toda a sua filosofia de álbuns curtos que perpetuou durante o ano de 2018 e junta-se à moda que tanto tem assombrado o Hip-Hop mainstream durante os últimos anos, com o intuito de conseguir monopolizar ao máximo as playlists editoriais das plataformas de streaming. Não é surpresa nenhuma que Donda tenha quebrado o recorde de Sour de Olivia Rodrigo de maior número de streams no primeiro dia de lançamento. 

Nos seus pontos mais altos, Donda consegue fazer um showcase impressionante da carreira de West, passando pelos sons calorosos e soulful de The College Dropout e de Late Registration, pelos sons mais Pop de Graduation e de 808s and Heartbreaks, pela grandiosidade de My Beautiful Dark Twisted Fantasy, pela a agressividade de Yeezus e pela vulnerabilidade de The Life Of Pablo e Ye. Faixas como a imprevisível Off The Grid, a etérea Hurricane, a épica Heaven and Hell ou a belíssima No Child Left Behind são claros momentos onde o artista põe em prática tudo o que tem vindo a aprender desde o início da sua carreira, com uma aparente facilidade muito difícil de emular. 

No entanto, sendo um álbum com esta dimensão, existem também muitas faixas aparentemente incompletas ou, em português vulgar, que estão lá apenas para “encher chouriços”. Realço por exemplo as últimas quatro faixas que são praticamente faixas bónus, Jail pt 2, Ok Ok pt 2, Junya pt 2 e Jesus Lord pt 2.  

Kanye West pode já não estar na vanguarda da definição do que é o rap ou o hip-hop moderno mas isso pouco ou nada importa por duas razões:

Em primeiro porque é um artista com uma bagagem musical inconfundível e incomparável – poucos artistas terão ao longo da sua carreira metade da relevância que West teve nos últimos quinze anos. Neste ponto da sua carreira, o artista já nada tem a provar a ninguém e pode dar-se ao luxo de fazer, muito literalmente, o que lhe apetecer. Em segundo, porque com todos os eventos que o rodeiam, é um artista moderno que vale a pena observar, no limite, como caso de estudo. West tornou-se quase uma mutação extrema daquilo que representa o percurso de um artista mediático hoje em dia — de uma forma muito simplória, fazes a tua arte e és apreciado, tornas-te um influencer das massas e a certo ponto as duas facetas tornam-se de tal forma intrincadas que já não é possível perceber onde termina uma e começa a outra, o que invariavelmente perpetua a mediatização, que alavanca o alcance, que garante o sucesso. Como todos estamos fartos de saber, os algoritmos na web estão talhados para beneficiar as emoções sensacionalistas, e o perfil de Kanye parece ter assimilado como poucos esta dinâmica, num fenómeno ambivalente que diz tanto sobre si como sobre o momento actual. 

Donda contribuiu para a densificação da personalidade de Kanye e para a solidificação da sua posição junto das suas audiências — quem o amava provavelmente ficou a amar ainda mais, e quem odiava tem neste disco mais um par de razões para o fazer, dificil é ficar indiferente com a quantidade de demonstrações destes sentimentos que inundam os feeds das redes sociais. Quanto ao futuro de West, pouco ou nada se sabe mas o mais certo é que ninguém seja capaz de o prever, a não ser o facto de que haverá, de uma maneira ou de outra, drama pelo meio.

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  • Pedro Caldeira

    Engenheiro Informático de profissão, Pedro Caldeira é um apaixonado por tecnologia e acima de tudo música. Escreve regularmente sobre temas relacionados com tecnologia disruptiva e sobre álbuns e artistas que o inspiram.

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